Diana Gameiro, médica e militante do PSTU-RJ

A pandemia de coronavírus é, sem margem para dúvidas, uma catástrofe de proporções gigantescas, só comparável a duas outras catástrofes mundiais, a primeira e segunda guerras mundiais. A quantidade de vidas humanas perdidas e o número de países envolvidos são de dimensões semelhantes e demonstram da mesma forma a barbárie capitalista.

Mas, nesta guerra, os soldados são outros. Entre os soldados de hoje estão os profissionais de saúde, como tantas vezes tem sido dito. Os governos que antes sucatearam os serviços de saúde vêm agora bater palmas e chamar os trabalhadores da saúde de heróis, mas estes heróis não têm superpoderes, e estão sendo convocados para uma guerra armados com pouco mais que um estilingue. Em todo o mundo, o índice de profissionais de saúde infectados e mortos por coronavírus é uma demonstração da incapacidade do capitalismo de debelar os monstros que ele mesmo cria. Um mundo onde sobram armas de destruição maciça não consegue produzir EPIs (equipamentos de proteção individual) em quantidade e qualidade suficiente para os seus “heróis”.

A crise dos sistemas de saúde públicos no Brasil e no mundo

Desde o início da crise econômica em 2008, duas das receitas mais aplicadas da burguesia para aumentar os seus lucros têm sido o desinvestimento e a privatização dos serviços públicos. As formas têm sido variadas; há a diminuição dos números de trabalhadores, sobrecarregando os que ficam nos postos de trabalho; há falta de insumos; há gestão privada de serviços públicos, e há diretamente a sua privatização. Os fins são sempre os mesmos: roubar do orçamento da saúde para entregar a grandes grupos privados.

No Brasil não tem sido diferente. As gestões privadas dos serviços de saúde proliferaram nos últimos 15 anos, mas em especial durante o governo do PT, que deu um grande exemplo criando a Empresa Brasileira de Serviços e Recursos Hospitalares (Ebserh). Com isso, os contratos de trabalho vêm sendo precarizados e as categorias divididas. Antes, numa unidade de saúde, todos os trabalhadores eram servidores municipais, estaduais ou federais; hoje, as empresas a quem os governos terceirizam a gestão também terceirizam, elas mesmas, vários serviços como segurança, limpeza, alimentação e até transporte de doentes.

O Rio de Janeiro é um dos polos mais avançados da precarização dos serviços de saúde públicos. Poucas são as unidades de saúde que não estão sob domínio das Organizações Sociais (OSs). O resultado tem sido contratos precários, atrasos de salário, demissões irregulares, falta de insumos e de infraestrutura, e uma quantidade completamente insuficiente de profissionais (desde médicos a auxiliares de limpeza). Estas organizações recebem dinheiro do estado e da prefeitura para gerir as unidades de saúde e acumular lucros gigantescos com isso. Em consequência, o Rio de Janeiro já era campeão de mortes no Sistema Único de Saúde (SUS) no país mesmo antes da Covid-19.

O estabelecimento das OSs começou no início dos anos 2000, com César Maia na Prefeitura e Garotinho no governo do Estado, e deu um salto quando Eduardo Paes era prefeito. A sua disseminação contou com o apoio de todas as forças parlamentares no Rio, incluindo PT e PSOL; este último se limita a dizer, nas palavras de Freixo, que as OSs devem ser fiscalizadas, mas não se deve acabar com este regime de gestão.

O resultado de tanto sucateamento e privatização é posto a nu com a pandemia: rápido colapso das unidades de saúde, milhares de pessoas morrendo sem atendimento, médicos tendo que escolher quem tem acesso a respirador e corpos acumulados nas unidades de saúde.

Profissionais de saúde: David contra Golias

Uma outra face do sucateamento dos serviços de saúde e do investimento insuficiente durante a pandemia é um elevado percentual de profissionais de saúde contaminados, dos quais vários milhares já são mortos “em combate”. Os percentuais variam de acordo com a quantidade global de testes que é feita no país, mas os números absolutos, inclusive em países tidos como desenvolvidos, não têm paralelo na história: na Espanha cerca de 20% dos casos confirmados são de profissionais de saúde e na Itália 10%.

Até o dia 8 de maio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) tinha recebido 3476 denúncias de todo o país. São relatos de falta de alcool 70°, luvas, máscaras adequadas, capote impermeável e óculos, sendo a maioria das denúncias vindas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Faltam os equipamentos de proteção individual (EPI), falta treino dos profissionais de saúde no uso de EPI (e aqui incluímos todos os trabalhadores de uma unidade de saúde, desde os médicos e enfermeiros aos administrativos, auxiliares de limpeza e do setor de alimentação), falta organização dentro das unidades de saúde para receber os pacientes sintomáticos, e as jornadas de trabalho são extenuantes.

