Cecília Toledo

No dia 14 de agosto de 2006, cumpriu-se meio século da morte de Bertold Brecht. Destes 50 anos, tudo pode ser dito, menos que Brecht “morreu”. Presença constante em todo bom teatro, Brecht pode ser relembrado de inúmeras maneiras. Uma delas é resgatando algumas das mais belas personagens femininas que ele criou.

Brecht nasceu em 10 de fevereiro de 1898 em Augsburg, na Alemanha, num bairro operário, apesar de ser filho do diretor de uma fábrica de papel. Fernando Peixoto, um dos mais importantes estudiosos da obra de Brecht no Brasil, diz que apesar de ter sido filho de um industrial e ter nascido para ocupar seu lugar na produção ao lado dos patrões, Brecht não fabricou papel mas sim palavras para preencher papéis, “palavras que serão armas contra sua própria classe, tendo optado pelo lado dos operários e tornando-se o mais expressivo poeta revolucionário do século 20”.

Quando faleceu, há exatos 50 anos, Brecht tinha deixado para o mundo uma rica produção artística, que inclui algumas das melhores peças teatrais de todos os tempos, encenadas e vistas por gerações e gerações de atores e espectadores do mundo inteiro, até hoje, em pleno domínio da cibernética e do ciberespaço.

Rosa Luxemburgo,uma inspiração
Brecht foi profundamente influenciado pelas obras de Marx e Engels, bem como pelos grandes fatos da luta de classes, como as revoluções alemã e russa. Em todas elas, ele tomava um partido claro, ao lado da classe operária e dos povos oprimidos.

Mas reservou um olhar especial para a mulher. Tanto que uma das suas primeiras peças, Tambores na Noite, escrita em 1920, tem como grande inspiração Rosa Luxemburgo, que ele admirava. A peça faz uma reflexão vigorosa sobre as contradições da revolta spartakista na Alemanha, da qual ele tomou parte ativa.

Aluno de medicina, ele trabalhava como enfermeiro em um hospital de Augsburg e chegou a ser eleito para o conselho operário. O assassinato de Rosa e o desaparecimento de seu cadáver o afetaram tanto que ele escreveu para ela, em 1919, um epitáfio:

Rosa, a Vermelha,
também desapareceu.
Ninguém sabe onde
repousa o seu corpo.
Disse a verdade
aos pobres.
E por isso foi morta
pelos ricos.

A mãe, a prostituta,a operária
Militante socialista, Brecht não teve a menor dúvida quanto ao potencial revolucionário latente na opressão feminina. E colocou sua arte a serviço de sua emancipação, o que o levou a criar algumas das mais complexas personagens femininas do teatro mundial. A Mãe, Santa Joana dos Matadouros, A Alma Boa de Setsuan e Os Fuzis da Senhora Carrar mostram mulheres em seu papel social decisivo, já conscientes disso ou em processo de conscientização.

Escrita em 1931 a partir do romance de Gorki, A Mãe mostra a trajetória de uma mulher alemã, revolucionária, que luta para esclarecer milhares de mães alemãs que não compreendem a realidade em que vivem. Em A Alma Boa de Setsuan, a personagem central é Shen-Te, uma prostituta que impede o suicídio de um aviador desempregado que afirma: eu li todos os livros possíveis sobre aeronáutica na escola de Pequim, todas as páginas, exceto uma, e nessa página estava escrito que ninguém tinha mais necessidade de aviadores. É por isso que eu sou um aviador sem avião. No coração dessa prostituta, símbolo vivo do amor como mercadoria, nasce um amor sincero. Shen-Te fica grávida, mas o amor, nas condições em que vive o povo, continuará uma mercadoria: ela é explorada pelo aviador, e talvez seja obrigada a casar-se com quem não a ama.

Outra forte personagem feminina de Brecht é Teresa Carrar. Hoje, aos 70 anos da Guerra Civil Espanhola, é preciso citar, entre a rica produção cultural a que ela deu origem, a peça de Brecht, Os Fuzis da Senhora Carrar. Em 1937 a situação ainda está indecisa na Espanha. É o ano de Guernica, de Picasso, e também o ano em que Brecht escreve Os Fuzis da Senhora Carrar, encenada ainda em 1937, em Paris, com Helene Weigel no papel central.

A peça foi escrita com um objetivo claro: incentivar a luta dos povos contra o fascismo. Tem apenas um ato, com duração precisa: o tempo de assar um pão, que Teresa Carrar coloca no forno no início e retira no final. Viúva de um operário morto na luta contra Franco, Teresa Carrar vigia os filhos para que não se envolvam no combate revolucionário. Teme perdê-los. A peça debate o significado da neutralidade, e sua impossibilidade: quem não toma partido, ajuda o inimigo. Teresa abomina a violência: o fuzil não resolve nada! E esconde em casa as armas do marido.

Os diálogos da mãe com o filho, com o irmão operário que vem em busca das armas, o diálogo do irmão com o padre, com a noiva do filho, com os vizinhos vão se acumulando e desvendando a situação do povo espanhol na guerra civil. Ao longe, os cantos de guerra das Brigadas Internacionais. Tudo vai se acumulando dentro dela, mas o que acaba por conscientizá-la é o choque brutal que recebe quando vê chegar em casa o cadáver de um dos filhos, assassinado enquanto pescava. Agora ela compreende o que significa ser neutra. Diante do corpo do filho, Teresa compreende que deve assumir a luta. Entrega os fuzis, retira do forno o pão e parte para o front.

Outra peça de Brecht que destaca o papel da mulher na sociedade é O Círculo de Giz Caucasiano. Um rico governador é derrubado por uma revolta de nobres. No momento de fugir do palácio, a primeira dama esquece de levar o filho pequeno. A criada Grousha hesita, mas resolve pegar a criança, enquanto os outros criados fogem dos soldados. Ela assume a maternidade não por vocação ou desejo, mas por força dos acontecimentos. É perseguida, e bate num soldado que reconhece a criança e tenta roubá-la. No final, a mulher do governador tenta reaver a criança, mas Grousha resolve lutar por seus direitos. A peça levanta inúmeras questões, mas nela Brecht centralmente visa opôr à maternidade natural, de sangue, uma maternidade social.