“A culpa é da natureza”, repetem como um mantra os governantes sobre a tragédia que atingiu o Rio de Janeiro. Como se não bastasse, esse já costumeiro discurso agora é acompanhado por uma odiosa tentativa de culpar os moradores por habitar aéreas de risco.

” Não é possível a construção irregular continuar. Se você pegar essas pessoas que morreram, quase todas estavam em áreas de risco.”, disse o governador Sergio Cabral (PMDB), que prometeu medidas duras contra a ocupação em áreas de risco. Para o governador aliado de Lula, é preciso ampliar as medidas de “limpeza” urbanas já implementadas, como a construção do muro na Rocinha, que “impede” o avanço da comunidade sobre a mata.

É obvio que a intensa chuva do dia 6 contribuiu para a tragédia. Em 12 horas a água que caiu sobre o Rio é o equivalente a dois meses de chuva. Há toda uma discussão no meio cientifico se fenômenos climáticos extremos como esse tem alguma relação com o aquecimento global. Mas essa quantidade de água não explica por si só porque a tragédia no Rio provocou a morte de mais metade das vítimas causadas pelo terremoto chileno.

Desastres naturais não são frutos de obra divina, nem da fortuna ou do acaso. São resultados das decisões do ser humano. Uma catástrofe “natural” como a que atingiu o Rio desmascara as formas concretas em que se organiza uma sociedade; sobre quais são suas prioridades, quem toma as decisões e, finalmente, quem está excluído delas.

Diversos estudos encomendados por governos sobre a situação de risco e vulnerabilidade social destacam a necessidade de “gestão ambiental”. Contudo, mostram apenas as áreas que não podem ser ocupadas, fechando os olhos para as causas pelas quais os setores mais pobres da população ocupam as áreas de risco. Dessa forma, o prato está servido para que políticos oportunistas e a grande mídia descarreguem a culpa pelos desastres sobre as costas da população.

Ninguém que habita locais de risco está lá porque gosta. Alguém realmente acha que os moradores do morro do Bumba, em Niterói, gostavam de expor suas famílias a uma vida miserável sem a menor infra-estrutura, vivendo em cima de um lixão com o chorume correndo pelas vielas? Milhões são forçados a ocupar esses territórios devido ao desemprego, o aumento da miséria e, sobretudo, da exclusão da população mais pobre de áreas (“sem riscos”) destinadas à especulação imobiliária.

O resultado foi a explosão das favelas e moradias precárias em todo o país. Em Niterói, o número de favelas aumentou 200% em oito anos. No Rio, até o fim de 2010 a população das 1.020 favelas atingirá 1,3 milhão de habitantes, 22% mais do que uma década atrás, ou quase o dobro do ritmo de crescimento populacional do restante da cidade. O mesmo acontece nos entorno de São Paulo, mas por não ter a mesma topografia carioca a favelização fica mais “oculta” aos olhos das elites e da classe média. Enquanto o Jardim Pantanal se mantiver longe do Morumbi e de Moema está tudo bem, raciocina a asquerosa elite paulistana.

Culpam pessoas pobres “sem instrução” por teimarem em morar em “áreas de risco” e de não contribuírem para o bem comum. Mas como considerar comum o que apropriado privadamente?

Por outro lado, as análises de riscos também se articulam com outras palavras bonitas, como “manejo e desenvolvimento sustentável”, tão a gosto de Marina Silva e do ex-ministro Carlos Minc.

A palavra “sustentável” incorporada ao “desenvolvimento” é uma jogada para mascarar os problemas causados pelo modo de produção de mercadorias. O problema é apresentado então como “desvios” do modelo e não do sistema capitalista de conjunto.

Serve também para que uma sociedade em “abstrato” tenha responsabilidade sobre a degradação da natureza. Serve para que a culpa e as responsabilidades sejam individualizadas. Ocultam-se assim as classes sociais que compõem essa sociedade, e preserva-se a dominação de uma delas sobre as outras.

O típico raciocínio das elites mais uma vez criminaliza as favelas. No Brasil do governo Lula, os pobres continuam sendo culpados por serem pobres.