Na última terça-feira, 1º de setembro, o Papa Francisco, através de uma carta, concedeu aos padres o direito de perdoar as mulheres que abortaram e manifestaram arrependimento. A orientação estará vigente durante o ano jubilar (entre 8 de dezembro de 2015 a 1 de setembro de 2016), quando os católicos são chamados à reflexão, perdão e evangelização a partir das mudanças contemporâneas. Essa celebração ocorre a cada 25 anos.

O aborto é para os católicos um ato gravíssimo passível de excomunhão. Foi o que ocorreu com dois médicos, em 2009, que realizaram o procedimento em uma garota de 9 anos, que ficou grávida em decorrência do estupro do padrasto. O Papa Bento XVI, à época, apoiou a punição por considerar o estupro um crime menos perverso que o aborto.

Em dezembro de 2011, o arcebispo Javier Martinez, de Granada-Espanha, argumentou que uma mulher que aborta está autorizando a si própria a ser violada. De acordo com seus argumentos, “matar uma criança indefesa, em ato proferido pela própria mãe, dá ao homem licença absoluta, sem limites, de abusar do corpo desta mulher, porque ela trouxe a tragédia para a própria vida”. Em outras palavras, defendeu que diante de uma situação de abortamento, estava autorizada a violação do corpo da mulher por qualquer prática violenta, desde abuso até estupro.

A postura da Igreja Católica e seus preceitos, entretanto, não evitam que a prática exista entre as fiéis. Aliás, as estatísticas brasileiras demonstram exatamente o contrário: grande parte das mulheres que aborta o faz contra sua própria crença, recorrendo ao procedimento diante de uma gravidez indesejável ou impossível de se realizar devido a condições sociais, morais ou econômicas.

A maioria das brasileiras que aborta é católica
No Brasil, a cada ano, são realizados cerca de 1 milhão a 800 mil internamentos por  abortos e 2 milhões de partos. Ou seja, uma entre cada três mulheres que engravidam não leva a gravidez até o final. Os motivos para o abortamento são variados, desde falta de condições para criar o filho, medo de julgamento moral da sociedade, dificuldade de enfrentar o marido diante de uma gravidez não planejada ou simplesmente o desejo de não levá-la até o fim.

De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2010), a maioria das mulheres que aborta é casada, católica, possui entre 24 a 39 anos e ganha até 5 salários mínimos. O tema é tão sensível que, mesmo o sendo proibido pela lei, passível de criminalização pelo Estado e contrário aos preceitos religiosos, muitas mulheres, sem outra alternativa, recorrem ao procedimento ainda que atentem contra a própria vida e sua própria religião, enfrentando suas crenças pessoais e carregando por toda a vida o peso de “estar em falta com Deus”.

Cerca de 150 a 200 mil mulheres, a cada ano, morrem ou ficam com seqüelas devido a procedimentos mal-sucedidos, muitas vezes feitos de maneira caseira e sem nenhuma condição de higiene. As trabalhadoras, que não possuem condições de pagar pelo procedimento nas inúmeras clínicas clandestinas espalhadas pelo país, são as que mais morrem. E, dentre elas, as maiores vítimas são as mulheres negras.

O problema é tão grave, que o SUS admite que o abortamento é a quinta causa de morte materna. E o próprio Conselho Federal de Medicina, desde 2012, aconselha a descriminalização da prática como forma de proteger a vida das mulheres. Mesmo diante desse quadro, a Igreja Católica insiste em fechar os olhos a esse problema, oferecendo compaixão às “supostas criminosas” que, como vimos, não passam de mulheres comuns de nossa classe.

Da defesa da vida contra o aborto ao perdão
Não desconsideramos que o perdão à mulher religiosa pelo abortamento pode significar um alívio, afinal, o peso de se enfrentar com uma lei divina é um fardo muito pesado, que se soma às outras inúmeras dificuldades cotidianas das mulheres trabalhadoras. Mas não seria muito mais simples que a Igreja e o ordenamento papal deixassem de intervir nesses assuntos? Que concedesse a liberdade antes do perdão?

Não seria difícil fazer isso sequer dentro da própria Igreja, uma vez que teologia cristã prevê ao fiel o direito a decidir sobre ações que dizem respeito a si mesmo a partir da relação direta com Deus, é o chamado direito sagrado a decidir. Por que não abolir do direito canônico tal crime e considerá-lo um ato de autoconsciência? Assim, caberia à mulher e não aos padres ou bispos a decisão final.

Mas a Igreja não está propondo reconsiderar o aborto retirando-o da lista de pecados ou mesmo deixar de considerá-lo um crime mais bárbaro que o estupro. A carta do Papa não indica uma mudança radical nos rumos da Igreja. O mais provável é que seja um movimento para disputar as mulheres religiosas e as que se insurgem contra a criminalização da prática.

Muitas mulheres encontram conforto em outras religiões que não consideram a prática um pecado. É o caso da Igreja Universal que defende o direito ao aborto baseado na bíblia (Eclesiates, capítulo 6, versículo 3) . A Igreja, preocupada com essa migração, resolveu tomar uma medida que deixe uma porta para ganhar as mulheres e não permitir que elas migrem para outras congregações.

Outra hipótese, também bastante provável, é que a Igreja Católica esteja buscando dar respostas a um forte movimento de mulheres que se insurge contra a prática de criminalizar o aborto em todo mundo, enfrentando o preconceito e o ódio, obtendo resultados positivos.

Na Espanha, em 2012, o movimento organizado derrotou a tentativa do governo de criminalizar casos de abortamento já previstos em lei. Na América Latina, recentemente no Uruguai, foi conquistado o direito da mulher a decidir pela interrupção da gravidez. Na Argentina, a mobilização das mulheres tem feito o Estado a recuar nas leis de criminalização. E dentro da própria Igreja Católica, existe um movimento de mulheres chamado “Católicas pelo Direito de Decidir”, que defende a legalização da prática e que o ato não seja considerado pecado ou fira o direito canônico.

Nem Papa, nem Estado: que a mulher decida!
Caso a Igreja Católica tivesse realmente a preocupação com as mulheres, deixaria de decidir sobre a vida delas, defenderia que o abortamento é um problema de saúde pública, porque milhões de mulheres morrem vítimas dele todos os anos. Defenderia que nem o Estado e nem a Igreja deveriam opinar sobre suas escolhas. Mas isso estaria tão longe de acontecer quanto um camelo passar pelo buraco de uma agulha.

Não devemos esperar pelo perdão, aliás, o aborto não é um pecado, não há o que perdoar. Precisamos organizar uma forte luta em defesa da legalização do aborto. Nos Estados Unidos, na Europa, e em 5 países da América Latina onde o aborto é legalizado, estatísticas demonstram que o número de procedimentos e de mulheres mortas caiu severamente após as medidas de legalização.

A única saída para as mulheres trabalhadoras, independente de suas convicções religiosas, reside em encarar a questão do aborto como um problema de saúde pública, travar uma luta juntamente com a classe trabalhadora para garantir que não seja considerado crime, que ele possa ser realizado de maneira segura no sistema público de saúde, de forma gratuita e de acordo com a vontade da mulher. Sem criminalização e imposição, não seria necessário o perdão.