Declaração da LIT – QI

Tomando as rédeas de seu próprio destino, a imponente luta do povo egípcio volta a comover o mundo. Uma nova data entrou na história da heróica revolução do país mais populoso da região: 30 de junho de 2013.
 
O governo encabeçado por Mohamed Morsi, apoiado em um pacto estabelecido entre a Irmandade Muçulmana e a alta cúpula militar, desmoronou três dias após as mobilizações das ruas.
A derrubada do governo de Morsi significa uma nova e imensa vitória das massas populares. E, como tal, foi reconhecida e festejada desde o começo pelo povo egípcio.
 
A cúpula dos generais viu-se obrigada, forçada pela mobilização de massas, a sacrificar outro governo servil a seus interesses: primeiro o de Mubarak, agora o de Morsi. A situação do regime, depois de cada golpe recebido do movimento de massas, se torna mais precária, mais frágil, mesmo que os militares ainda consigam manobrar.
 
A queda desses governos abalou novamente a estabilidade do regime e o colocou na defensiva. Para conservar o poder, os generais tiveram que fazer uma série de concessões no terreno democrático (a última foi sacrificar Morsi), mas se mostram incapazes de fazer o mesmo no terreno econômico. O resultado deste processo é um grau de instabilidade cada vez maior no regime. O golpe preventivo não encerra o processo, ao contrário, empurra-o adiante.
 
Porque os militares saem com prestígio?
A ação do Exército deu aos generais muito prestígio entre a população, além de causar uma grande confusão na vanguarda e na esquerda antirregime, que têm lutado incessantemente contra Mubarak e Morsi. Tamanha contradição precisa ser explicada e é necessário entender a razão da confiança e do apoio popular às Forças Armadas.
 
Frente às grandes mobilizações que derrubaram Mubarak e Morsi, em vez de reprimir e orquestrar um banho de sangue, como se espera de um regime militar contrarrevolucionário, os militares se viram obrigados a se reacomodar e a fazer concessões democráticas, ao ponto de destituir seus dois últimos governos. Assim, puderam se apresentar e ser vistos por amplos setores de massas como “amigos” e “guardiões” das aspirações do povo.
 
Mas o prestígio político do Exército egípcio tem raízes mais profundas e históricas. Apesar de ser financiado diretamente pelos EUA, a partir dos acordos de paz de Camp David com Israel, seu prestígio está baseado, contraditoriamente, em seu passado antimperialista.
 
No período do nacionalismo e pan-arabismo nasserista, o Exército destituiu a monarquia, enfrentou o imperialismo e chegou a nacionalizar o canal de Suez. A reputação dos militares tem a ver, também, com as
guerras que empreenderam contra Israel: a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a de Yom Kipur, em 1973.
 
Mas este prestígio não se manteve intacto. Durante o período do governo da Junta Militar, entre a queda de Mubarak e a eleição de Morsi, uma ampla vanguarda e também setores importantes do movimento de massas fizeram uma experiência mais direta com o próprio Exército. As medidas da Junta Militar, de fevereiro de 2011 a junho de 2012, causaram um um desgaste ao prestígio adquirido pelos militares depois da queda de Mubarak.
 
Frente à vitória eleitoral da Irmandade, que derrotou por pouco o candidato direto da Junta, Ahmed Shafik, os militares aceitaram que a Irmandade assumisse o governo, desde que garantisse os alicerces do regime, a saber: o peso e os privilégios econômicos das Forças Armadas, que controlam 30% da economia, e os acordos políticos e militares com os EUA e Israel. À Irmandade restou cumprir a tarefa de controlar o movimento de massas. Um acordo claramente contrarrevolucionário, que a Irmandade aceitou de bom grado.
 
Mas o governo da Irmandade se desgastou rapidamente, tanto por seu gerenciamento neoliberal como por suas medidas nitidamente autoritárias. Em pouco tempo, aquela imagem de “moderados” que Morsi tratou de alimentar, se demonstrou uma farsa. A Irmandade tentou seriamente levar adiante um projeto de “islamização” da sociedade e de concentração de poderes na presidência.
 
