Birmaneses em luta pela independência (1945)
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

No último 8 de março, uma das cenas mais impactantes e emblemáticas da luta das mulheres mundo afora veio de Myamar , país localizado no Sudeste Asiático – também conhecido como Burma ou Birmânia, onde milhares e milhares de trabalhadoras e jovens tomaram às ruas, vestindo o tradicional “htamein” (a palavra birmanesa para “sarong”, uma espécie de saiote, usado tanto por homens quanto mulheres, que envolve a parte inferior do tronco) ou estendendo-os em varais e barricadas nas principais cidades do país.

Belas imagens que retratam muitos aspectos das contradições que caracterizam a enorme polarização social em que o mundo está mergulhado neste momento no qual a humanidade se debate com a maior crise sanitária e socioeconômica já vista. Cenas particularmente fortes porque refletem um dos mais vigorosos exemplos desta polarização: o país está rebelado numa greve geral contra uma ditadura militar, instalada em 1º de fevereiro, tendo as cerca de 600 mil operárias da indústria de vestuários e calçados – principalmente esportivos, para exportação – na sua linha de frente.

E não por acaso. Mulheres, sempre e em qualquer lugar do mundo, estão dentre os primeiros e mais profundamente atingidos quando o capitalismo acirra seus mecanismos de opressão e exploração. E, em Burma, sua participação tem sido significativa ao ponto do traje, adotado exatamente para questionar o machismo e as profundas tradições sexistas que reinam no país, tem servido de nome para a rebelião em curso: o “Movimento Sarong”.

Há muito o que se falar sobre a profundidade dos ataques que surgiram na esteira do golpe militar; mas, também, sobre como a classe trabalhadora, o povo das 136 etnias que habitam o país e a juventude têm, ao longo da História, se enfrentado com regimes políticos totalitários, entremeados por curtos períodos de “democracia” que, contudo, em nada contribuíram para barrar violentos ataques sociais e econômicos.

Por isso, produzimos três artigos. Neste, iremos contar, mesmo que de forma sintética, um pouco da história do país, deste a época do imperialismo britânico, para que se possa entender o contexto atual (**). No segundo, abordaremos a luta contra o golpe, com destaque para o movimento operário. No último, discutiremos por que o governo recém-derrubado, da Liga Nacional pela Democracia, encabeçada por Aung San Suu Kyi, também não é uma alternativa para que o povo de Burma conquiste a liberdade, igualdade e justiça pelas quais lutam há séculos.

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As enormes contradições e disputas que caracterizam a história deste país – encravado entre o Mar Andamão (no Oceano Asiático) e as fronteiras de Bangladesh, Índia, China, Laos e Tailândia – podem ser exemplificadas através de sua própria denominação.

Até pouco tempo, o país era chamado de Burma (ou Birmânia, a depender da tradução), como era designado pelos colonizadores britânicos. República da União de Myamar foi o nome adotado após o golpe militar dado em 1989, quando, de forma populista, o regime totalitário resgatou uma denominação próxima das origens étnicas da população.

Curiosamente, ambos os nomes (Myamar e Burma), apesar da grafia diferente no alfabeto ocidental, têm origem no mesmo termo e quase a mesma pronúncia na língua local (Myanma or Myamma), em referência ao principal grupo étnico da região, os Bramás (bermás ou, ainda, birmaneses), que, hoje, correspondem a 83% dos cerca de 53 milhões de habitantes.

Com suas origens nos primórdios das civilizações, a região já fez parte dos Reinos Budistas (como parte do que, hoje, é a Índia); construiu uma das mais prósperas civilizações da Antiguidade (o Império Pagan, entre 900 e 1200 d.C); foi conquistada pelos mongóis e dividiu-se em pequenos reinos, até entrar na mira da expansão colonial européia.

Primeiro, tiveram que resistir aos portugueses, nos anos 1600; depois aos franceses, no século seguinte; até perderem totalmente a soberania, caindo nas garras do Império Britânico, que depois de uma sucessão de três guerras nos anos 1800, que provocaram uma quantidade até hoje incalculável de mortos e naufragaram o país numa situação de miséria, já que, além de saquearem o país, os britânicos exigiram o pagamento de uma “indenização” de milhões de libras esterlinas, iniciando uma ocupação colonial que se estendeu de 1824 até 1948.

