A onda de revoluções que sacode a América Latina nos últimos três anos, e alcançou na Bolívia, no mês passado, um patamar mais elevado de radicalização, reabriu, necessariamente, discussões estratégicas sobre o futuro da luta anti-capitalista. O processo poderia avançar até que limites? Em que medida, a pressão da luta de massas poderia empurrar as forças políticas dirigentes, em sua maioria reformistas ou, quando muito, centristas, além do rubicão da propriedade privada?

As comparações históricas podem nos ajudar a construir uma perspectiva crítica mais ampla. Consideremos a “atipicidade“ histórica de revoluções anti-capitalistas não proletárias, ou seja, camponesas e populares que, no entanto, avançaram sobre a propriedade privada, como na China ou em Cuba. Foram revoluções agrárias socialistas, com um forte conteúdo anti-imperialista, que expropriaram os meios de produção, embora as suas direções não abraçassem uma estratégia anticapitalista e internacionalista.

Processos como esses não aconteceram mais, desde o Vietnam, depois de 1975. Nicarágua, Irã, Haiti, Filipinas, Indonésia e Zaire, entre outros, foram revoluções que derrubaram regimes ditatoriais pró-imperialistas, mas estagnaram na estação dos novos regimes democráticos burgueses. As direções nacionalistas recuaram de qualquer veleidade anti-capitalista.

O elo mais fraco da cadeia de dominação

Esta tendência histórica será revertida? Poderíamos assistir novamente a uma vaga de revoluções agrárias e populares desta natureza, que transbordem os limites da propriedade privada e do mercado? Excepcional foi o seu triunfo durante a terceira onda da revolução mundial, ou a sua ausência nos últimos trinta anos? Em que medida a pressão dos fatores objetivos poderia abrir o caminho?

A violência econômico-social da recolonização sugere que o elo mais fraco da dominação do capital ainda permanece na periferia do sistema. Os últimos três anos na América do sul indicam o começo de uma sexta vaga revolucionária internacional, por enquanto, com um epicentro em nosso continente. Impulsionadas pela necessidade de uma “segunda“ independência nacional, que se materializa na necessidade de resolver a questão das dívidas externas, muitas das principais nações da periferia do Sistema poderiam voltar a viver processos revolucionários anti-capitalistas, com um forte conteúdo de substitucionismo social.

A implantação das forças políticas anti-capitalistas permanece, por enquanto, pouco animadora. Mas, esse não é o único fator em consideração. Mais difícil seria prever se voltarão a existir sujeitos políticos como foram, no seu tempo, o movimento 26 de julho em cuba, ou o exército camponês do Partido Comunista da China. Parece, no entanto, improvável.

O que não avança, recua

Haveria que se considerar, entretanto, em função de processos semelhantes a esses, no futuro, a importância que pode ter tido para as direções chinesa e cubana, nos anos quarenta e cinqüenta, a existência da URSS, como um ponto de apoio econômico-militar, quando se decidiram a trilhar uma via anti-capitalista de ruptura com o imperialismo. Hoje não restam mais dúvidas, evidentemente, sobre a independência política de Fidel e de Mao, quando se viram levados à decisão da ruptura com o imperialismo, apesar e contra a direção soviética.

A questão decisiva, no entanto, manifestou-se, por ironia da história, exatamente ao contrário do que presumiam os apologistas da teoria da “retaguarda estratégica“. A URSS se beneficiou mais da vitória da revolução chinesa, do que a China se beneficiou da existência da URSS. O processo de restauração capitalista teria sido, provavelmente, antecipado de décadas na URSS, não fosse a vitória da revolução chinesa.

Quando Krushev se viu obrigado a levantar o silêncio sobre os crimes da época de Stálin, não eram irrelevantes as frações contra-revolucionárias restauracionistas da burocracia que simpatizavam com a idéia de uma Perestroika a qual, contudo, somente Gorbatchev pôde impulsionar, já em meados dos anos oitenta, trinta anos depois. A sobrevida das relações sociais pós-capitalistas na URSS – entre elas algumas conquistas deformadas de Outubro – foi possível, provavelmente, mais por razões externas do que internas. A dialética das vitórias e derrotas da revolução mundial não obedeceu a cálculos campistas. Tivesse a direção chinesa, no início dos anos cinqüenta, obedecido a Moscou e mantido a política de frente popular com o Kuomitang, então, muito possivelmente, a história da segunda metade do século XX teria seguido um curso completamente distinto, e a URSS teria deixado de existir um quarto de século mais cedo.