Em várias unidades de saúde, máscaras N95, que devem ser usadas no máximo por um turno, estão sendo entregues aos profissionais em contato direto com pacientes de Covid-19 para serem usadas durante 15 dias ou mais. Máscaras cirúrgicas, que deveriam ser trocadas várias vezes ao dia, estão sendo usadas durante todo o plantão e só são entregues aos médicos e profissionais da enfermagem; administrativos, auxiliares e seguranças só têm máscaras se eles próprios as adquirirem. São inúmeros os relatos de médicos e profissionais de enfermagem que usam sacos de lixo como proteção. Para além disso, quando não se sabe usar e, em especial, retirar o EPI, pode-se ser contaminado pelo próprio EPI no momento do uso ou da retirada.

Só no Brasil já morreram mais profissionais de enfermagem do que na Itália e Espanha juntas: são 98 vítimas até o dia 9 de maio, contabilizados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Confen), num total de 12 mil casos reportados. A maioria das mortes aconteceu no Rio de Janeiro, seguido de São Paulo. Para além disso, o número de casos confirmados é obviamente inferior ao real, pois os trabalhadores da saúde também não estão sendo testados. Nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do Rio de Janeiro, os trabalhadores são afastados por 15 dias e, se ao final desse período estiverem assintomáticos, retornam sem qualquer tipo de avaliação médica ou teste para a unidade em que trabalham.

Nem o CFM nem a Associação Médica Brasileira (AMB) revelam o número total de médicos mortos vítimas de Covid-19, muito menos o número de casos suspeitos ou confirmados. Estimamos que milhares de médicos já tenham sido infectados, e o número de mortos deverá rondar mais de duas dezenas. Este número é uma estimativa, baseada no fato de, até ao final de Abril, só no Rio de Janeiro, terem morrido 12 médicos segundo dados do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (único que vem revelando números), e nas notícias recolhidas na internet sobre casos individuais de mortes de médicos. É vergonhoso que tanto o CFM como a AMB estejam mais preocupados com o Revalida do que com as vidas dos profissionais da sua categoria, e isso só se explica pela proximidade destas entidades com as grandes empresas de saúde privada.

O afastamento, ou a perda, de cada trabalhador nos serviços de urgência sobrecarrega os trabalhadores restantes, em serviços que já funcionavam com uma quantidade de profissionais muito insuficiente. Para que se tenha uma ideia, era normal na sala amarela do Hospital Pedro II (em Santa Cruz, zona Oeste do Rio de Janeiro) que houvessem cerca de 4 técnicos de enfermagem para mais de 100 pacientes internados. E esta não era uma realidade restrita a este hospital. Trabalhadores são pressionados a fazer horas extras, tendo o dobro do trabalho em jornadas já extenuantes. E, na ampla maioria dos casos são muito mal pagos: a RioSaúde, por exemplo, paga menos de R$200 por um plantão de 12h de um técnico de enfermagem.

Como se não bastasse, a prefeitura do Rio tem atrasado salários. Em abril os vencimentos de março atrasaram para cerca de cinco mil funcionários, e outros 20 mil estavam com quatro meses sem vale-transporte e alimentação.

Nas atuais condições, não basta que os governos façam homenagem ou chamem os profissionais de saúde de heróis. É fundamental que lhes sejam dadas condições dignas de trabalho e remuneração adequada. Se é um fato que estes trabalhadores têm sido um exemplo fantástico de abnegação e dedicação, também é verdade que tal tem sido feito à custa de sacrifícios pessoais elevadíssimos: o desgaste de ver centenas de pessoas em sofrimento e morrendo, o medo de se contaminar e contaminar membros da sua família. Muitos tiveram de sair de casa porque têm familiares que fazem parte de grupos de risco, o que acarreta ainda mais estresse emocional e gastos econômicos. Muitos fazem tudo isso porque não têm opção: este é o seu trabalho, é o seu sustento, e têm que arriscar a sua vida por isso.

Para piorar, muitos profissionais de saúde que são dos grupos de risco estão sendo obrigados a ir trabalhar nas condições atuais, ou seja, sem EPIs ou condições mínimas de trabalho, e sem absolutamente nenhuma garantia de tratamento caso venham a desenvolver a forma grave da doença, já que a grande maioria destes profissionais não tem plano de saúde e depende do SUS.

Profissionais de saúde, uma categoria majoritariamente feminina e negra

Aproximadamente 85% da categoria de enfermagem são mulheres, e no caso das técnicos de enfermagem a grande maioria são negras. A estas últimas cabem os piores salários (menos de R$200 por 12h na RioSaúde, por exemplo) e as piores condições de trabalho, na sua ampla maioria vivem na periferia e são usuárias do SUS. Não temos os dados de qual a percentagem de mulheres negras entre as 98 mortes confirmadas até ao momento, mas não é difícil deduzir que, pela composição da categoria, deverão ser a maioria.