A esses fatos soma-se ainda a defesa e a aprovação, sem a participação do povo e das próprias forças de oposição burguesas, de uma constituição que, além de antioperária e antigreve, estava baseada na “sharia” (lei islâmica) como principal fonte jurídica do Estado.
 
O governo de Morsi, como parte de um regime militar, significou a continuidade da repressão contra os ativistas, dos ataques aos meios de comunicação e às minorias religiosas, como os cristãos coptas e os xiitas. Essas medidas foram desgastando o governo tanto entre o povo como entre setores da própria burguesia. Não sem motivo, em suas mobilizações, as massas atacavam Morsi como o “novo Mubarak” ou o “novo Faraó”.
 
Somado a isso, a situação econômica do país – à beira do colapso – fez com que a aprovação de Morsi desmoronasse, enquanto o descontentamento popular crescia. A campanha lançada pelo movimento juvenil Tamarod (Rebelião, em árabe) ofereceu uma alternativa que canalizou a insatisfação acumulada para ações de massas até desembocar no 30 de junho.
 
Neste contexto, o Exército começou a se afastar de Morsi, tratou de convencê-lo a retroceder e a negociar. A campanha do Tamarod começou a ganhar apoio da oposição burguesa. O Exército e a polícia deixaram a campanha correr até a mobilização do dia 30 de junho.
 
O ultimato da cúpula das Forças Armadas, através do general Al-Sisi, ocorreu em meio a uma situação incontrolável, onde o país já estava tomado pelas manifestações, com confrontos nas ruas entre partidários e opositores de Morsi, isto é, quando a queda do governo era apenas uma questão de tempo.
 
O Exército, neste quadro, atuou para evitar a derrubada direta e completa do governo pela ação das massas: moveu-se por dentro do processo para melhor desviá-lo e contê-lo. Conseguiram, ao menos por enquanto, recuperar o prestígio que haviam perdido, em parte, durante o governo da Junta. Infelizmente, conseguiram usurpar a vitória das massas e poder arbitrar a conformação do novo governo. Pela falta de uma direção revolucionária com peso de massas, o povo terminou confiando na saída que o Exército ofereceu para aplacar a mobilização popular.
 
 
Que posição tomar diante das mobilizações da Irmandade Muçulmana?
Durante o governo de Morsi, era obrigação dos revolucionários estar nas ruas, junto com as massas. Quando os militares, frente à mobilização das massas, deram um ultimato a Morsi, a posição dos revolucionários não podia mudar porque o “golpe” dos militares não significava um retrocesso, como seria se envolvesse a mudança de um regime democrático-burguês para uma ditadura.  Tratava-se de um “golpe” nos marcos do mesmo regime militar. Ainda que o exército estivesse derrubando o governo pela força, estava satisfazendo a principal reivindicação do movimento de massas naquele momento: derrubar Morsi.
 
A derrubada de Morsi representa a queda de um novo autocrata, um novo Mubarak — nesse caso, um civil de corte islâmico — e a interrupção de um projeto ultra-reacionário teocrático, encabeçado pela Irmandade. E as massas percebem esse fato como uma vitória democrática.
 
Agora estamos na oposição ao novo governo e do regime militar.Estamos a favor de toda mobilização progressiva que questione a ambos. Mas isso não significa dizer que é correto, para os revolucionários, apoiar qualquer mobilização de massas independentemente de seu caráter.
 
No Egito, quando a Irmandade Muçulmana sai às ruas defendendo a volta de Morsi, está protagonizando uma mobilização contra o regime, mas de caráter contrarrevolucionário, e por isso não é correto defender nenhum tipo de unidade de ação com essa organização. Lutar para que Morsi retome a presidência, significa lutar para que volte um governo com um projeto teocrático, o que seria um retrocesso para a revolução.
 
