Quando terminei de assistir ao filme O Poço logo voltei ao que estava fazendo antes. De fato, o filme não empolga. Mas para minha surpresa, alguns dias depois ele era o assunto em minhas bolhas nas redes sociais. Surpresa maior tive, ainda, com a crítica que publicamos aqui no nosso site. Como vocês já devem estar imaginando, com a qual não concordei.

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Então me propus a apresentar um outro ponto de vista, como exercício de crítica. Pela repercussão toda, corro o risco de ser apedrejado em praça pública, mas decidi que valia a pena.

Obviamente, a primeira coisa a se discutir é sobre os méritos do filme. Mas há também um debate de fundo – ou melhor, um ponto central que já deveríamos ter discutido mas, como nunca o fizemos, não pode ser chamado de debate – que é justamente o problema das críticas artísticas.

Esse texto tem spoilers? É óbvio.

“É óbvio!”

Um filme que não vai além do trailer

Há um personagem na trama que ficou conhecido pelo público por uma frase característica: “É óbvio”. E, de fato, O Poço é um filme óbvio. O desenvolvimento de sua trama e de seus personagens não vai muito além do que se pode ver no trailer. A personagem boa é boa, a personagem má é má, e as coisas vão assim até o fim. Se nenhuma reviravolta nem surpresa. Nesse sentido, a narrativa do filme deixa muito a desejar porque até mesmo filmes do tipo blockbusters, todos baseados na mesma construção inspirada na Jornada do Herói, apresentam algum desenvolvimento e uma reviravolta.

É verdade que, nesse caso, elas são totalmente previsíveis e estão lá para cumprir um papel pré-determinado na narrativa. Sabemos exatamente quando ela vai acontecer e como vai ser superada. Há sempre aquele momento em que o antagonista parece ter conseguido uma vantagem decisiva, mas que só serve de alavanca para a superação heróica e decisiva do protagonista. Pode-se argumentar que O Poço não é um filme desse tipo, é verdade, mas aqui entram outros pontos.

A pobreza de desenvolvimento do filme pesa ainda mais porque toda a trama se passa em um ambiente, digamos, minimalista. Todo o filme se desenvolve dentro do tal poço, feito com seus muitos andares e paredes de concreto. Todos iguais. O que temos de mais diferente, talvez, seja a sala de admissão (toda de concreto também) e a cozinha, sobra a qual nada sabemos.

Esse visual, no melhor estilo do brutalismo arquitetônico, até faz algum sentido com a ideia de uma prisão. Seria um ótimo recurso para concentrar a atenção do espectador nos detalhes narrativos, na trama e no desenvolvimento das personagens. Qualidades da qual o filme carece.

Um pretenso simbolismo

Ao que tudo indica e a julgar pelas críticas positivas e as declarações do próprio Gaztelu-Urrutia – diretor do filme -, O Poço se pretendia a se consagrar como um filme cult. A pretensão é justa, mas o filme passa longe.

Prova disso é o fato de que todo o pretenso simbolismo do filme logo se esgota no meio da trama para dar lugar a uma sucessão de cenas de ação daquelas bem típicas: golpes desferidos na cabeça com corte seco seguido de um close com sangue respingando no rosto do agressor. Durante boa parte do filme o simbolismo é deixado de lado para dar lugar ao a-bê-cê das cartilhas.

O resultado disso é que o filme se converte em um grande pastiche de gênero. Não é cult, mas também não é ação. Talvez fosse um terror, mas não dá medo. Algo de ficção científica distópica, quem sabe, mas é pobre demais para isso. Melhor enquadrá-lo em drama social, mas mesmo aqui não é um grande representante.

Há algumas cenas de luta com uma katana (espada samurai) seguidas de canibalismo que lembram algo tarantinesco, so estilo Kill Bill. Particularmente, não pude deixar de lembrar de Kong: Ilha da Caveira (2017). Um filme horroroso que, justamente, não sabe se fica entre O Último Samurai (2003), Jurassic Park (1993) ou Apocalypse Now (1979), apelando a uma colagem de cenas de ação para ver se salva alguma coisa.