Assimilada como uma província da Índia Britânica, a então Birmânia cumpriu papel de destaque para a Segunda Revolução Industrial (a partir dos anos 1850) e o projeto imperialista dos britânicos, principalmente através de matérias-primas como a teca (árvore cuja madeira era usada na construção naval), a borracha e o petróleo; tornando-se, ainda, o maior exportador mundial de arroz naquele período. Além disso, e ainda mais importante para os capitalistas ingleses e escocêses, a região foi transformada em um “corredor de entrada” para o gigantesco e cobiçado mercado chinês.

Caricatura ridicularizando birmaneses como sapos

Todo este período foi caracterizado por níveis absurdos de exploração, devastação do meio ambiente e da agricultura familiar e tradicional, além de violenta opressão e repressão, inclusive às tradições culturais e religiosas, particularmente o budismo, adotado pela maioria da população e transformado em importante instrumento de organização e resistência.

E, se não bastasse, o imperialismo britânico se utilizou da nefasta tática de “dividir para conquistar” para se impor, estabelecendo barreiras sociais, políticas e econômicas dentre os vários grupos étnico-raciais que conviviam na região, algo que, até hoje, marca a história e os conflitos no país, assumindo, em distintos momentos da História, as características de “limpeza étnica”.

Em suma, no topo da pirâmide estavam os brancos (majoritariamente de origem britânica); logo abaixo, vinham os imigrantes indianos, que formavam uma classe média composta por membros do exército de ocupação, burocratas que trabalhavam nas instituições do Estado ou comerciantes (função também exercida por chineses) e membros de algumas etnias minoritárias, cooptadas pelos colonizadores. E, na base, massacrada, sobrevivia a maioria dos povos originários.

A II Guerra, a ocupação japonesa e a militarização

Evidentemente, tudo isto não aconteceu sem que houvesse rebeliões e lutas, um processo que obrigou com que, em 1937, o Império Britânico fizesse uma pequena concessão, promovendo uma nova constituição que separou a Birmânia da Índia Britânica, mantendo o poder econômico e político, mas delegando-o, parcialmente, para setores das elites locais.

O que, contudo, não impediu que, no ano seguinte, os trabalhadores, estudantes e camponeses birmaneses realizassem uma primeira e vigorosa greve geral, que detonou um processo de organização de entidades dos movimentos sociais e organizações políticas, muitas delas inspiradas em variantes do comunismo e do socialismo.

Essas lutas, contudo, esbarraram em um poderosíssimo obstáculo, a II Guerra Mundial, cujos efeitos foram particularmente devastadores em Burma, transformada no segundo mais importante palco asiático (depois da China) para os combates entre os chamados Aliados e o Japão. A história é ultra complexa e não há como detalhá-la, aqui. Mas, alguns elementos são fundamentais para que se compreenda a situação atual, principalmente o lamentável papel que as Forças Armadas têm cumprido desde então.

Por um lado, os japoneses se infiltraram no país, apoiados por nacionalistas birmaneses, particularmente Aung San, Bo Ne Win e os chamados “Thirty Comrades” (Trinta Companheiros) que lutavam contra a dominação britânica e se organizaram no Exército pela Independência da Birmânia (BIA, na sigla original), fato fundamental para entender a história birmanesa, já que Bo Ne Win foi o ditador que governou o país entre 1962 e 1988; Aung San, posteriormente, foi considerado herói da independência e é pai de Aung San Suu Kyi (deposta pelo golpe realizado em 1º de fevereiro); e a BIA é o embrião das forças militares que dominam a história de Burma desde então.

Em 1942, o “apoio” se transformou em bombardeios em massa e invasão de tropas japonesas, enfrentados pelos colonizadores britânicos com uma tática igualmente devastadora: a destruição, nas cidades mais desenvolvidas, de toda a infraestrutura, parque industrial e tudo mais que pudesse ser utilizado pelos nipônicos.

No entanto, foi sob a batuta da aliança entre os japoneses e os militares da BIA que foram criadas as primeiras instituições nacionais (particularmente destinadas “manutenção da ordem” e cobrança de impostos) e que a infraestrutura mínima, como serviços de transporte e comunicação, foi reconstruída, num processo igualmente violento, que acirrou as contradições internas, principalmente porque a atuação da BIA também foi marcada pela violência, com assassinatos, estupros e destruição de vilarejos de membros das etnias minoritárias, principalmente aquelas acusadas de terem colaborado com os colonizadores britânicos.

Porém, apesar de uma suposta “descolonização”, também não demorou muito para que os japoneses manifestassem seus interesses imperialistas, passando a transformar a Birmânia em palco para o desenvolvimento de seus próprios negócios e indústrias, com a ampla utilização de trabalho forçado e níveis absurdos de exploração. Diante disto, o BIA, ainda sob o controle de Aung San e Ne Win, organizou o Exército Nacional de Burma (BNA) e, em 1944, virou a casaca, passando a apoiar os Aliados.