No entanto, o fato de que estejamos contra as manifestações da Irmandade Muçulmana, não significa que vamos respaldar qualquer medida repressiva do Exército ou da polícia, pois suas medidas obedecem aos interesses de seus comandantes e não há porque confiar neles. Denunciamos o ataque que causou a morte de mais de 50 membros da Irmandade que protestavam diante do quartel da Guarda Republicana por sua crueldade desnecessária e porque essas mortes só servem para fortalecer a tentativa da Irmandade de voltar ao poder, aproveitando a indignação que este fato criou. 
 
Enquanto a Irmandade continuar chamando seus partidários a sair às ruas para retomar o poder, isto é, na contramão da ação da ampla maioria do povo e da conquista que representa ter derrubado Morsi, não estamos a favor de defender seus direitos de expressão nem de manifestação. Por exemplo, enquanto continuam fazendo manifestações pela volta de Morsi, um retrocesso para a revolução, não exigimos a libertação de seus dirigentes ou a reabilitação de seus canais de TV, que foram fechados pelo novo governo cívico-militar.
 
Qual é a política do imperialismo?
Enquanto teve utilidade prática, o imperialismo apoiou o governo de Morsi, que lhe servia para manter o regime militar e aplicar a política econômica do FMI. Quando este apoio se tornou insustentável, o imperialismo retirou seu apoio à Irmandade e referendou o golpe dos militares.
 
Na realidade, não podia se esperar outra coisa, na medida em que a mudança de governo se deu nos marcos do próprio regime dominado pelo Exército, um agente direto de Washington na região.
Por outro lado, em nível regional, é notória a política das monarquias do Golfo no sentido de sustentar o novo governo servil aos militares e ao imperialismo. Sem demora, efetivaram uma “ajuda” ao novo governo egípcio de US$ 12 bilhões e um empréstimo negociado com o FMI (US$ 4,8 bilhões). Este último, sem dúvida, significa um fôlego para os novos ocupantes do palácio presidencial.
 
Violência contra as mulheres
No Egito há um grave obstáculo à revolução devido à opressão e à violência contra a mulher: os estupros em massa que ocorrem inclusive nas mobilizações na Praça Tahrir.
Isto se explica, por um lado, devido ao fato de que a violência machista contra as mulheres, que é uma prática bárbara muito arraigada na sociedade egípcia. Mas, por outro lado, essa violência contra a mulher foi utilizada sistematicamente durante todo o processo revolucionário para dividir as fileiras da revolução e afastar as mulheres da luta, que participaram e continuam participando com muito peso das mobilizações.
 
É uma questão decisiva garantir a plena participação das mulheres, sem a qual não é possível pensar em vitória da revolução. Por outro lado, a mobilização das mulheres e a luta para que possam atuar sem temer ataques é uma luta contra o regime militar e a opressão machista que ele promove para retirar metade da população da ação revolucionária.
 
Fantoche dos militares e do imperialismo
Depois da queda de Morsi, assumiu um novo governo “interino”, encabeçado por Adli Mansur, antigo chefe do Corte Suprema Constitucional, personagem até agora desconhecido, mas que goza da confiança das Forças Armadas.
 
Ele deverá conduzir uma “transição” que estabeleça emendas na Constituição e concretize a realização de novas eleições presidenciais e parlamentares. Devido à correlação de forças entre as classes, o Exército não colocou à frente do novo governo nenhum de seus homens fortes. A cúpula militar teve que colocar outro civil à frente do Executivo. O premiê é o economista liberal e ex-ministro de Finanças Hazem Beblaui, conhecido por suas posições conservadores e pró-imperialistas.
 