Há quem defenda certa correlação entre alguns objetos levados pelos prisioneiros aos sete pecados capitais do cristianismo. Mas isso se perde em poucos minutos e uma sucessão de cenas de ação. Se estivesse na defesa do filme compararia a estrutura do poço ao inferno afunilado de Dante. Seria menos forçado. Então, até agora isso tudo me parece uma tentativa desesperada de atribuir à película uma qualidade que ela não tem.

O que resta de simbolismo no filme, nos objetos dos prisioneiros, peca também pela obviedade. A faca, o livro, o cachorro. Não há nada de profundo nisso. Se existe um ícone significativo está no fato do protagonista ter escolhido o livro Dom Quixote para ser levado à prisão. Mas, pensando bem, não me surpreende vindo de um diretor espanhol.

Crítica social equivocada e uma proposta moralista

Por fim, e esse parece ser o grande ponto para quem adorou o filme, O Poço representaria uma crítica ferrenha ao nosso modelo de sociedade. Pois bem, por tudo que disse até aqui, pela pobreza narrativa e simbólica, o filme não seria capaz de comportar uma crítica social densa. O Manifesto Comunista, por exemplo, foi escrito em 1848. Há um cartaz muito famoso do Industrial Workers of the World que já representava o capitalismo como andares. Dizer, em 2020, que a sociedade é dividida em classes por si só não é nenhuma novidade. Os andares de baixo comerem as sobras dos de cima é um ponto positivo, na medida em que leva os de baixo a lutarem pela sobrevivência entre sim. Mas isso praticamente não é explorado no filme.

Cartaz do IWW, do começo dos anos 1900.

Além disso, a crítica assume um papel inegavelmente moralista. O sorteio regular que troca aleatoriamente os prisioneiros de andar tem uma única função na trama: mostrar como, do ponto de vista moral, cada indivíduo reage a uma situação de escassez. Isso em nada tem a ver com a nossa sociedade de classes. Ninguém acorda um dia burguês e, daqui trinta dias, proletário. Nem o inverso. Essa é uma perspectiva individualista e moralista. Não à toa o filme acaba sem uma explicação, uma sugestão que seja, sobre do que se trata o poço. A discussão não é sobre a totalidade, o conjunto das coisa. Mas apenas sobre posturas individuais.

O próprio diretor reconheceu isso em uma entrevista ao portal Ihorror. “O filme não é sobre mudar o mundo, mas sobre entender e colocar o espectador em um dos níveis e ver como eles se comportariam dependendo do nível em que estão“.

O tal final em aberto, com a descoberta da criança (mais um ícone óbvio para o novo, a ingenuidade e a esperança), poderia até ser algo mais significativo. Mas como conclusão de uma argumentação moralista não passa de puro determinismo. É como quem diz, “é da natureza humana”. Por isso o protagonista se retira (fica para arder no inferno cristão – seu nome Goreng, aliás, significa literalmente “frito”em indonésio) e deixa para “novas gerações”, ainda não corrompidas, o dever moral de fazerem do mundo (claro, por suas ações individuais) um lugar melhor.

É importante ressaltar que essa perspectiva moralista que o filme assume explicam duas coisa. Primeiro, o porquê da trama se desenvolver rumo a uma narrativa messiânica de tipo cristão, do tipo dividir o pão com os de baixo. E, segundo, porque todo um setor da esquerda vangloriou o filme. Há setores que não compreendem que a exploração é um fato objetivo e decorrente no nosso modelo de produção. Para eles, ao contrário, o problema da exploração é um problema moral. É preciso apenas convencer a burguesia de apoiar o trabalho inclusivo, a representatividade nas propagandas, respeitar a legislação trabalhista. Enfim, a perspectiva última é “mais amor, por favor”. Para essa turma, de fato, o filme pode ser um bom representante. Mas vale mencionar que, nesse caso, Bacurau (2019) foi muito melhor, haja vista a catarse desse mesmo setor.