O cenário neste momento é igualmente complexo. Grã-Bretanha (debilitada pela perda da colônia para os japoneses), Estados Unidos e China (mobilizada contra o Japão desde a eclosão da Segunda Guerra Sino-Japonesa, em 1937) estavam alinhados contra os países do Eixo e, apesar das profundas diferenças e distintos interesses que tinham na Birmânia, se apresentaram como aliados dos nacionalistas birmaneses, resultando num emaranhado jogo de golpes e contragolpes entre eles, através de alianças oportunistas com distintos setores políticos, econômicos e étnicos do país.

É importante ressaltar que, apesar das manobras das potências Aliadas e dos estragos que provocaram, o povo birmanês nunca depositou completa confiança nelas, lutando heroicamente pela sua própria libertação, seja através de ações e manifestações de massas e greve, seja com a formação de guerrilhas independentes dos interesses de seus supostos aliados contra o Japão, até mesmo porque sabiam que nenhum deles estava, de fato, a favor da descolonização e independência do país.

Foi neste processo que, já próximo ao final da Guerra, Aung San, liderou uma vitoriosa revolta contra a ocupação japonesa, em 27 de março de 1945 (data celebrada até hoje como Dia da Resistência Nacional), e conseguiu, habilmente, unificar o seu Exército Nacional (BNA) com o Partido Revolucionário do Povo (PRP, braço dos “Thakins”, grupo formado, nos anos 1930, por intelectuais e budistas nacionalistas) e o Partido Comunista de Burma (CPB, de linhagem maoísta, que deixou o poder depois de uma tentativa fracassada de rebelião, em 1949, sendo proscrito em 1953), dando origem à Liga Anti-Fascista para a Liberdade do Povo (AFPFL, na sigla inglesa).

Frente Popular, conciliação de classes e traições

Como discutido em um artigo publicado na página da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), em outubro de 2007 (O regime militar na corda bamba), a AFPFL formou um governo de Frente Popular (de conciliação de classes) que governou Burma até 1962, quando militares tomaram o poder através de um golpe que instalou uma autoproclamada “via birmanesa para o socialismo” que, na prática, não passava de um regime capitalista, sanguinário e totalitário, que se estendeu até 1988, quando outro setor do exército se apossou do poder (estendendo o regime militar até 2011).

Como destacado no artigo, o governo da AFPFL foi marcado pela instabilidade, atravessada por uma série de elementos, a começar pelo caráter do governo (também caracterizado por forte caráter totalitário); passando pelo assassinato de seu principal dirigente, Aung San (morto, juntamente com todo seu gabinete, em julho de 1947) e acirradas disputas interétnicas, acumuladas nos períodos colonial e no processo de independência. Além de uma conjuntura mundial complexa, marcada pela chamada Guerra Fria (lembrando que a Revolução Chinesa ocorreu neste mesmo período, em 1949).

Em suma, a conciliação de classes proposta pela Frente Popular foi incapaz de satisfazer as necessidades históricas do povo e, ainda, permitiu que a Grã-Bretanha, já incapaz de manter o domínio colonial na região, interviesse diretamente na descolonização de Burma, através da imposição de um processo “gradual”, que garantiu aos britânicos duas questões fundamentais: a manutenção de seus interesses econômicos e estratégicos na região e, também, o isolamento dos setores mais radicalizados e revolucionários.

Esta transição foi negociada na Inglaterra, diretamente por Aung San e o Primeiro Ministro do Reino Unido, Clement Richard Attlee, resultando num acordo que selou um acordo de independência, em janeiro de 1947. Para se ter uma ideia do grau da concialiação, vale citar que uma de suas resoluções impunha a formação de novo exército nacional misto, formado por membros do BAN e das forças Aliadas (Inglaterra e EUA).

A farsa da “via birmanesa para o socialismo” e 50 anos de ditaduras

Seja como for, a independência foi oficialmente decretada em 04 de janeiro de 1948 e Liga Anti-Fascista para a Liberdade do Povo governou o país até 1962, particularmente através da figura de U Nu, que exerceu o cargo de primeiro-ministro quase que ininterruptamente até 1962, quando o comandante militar Ne Win, tomou o poder, através de um golpe.