A cúpula do regime também incorporou reconhecidos líderes da oposição burguesa a Morsi, como El Baradei, Nobel da Paz e outro homem do imperialismo, agora ungido pelo poder militar como vice-presidente.
O governo interino procura ainda irradiar uma imagem “popular”. Neste sentido, nomeou o principal dirigente da Federação Sindical Independente (EFITU), Kamal Abu Eita, como ministro do Trabalho e Imigração.
É necessário ter claro de que este novo gabinete toma posse  sob o mesmo regime militar a serviço do imperialismo. Como os governos anteriores, têm a difícil tarefa de estabilizar o país e derrotar a poderosa revolução.
 
O Exército, no entanto, no momento seguinte à queda de Morsi, intervém com uma tática diferente: tenta realizar concessões, incorporar dirigentes das massas, cobrir-se de um verniz “civil” e valer-se das legítimas aspirações democráticas do povo. Atua desse modo porque a revolução o colocou sob um teto de vidro e não pode desatar neste momento uma violenta repressão, sob pena de incendiar o país.
 
Nenhuma confiança no novo governo! É preciso enfrentar o governo de forma independente!
Derrubado Morsi, o principal inimigo do movimento de massas é o novo governo instalado outra vez pelos militares. O novo governo mostra seu apoio à política imperialista na Palestina e na Síria. Os exilados sírios estão sendo presos no Egito e a fronteira com a Palestina em Gaza foi fechada. Esse governo busca uma aproximação com o ditador Al-Assad, bem como com as monarquias do Golfo e ataca os palestinos utilizando o fato de que o Hamas (que dirige Gaza) seja aliado da Irmandade. Com isso, o novo governo trata de justificar um novo isolamento da Faixa de Gaza em acordo com a política dos EUA e Israel.
 
É necessário convocar a ampla maioria dos egípcios que derrubaram Morsi, em especial a classe operária, a se organizar de forma independente e confiar somente em suas próprias forças.
Portanto, o papel dos setores da antiga oposição, como El Baradei, o movimento Tamarod e o dirigente da Federação Sindical que assumiu como ministro do Trabalho, é nefasto, pois ajudam a criar a ilusão entre as massas de que os militares estariam ao lado do povo. O novo ministro do Trabalho orientou os trabalhadores a não fazer greves e a se dedicar à produção. É muito importante que os trabalhadores e a juventude exijam desses dirigentes que renunciem a esses cargos e que rompam com este governo antipopular e a serviço do regime.
 
Apoiados na grande conquista que significou derrubar Morsi, nossa tarefa é manter a mobilização para conquistar plenas liberdades democráticas, punir os crimes não só de Mubarak, senão de toda a cúpula militar, de Morsi e da cúpula da Irmandade, confiscar suas fortunas e propriedades e anular todos os pactos que têm com o imperialismo.
 
O movimento de massas deve exigir do novo governo cívico-militar, que se diz “guardião do povo”, a realização imediata de uma Assembleia Constituinte realmente democrática e soberana, para aprovar um programa que liberte o Egito da dependência do imperialismo; que rompa imediatamente o Tratado de Camp David e acabe com toda a subordinação financeira e política do Exército ao imperialismo e Israel, que estabeleça o Não pagamento da Dívida Externa, destinando esses enormes recursos (só este ano deverão ser pagos US$ 5 bilhões em juros) para um plano de emergência que contemple a realização de obras públicas que gerem novos postos de trabalho, que atendam a saúde e a educação para o povo pobre do Egito.
 
É preciso incorporar na Constituição a liberdade religiosa. Contra as tentativas de impor uma Constituição teocrática. É preciso reabrir imediatamente a fronteira com Gaza, libertar os refugiados sírios presos e dar a eles todas as condições para que possam viver livremente no Egito.
 
A organização independente da classe operária e do povo é a única garantia de continuidade do processo revolucionário. Por isso, é necessário manter a independência das organizações operárias e populares e, ao calor da luta, avançar na construção de um partido revolucionário e internacionalista que possa conduzir a mobilização até a destruição do regime militar, para avançar em direção à única solução de fundo: um governo operário e popular no Egito