A vaga revolucionária de 1968 adiou, também, o processo de restauração capitalista na China, fragilizando as alas da burocracia interessadas em uma negociação com a diáspora burguesa em Taiwam e Cingapura. Sem o ascenso dos anos sessenta e a guerra no Vietnam, Deng Zhao Ping e seu programa das quatro modernizações teriam, provavelmente, chegado ao poder em Pequim, pelo menos uma década mais cedo.

É bom lembrar, no entanto, que a ruptura com o imperialismo foi defensiva. Nem Mao Tse Tung, nem Fidel Castro tinham um plano pré-estabelecido de romper com Chiang-kai-chek e Urrutia. Só foram até o limite extremo diante da agressão sistemática do imperialismo e da intransigência de suas burguesias nacionais. Recordemos, também, que tanto Tito na Yugoslávia, como a direção do Exército Popular na Albânia, tiveram que desafiar a autoridade de Moscou, e desobedecer aos ditames do estalinismo para realizar as suas revoluções. Quis a ironia da história, que Cuba cumprisse em relação à Nicarágua em 1979/80, um papel muito semelhante ao que a URSS jogou em relação à própria Cuba, em 1959/60. Mas os Ortega não fizerem como Fidel. Ao não estimular a expansão da revolução nicaragüense para El Salvador e Guatemala, Cuba selou, possivelmente, com a derrota previsível na própria Nicarágua, o seu destino. O que não avança, deve recuar.

Tudo dependerá da força do novo internacionalismo

A questão da existência da URSS como parceira comercial e aliada militar, mesmo naquelas circunstâncias de cumplicidade com os EUA para a preservação da estabilidade no Sistema Mundial de Estados, nunca foi, por suposto, simples, e pode ter tido algum significado quando as direções cubana e chinesa se decidiram pela ruptura.

A quinta onda da revolução mundial, entre 1989/91, destruiu o edifício do estalinismo. Não há mais um aparelho internacional nem remotamente assemelhado, em poder econômico e autoridade política, ao que foi a URSS. Muitos analistas concluíram que a restauração capitalista teria destruído a “retaguarda estratégica“. A contra-revolução na Rússia e no Leste europeu, no entanto, não poderia ter destruído o que já não existia há muitas décadas.

As intervenções militares americanas no Iraque (1991), na Yugoslávia (1999), no Afeganistão (2001) e de novo no Iraque (2003) estabeleceram um perigosíssimo precedente de chantagem terrorista sobre a luta dos povos contra o imperialismo, um efeito inverso à derrota militar yankee no Vietnam em 75.

De qualquer maneira, uma revolução popular em países dependentes despertaria, sem dúvida, uma simpatia e solidariedade entre os trabalhadores e a juventude dos países centrais, em uma escala incomparavelmente superior ao que se podia fazer diante dos regimes de Sadam, Milosevic ou Taleban. A força política da solidariedade internacionalista já foi demonstrada mais de uma vez. Ainda assim, não se pode subestimar as conseqüências inibidoras da superioridade militar americana, que aparece como quase invencível, embora a situação no Iraque aponte, ainda que sem prazos definidos, para uma derrota de tal invencibilidade. Por isso, talvez, se deva considerar como duvidoso um novo pioneirismo anti-capitalista em pequenos países, sem uma direção política revolucionária e internacionalista.

Os limites políticos das direções nacionalistas sugerem a continuidade dramática de estagnação dos processos revolucionários nas fronteiras do mercado e democracia burguesa. A formação de novas direções permanece, no entanto, um processo em aberto. Haverá tempo suficiente? Não há resposta direta a essa pergunta. A força das mobilizações revolucionárias de massas na América Latina, assim como um novo internacionalismo que vem sendo construído e que levou muitos milhões às ruas contra a invasão do Iraque, no entanto, abrem novas e promissoras perspectivas.