Ne Win governou o país diretamente até 1988, à frente do chamado Partido do Programa Socialista da Birmânia, que defendia uma chamada “via birmanesa ao socialismo” que, no entanto, como já mencionado, não passava de uma ditadura capitalista sanguinária, que proibiu a existência de partidos políticos e de sindicatos independentes, levando a população a tal nível de exploração que, no final dos anos 1980, Burma era um dos dez países mais pobres do mundo.

Este período também foi caracterizado pela violenta repressão às etnias minoritárias, em um verdadeiro processo de limpeza étnica, particularmente contra o povo rohingya (de tradição muçulmana), cujos direitos começaram a ser restritos a partir de 1962 e a nacionalidade birmanesa completamente negada com a “Lei de Cidadania”, aprovada em 1982, que lhes impede, até hoje, o acesso a escolas, votar, possuir terras e propriedades, usar hospitais e direitos no mercado de trabalho, transformando-os em um das maiores populações apátridas do mundo.

A deposição de Ne Win se deu sob um massivo processo de mobilizações e lutas operárias e populares, iniciada em agosto de 1988 (a “Rebelião 8888”, leia mais nos artigos seguintes), mas a intervenção política e poder econômico das Forças Armadas birmanesas falaram mais alto, com um novo golpe, em 1989, quando o nome do país foi mudado para República da União de Myanmar, como mencionamos acima.

De lá, até 2011, a ditadura impôs um regime de terror e fome. Em 1992, por exemplo, guerrilhas organizadas por grupos étnicos minoritários, camponeses e trabalhadores, foram fortemente reprimidas, provocando um gigantesco êxodo migratório para países vizinhos. A militarização foi feroz. Durante todo este período, o governo destinava cerca de 40% do orçamento para a manutenção de um exército composto por quase um milhão de soldados, um dos maiores do mundo.

Enquanto isto, o povo naufragava na subnutrição e na miséria, sem, contudo, parar de lutar. A situação chegou ao limite na primeira década dos anos 2000, quando, em escala mundial, o capitalismo estava à beira de sua maior crise, situação que a ditadura respondeu dobrando o preço da gasolina e quintuplicando o do gás natural, o que levou a um aumento generalizado do custo de vista.

Essa situação detonou um enorme processo de mobilizações, entre agosto e novembro de 2007, conhecido como a Revolução do Açafrão, que culminou em um protesto que reuniu mais de 100 mil pessoas em Rangon (ou Yangon, a maior cidade do país), apesar da forte repressão, que resultou na prisão de 6.000 pessoas e no assassinato de dezenas.

A passagem de um ciclone, em maio de 2008, que devastou o país, matando 134 mil pessoas e deixando 2,4 milhões de desabrigados, aumentou ainda mais a insatisfação e ódio com a ditadura que, não resistindo à pressão, convocou eleições em 2010, dando início ao chamado “período democrático”, que perdurou até o golpe realizado no dia 1º de fevereiro.

A importância destes processos de lutas, particularmente a “Revolução do Açafrão”, pode ser exemplificada pelo fato de que, hoje, o “Movimento Sarong” os reivindica como modelo e fonte de aprendizado para as lutas atuais.

Democracia, como sempre, para poucos

O processo de transição foi controlado de perto pelos militares e negociado com as principais lideranças da oposição burguesa no país. Em 2011, o poder foi assumido por Thein Sein, ex-comandante militar, que já exercia o cargo de primeiro-ministro desde 2007. Sein ficou no poder até as eleições realizadas em novembro de 2015, quando foi eleito o primeiro presidente civil do país, o professor universitário Htin Kyaw, da Liga Nacional pela Democracia (LND), fundada em meio da “Rebelião 8888”, como principal representante da oposição à ditadura.

No entanto, Htin Kyaw bem como seu sucessor, Win Myint (também deposto no recente golpe) sempre foram considerados meros fantoches nas mãos de quem, de fato, exerce o poder: Aung San Suu Kyi, a filha do “herói da independência” que, proibida de exercer a presidência, em função de uma lei que não dá este direito a pessoas que tenham cônjuges estrangeiros (ela é casada com um britânico), atuava como Conselheira de Estado.

Diga-se de passagem, Suu Kyi (sobre a qual voltaremos a falar nos próximos artigos) é a primeira a assumir quem realmente manda no país, já tendo declarado publicamente que está “acima do presidente” e é a responsável por tomar todas as decisões. De imediato, cabe apenas citar que, apesar de reconhecida como principal opositora dos militares e símbolo da luta pela “democracia”, Suu Kyi e seu partido estão longe de ser, de fato, alternativas para o povo sofrido e a classe trabalhadora de Burma.