Enfim, com uma trama fraca, um pretenso simbolismo, uma crítica social equivocada e com uma perspectiva moralista o filme acaba, literalmente, no fundo do poço. De fato, o drama social cinematográfico tem representantes mais bem qualificados. Mas para não dizerem que não falei das flores, o filme tem seus méritos. Vale a pena assistir se você tiver algum tempo sobrando e o gênero lhe agradar. Mas não espere tudo isso que estão dizendo.
Aliás, esse é o primeiro longa metragem do diretor. Seu trabalho ainda está por desenvolver-se e pode, no futuro, amadurecer.

A crítica da crítica

Esse texto já está grande mas eu gostaria de reservar algumas linhas mais para o problema da crítica artística. E aqui já não se trata apenas da crítica do filme O Poço, mas da crítica de arte em geral, especialmente aquela feita pelos militantes de esquerda. E também não vou resgatar aqui o Manifesto da Fiari para fazer isso.

Vejam bem, uma coisa é a política, outra coisa é a arte. Há também a intersecção delas, onde as coisas se atravessam e fica tudo mais difícil. Não estou dizendo que a política não pode tratar da arte nem que a arte não pode ser política. O que quero ressaltar é que uma não pode ser reduzida à outra. É difícil achar quem reduza política à arte mas, em contrapartida, parece que só conseguimos fazer crítica artística se reduzirmos a arte à política.

É sempre assim. Vamos escrever um texto sobre uma banda ou algum artista, e gastamos todo nosso espaço em dizer como suas posições políticas eram progressistas e acabamos deixando de lado sua obra. O problema disso tudo é que se formos julgar as obras pela posição política dos artistas, pouco sobra para nós.

A Cavalaria vermelha, de Kazemir Malevich

Salvador Dalí nunca foi um progressista. Johannes Brahms tampouco. Sua música, inclusive, foi apropriada como inspiração pelos nazistas. Aleijadinho, mesmo sendo negro, foi cristão praticante em uma sociedade em que a Igreja apoiava a escravidão. Enfim, a lista é longa e nem por isso esses legados artísticos devem ser descartados. Isso sem falar que boa parte dessas obras passam ao lado da política. Qual a posição política de Chaplin em Luzes da Cidade? Ou então da trilogia O Senhor dos Anéis? Nem por isso deixam de ser grandes obras.

Gosto de pensar, como define Adolfo Sanchez Vásquez, que a arte é uma forma de conhecimento. Se a ciência nos ensina sobre a objetividade do mundo, a arte nos ensina, enquanto humanos, como nos relacionamos com o mundo. O “eu passarinho” de Mário Quintana não é a ave da biologia, mas o sonho de liberdade do indivíduo desejante que vê no pássaro seu ideal de liberdade. Diz mais sobre como o poeta, indivíduo humano, se relaciona com o mundo do que sobre como as aves se deslocam. Esse é o poder da arte.

É por isso que a obra de arte se pretende universal, apesar das posições reacionárias de seus criadores. Os artistas morrem, mas a obra fica. Todas as produções, sejam feitas em períodos ditatoriais, monárquicos, reacionários, escravocratas ou o que seja permanecem desde que tenham o mérito artístico que, nesse momento, vale mais do que a política. A arte é capaz de transcender tudo isso.

Ou seja, não se pode sempre julgar uma obra por suas posições políticas. Nem sempre elas são explícitas ou, sequer, o centro da obra. Claro que, como socialistas, devemos sim valorizar as obras que assumem abertamente uma posição progressista. Mas reduzir a arte e a crítica de arte à posição política é reduzi-las de valor universal à mera ideologia. E a arte, camaradas, é mais do que isso.