Milor, morto aos 88 anos

Morto aos 88 anos, Millôr Fernandes deixa uma imensa herança jornalística e literária, além de um vazio maior ainda no humor brasileiroJornalista, desenhista, cartunista, humorista, dramaturgo, escritor, fabulista, frasista e tradutor brasileiro. Millôr Fernandes era um homem múltiplo e resumi-lo é impossível e injusto. Seu gênio primoroso era daqueles que não possuem precedentes na história, sobretudo na história da imprensa e da literatura brasileiras. Na vida, fez de tudo um muito e sempre alcançou sucesso de crítica e público em todas as áreas em que se meteu. Até mesmo nas atividades mais improváveis. A invenção do frescobol, por exemplo, foi ideia dele e de um grupo de amigos. Em mais de 70 anos de carreira, Millôr usou sua inteligência corrosiva e seu humor fulminante para escrever, “sem borracha”, o próprio nome entre os maiores intelectuais do Brasil. Infelizmente, no último dia 27, os órgãos do mestre de 88 anos resolveram abrir falência, um ano depois de ele ter sofrido um acidente vascular cerebral isquêmico. Millôr Fernandes chegou ao fim do espetáculo, mas jamais sairá de cena e nunca terá as cortinas de seu trabalho fechadas.

A vida é injusta
Milton Viola Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923, no bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Na verdade, há duas confusões aqui. Oficialmente, a data de nascimento é 27 de maio de 1924, ano em que ele foi registrado, e o nome era para ser Milton, como os pais Francisco Fernandes e Maria Viola Fernandes queriam. Entretanto, uma escrita à mão mal feita transformou o “t” em “l” e o “n” em “r”. A trapalhada acabou deixando Millôr no registro do cartório, o que ele só descobriu aos 17 anos. Mas foi melhor assim. O acidente de caligrafia lhe rendeu logo um bom nome artístico.

Ainda muito cedo, Millôr conheceu a dureza e as injustiças da vida. Aos dois anos, em 1925, ele perdeu o pai e a mãe precisou trabalhar como costureira para sustentar os filhos. Nove anos depois, veio a morte da mãe e Millôr foi morar com um tio materno. Motivado pela tragédia da orfandade, concluiu que Deus não existia. “Tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia”, escreveu ele sobre a infância. A partir de então, as injustiças da vida, sobretudo as sociais, serviram para fortalecer seu ateísmo e lhe dar o que ele mesmo chamou de “a paz da descrença”. “Você nunca viu 10 mil incrédulos invadirem o país de outros 10 mil incrédulos para impor sua descrença.”, dizia ele com seu humor ácido.

Millôr estava coberto de razão em suas convicções. A existência de Deus é realmente improvável e sua brasilidade ainda mais. Em uma semana, o Brasil perdeu dois gênios, o humorista Chico Anysio e o próprio mestre Millôr Fernandes. Enquanto isso, o senador José Sarney (para citar apenas um exemplo), também na casa dos 80 anos, não pega nem mesmo um resfriado.

Uma mente inquieta e irônica na imprensa
Millôr começou na imprensa ainda muito jovem, aos 14 anos. E não demorou muito para que seu talento para a sátira fosse reconhecido. Aos 19, foi contratado pela revista O Cruzeiro e na mesma época ganhou um concurso de crônicas da revista A Cigarra, onde passou a trabalhar. Um dia um anunciante deixou de enviar quatro páginas de publicidade para a revista e o jovem Millôr foi o encarregado de preenchê-las. Nascia a coluna “Poste Escrito”, assinada sob o pseudônimo Vão Gogo. Foi um sucesso imediato. As vendas subiram de 11 mil exemplares para 750 mil. Daí em diante, ele não parou mais. Assumiu a direção de duas publicações, A Cigarra e O Guri, e se tornou colunista no Diário da Noite.