Primeiro, porque não intencionam, de forma alguma, mexer uma palha naquilo que está realmente por trás desta longa história de opressão e exploração: a estrutura capitalista do país e sua submissão aos interesses imperialistas. Além disso, Suu Kyi, desde sempre, tem sido conivente com os processos de limpeza étnica em seu país, como já foi, inclusive, denunciada por órgãos internacionais, afirmando que as denúncias se devem ao um “grande iceberg de desinformação” e, ainda, defendendo a ações criminosas do Exército, principalmente contra os muçulmanos, rejeitando por completo que isto se trata de um genocídio.

O fato é que todo esse período, tanto sob a batuta dos militares e Thein Sein, quanto sob o comando da LND, foi marcado por um amplo processo de repressão às minorias étnicas e religiosas, pela manutenção de níveis absurdos de exploração e opressão socioeconômica e por constantes denúncias de corrupção.

Uma situação que pode ser exemplificada por um dado pela Unicef, em 17 de novembro de 2020: “Antes da pandemia da COVID-19 atingir Myanmar, um terço das crianças –  mais de 5 milhões –  já viviam na pobreza. Outros seis milhões viviam em família imediatamente acima do chamado limite da pobreza, tornando-os particularmente vulneráveis às crises econômicas. Em outras palavras, mais de metade das crianças de Myanmar vivia na pobreza ou perto da pobreza antes do impacto da COVID-19, que pode agravar ainda mais a sua terrível situação”.

Como veremos, é isto que também explica o forte caráter operário na luta contra o golpe e, também, porque, dentre os trabalhadores, há muita gente que não veja a devolução do poder a Aung San Suu Kyi como uma solução para seus problemas. Neste sentido, vale citar a experiência de Kyaw Myo, um dos principais membros da Federação dos Sindicatos de Toda Burma, que está a frente dos protestos, e sintetizou sua desconfiança com o “governo democrático” em uma frase: “Eu não apoio a LND. Eu não apoio nenhum partido político [que governe] sob a constituição de 2008”, disse ele, referindo-se à legislação, mantida intocada por Suu Kyi, que manteve os privilégios políticos e econômicos dos militares.

E não lhe faltam motivos para se opor a LND, como foi registrado em um artigo publicado pelo portal da Rádio Pública Nacional (NPR, na sigla original, em inglês), no dia 23 de março: “[Kyaw Myo] foi um desses ativistas que passou o mandato da LND entrando e saindo da prisão, por apoiar os protestos contra os abusos trabalhistas. Ele foi condenado a seis meses de prisão por ajudar a organizar uma marcha em Naypyidaw, em 2016; mais dois meses por protestar contra uma violenta repressão policial contra um protesto de trabalhadores do setor de vestuários, em Yangon, e mais três meses por apoiar outro, em 2020.” (“‘Espírito de luta’”: por dentro da classe operária, o direito das minorias nas raízes dos protestos em Myanmar).

Foi neste contexto que aconteceram as eleições parlamentares em novembro de 2020, quando, novamente, a Liga Nacional pela Democracia abocanhou a enorme maioria dos votos, elegendo 396 dos 476 deputados, algo visto como uma derrota humilhante pelo Partido União de Solidariedade e Desenvolvimento, entidade que serve de fachada para os militares que deram o golpe em Fevereiro.

Esse é o tema do próximo artigo. Por ora, para encerrar este resgate histórico, cabe citar uma conclusão apontada no já mencionado artigo publicado no site da LIT-QI, durante a Revolução do Açafrão, em 2007, e que ainda é válido para discutirmos como por fim, de fato, a este terrível ciclo de repressão e exploração ao combativo, mas sofrido, povo de Burma:

(…) O que é preciso – e falta dramaticamente, até agora, também na Birmânia – é um partido revolucionário, baseado num programa transitório, que se construa nessas grandes lutas, que organize o crescimento destas e a autodefesa (não mandando massas inertes para frente de fuzis), que tenha como palavra-de-ordem a nacionalização, sem indenização, da terra e das grandes empresas de extração de matéria-prima do país e a criação de uma democracia baseada nos conselhos de operários e camponeses pobres, capaz de dirigir as massas até uma real vitoria, numa perspectiva socialista.”

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(*) Com a colaboração de Herbert Claros, militante do PSTU de São José dos Campos e dirigente da Secretaria Executiva e do Setorial Internacional da CSP-Conlutas.

(**) Parte dos dados e processos históricos mencionados foi retirada de uma pesquisa acadêmica produzida por Erik Herejk Ribeiro, “A Birmânia até 1950: desafios e legado histórico” (2012), do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/71701/000879305.pdf).