EPIs de qualidade para todos os profissionais de saúde

Mas esta não é uma fatalidade. É possível necessário disponibilizar EPIs de elevada qualidade – capote de corpo inteiro, viseira, mascara n95, luvas – para os profissionais em contato com pacientes sintomáticos, garantindo-lhes assim o máximo de proteção. Esses EPIs devem ser usados por apenas um turno, e não por vários dias, como tem sido em várias unidades de saúde públicas e privadas. Para além dos EPIs em si, também é fundamental haver cursos para saber usar os EPIs e estabelecer condições adequadas para a sua retirada – nomeadamente descontaminação externa do EPI e um local para retirada bem ventilado e frequentemente desinfectado. Para garantir que estas condições sejam devidamente aplicadas, os trabalhadores devem se organizar em comissões votadas para fiscalizar as condições de trabalho.

E onde conseguiríamos esses EPIs? Não é necessário encomendar da China nem comprá-los a preços absurdos.  As inúmeras fábricas têxteis existentes no país deveriam ser requisitadas para confecção desses equipamentos a preço de custo, e as que se recusassem deveria ser estatizadas. O mesmo vale para a as indústrias químicas e a produção e compra de álcool 70°.

Condições dignas de trabalho

Outra medida importante é que os profissionais alocados em centros de tratamento de Covid-19 deveriam ter jornada de 6h/60h por ser um trabalho extenuante, e receber como mínimo o adicional máximo de insalubridade de 40% sobre o valor do seu salário. Os salários de todos estes trabalhadores deve ser no mínimo o piso de cada categoria e as horas extra pagas em dobro.

Os profissionais de saúde contratados para a epidemia de Covid-19 devem ser integrados aos quadros da prefeitura, assim como todos os atuais trabalhadores das OSs, passando a ser servidores estatutários, exceto aqueles em que se demonstre que houve favorecimento político. Se há algo que esta epidemia prova é que o SUS está desfalcado de trabalhadores e que as OS só servem para aumentar os gastos em saúde e precarizar, tantos as condições de trabalho, como o atendimento aos pacientes.

A economia deve estar a serviço da vida dos trabalhadores

Não é verdade que não há dinheiro para combater o coronavírus e dar salários e condições de trabalho dignas aos profissionais de saúde. Os bancos continuam lucrando bilhões, e o governo Bolsonaro já deu R$ 1,2 trilhão aos bancos desde o inicio da pandemia.

– Confisco dos lucros dos bancos e estatização do sistema financeiro! É preciso confiscar os lucros bilionários dos banqueiros e financiar a rede pública de Saúde com esse dinheiro; estatizar o sistema financeiro sob controle dos trabalhadores; e proibir a remessa de lucros e de dólares para as multinacionais e os especuladores.

– Fim das isenções fiscais e taxação das grandes fortunas! É preciso que os ricos paguem impostos sobre suas fortunas, e não só os pobres e a classe média como é hoje. A prefeitura do Rio, por exemplo, deixou de arrecadar R$1,725 bilhões em 2018 e neste ano o total de dívida acumulada de impostos, majoritariamente de empresas, era de R$47,68 bilhões.

– Suspensão do pagamento da falsa dívida! É preciso que a União, os estados e os municípios parem de pagar as falsas dívidas ao sistema financeiro e usem esse dinheiro para combater o coronavírus. Citando novamente o exemplo da prefeitura do Rio, gastou-se em 2018 R$1,84 Bi com serviço da dívida, e para 2019 estava previsto pagar $R 2,14Bi. No caso dos estados e da federação os valores são imensamente maiores e poderiam estar sendo investidos em leitos, infraestrutura, insumos, respiradores, EPIs e salários dignos para quem está na frente de batalha à Covid-19.

Fora Bolsonaro e Mourão, por um governo dos trabalhadores e do povo pobre

Este governo genocida, que debocha dos milhares de mortes pela Covid-19, é hoje o principal obstáculo ao combate ao coronavírus, com a sua política de boicote à quarentena, entrega de trilhões de reais de ajuda aos banqueiros e grandes empresas, e para os trabalhadores nem os  R$600 prometidos. Como se não bastasse, a todo o momento vem defendendo um golpe militar que imponha uma ditadura, nos retirando o direito a organização política, sindical, greves e  manifestações. Setores bolsonaristas demonstraram na prática este autoritarismo ao atacar fisicamente a manifestação de profissionais de enfermagem feita em frente ao congresso

É fundamental a organização dos trabalhadores de saúde, por local de trabalho e através de suas entidades de classe, fazendo manifestações, reivindicando condições dignas de trabalho e de combate à Covid-19. Essas manifestações devem ser feitas em conjunto com uma campanha de massas pelo Fora Bolsonaro e Mourão, pois só assim podemos de fato resolver a crise sanitária e social provocada por esta epidemia. Também não devemos ter nenhuma confiança neste Congresso ou no Supremo Tribunal Federal (STF). Só os trabalhadores e o povo pobre no poder, auto-organizados em comitês populares, em um governo socialista dos trabalhadores, podem aplicar as medidas que mencionamos acima e garantir a vida e dignidade para a imensa maioria da população.