De volta à redação de O Cruzeiro, em 1941, passa a assinar a coluna “Pif-Paf”, que mais tarde, em 1964, se transformaria numa revista quinzenal, marcando o início da imprensa alternativa no Brasil, mesmo com apenas 8 edições. Millôr só sairia de O Cruzeiro em 1963, depois de uma encrenca boba da Igreja Católica com A Verdadeira História do Paraíso dele. A revista não segurou a irreverência do autor e a igreja não gostou de ver o criador repreendido nos versos “Essa pressa leviana / demonstra o incompetente / fazer o mundo em sete dias / com a eternidade pela frente.”. Depois disso, Millôr passou marcar seu nome em muitos outros veículos da imprensa, entre eles os jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, além da revista Veja.

Entretanto, sua mais impactante realização na imprensa brasileira se deu em 1969, com a fundação do jornal O Pasquim, uma publicação escrachada e declaradamente contra a Ditadura Militar. Como praticamente toda a carreira profissional de Millôr foi cercada pela censura, seu artigo de estréia em O Pasquim não poderia ter outro tom que não fosse o pessimismo cômico. “Se este jornal for independente, não dura três meses. Se durar três meses, não é independente”, dizia um trecho. Durou bem mais de três meses, mas era o jeito Millôr Fernandes de dizer que a coisa estava feia.

O humor inteligente e subversivo
É comum as pessoas acharem que o humor é um gênero menor e fácil de fazer. Mas não é. Millôr Fernandes mostrou ao longo de sua vida que o bom humor é aquele que nos faz pensar achando graça. É aquele que subverte a ordem, que satiriza a vida e seus problemas. É claro que isso não precisa ser uma regra, mas humor também não tem nada a ver com as piadas de mau gosto de alguns ditos “humoristas”, que apenas reforçam preconceitos em nome da liberdade de expressão. Recentemente, numa entrevista à revista Playboy, o cronista Luis Fernando Veríssimo afirmou que o único limite do humor está no bom senso. E o que não faltava ao sarcasmo e à inteligência perspicaz de Millôr era o bom senso. Crítico, principalmente. Para ele, o humor era “a quintessência da seriedade”.

Millôr Fernandes não deixou apenas um vasto trabalho na imprensa, o que por si só já o consagraria. Na literatura e no teatro, o autor também deu muitas demonstrações de seu talento como escritor e dramaturgo. Millôr era como o ex-jogador de futebol Romário, dentro da pequena área. Precisava apenas de uma brechinha para fazer um estrago. É difícil escolher uma obra, mesmo porque o próprio Millôr dizia que obra era “coisa de pedreiro”. Mas é possível destacar as melhores produções, a exemplo de Lições de um Ignorante, Um Elefante no Caos, Liberdade, Liberdade, Todo Homem é Minha Caça, Hai-Kais, Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos e Crítica da Razão Impura ou O Primado da Ignorância. Este último, inclusive, tendo como alvos os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.

Do deboche de Millôr Fernandes, ninguém escapava. Nem ele mesmo. Ironizando o próprio ofício de fazer humor, ele dizia que “o homem é o único animal que ri, e é rindo que ele mostra o animal que é.”. Parte de sua grande capacidade intelectual, que ele julgava ter sido influenciada principalmente pelas histórias em quadrinhos, consistia em satirizar as pessoas, os costumes, as ações humanas, a política, as ideologias. Millôr apontava sua língua e traço ferinos para aquilo que valia a pena e precisava ser subvertido. “Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo para o Congresso: Quando alguém gritar ‘Pega ladrão’, finge que não é com você.”, diz outra de suas frases corrosivas.

Mesmo sendo um clichê, não se pode deixar de dizer que Millôr Fernandes era um gênio. Mas até mesmo os gênios dizem grandes bobagens e reproduzem, em certa medida, as contradições da sociedade que os criou. Lamentavelmente, o machismo também esteve presente na produção do Millôr, algo até recorrente na geração de artistas da qual ele fez parte. É claro que isso não ofusca o trabalho do Millôr, mas negá-lo ou escondê-lo seria um grave erro, além de uma injustiça e um acobertamento da opressão. O machismo é uma mazela da sociedade dividida em classes, e não deve ser perdoado de forma alguma. Mesmo vindo de uma grande cabeça, como era a do Millôr e de tantos outros.

Contudo, com a morte de Millôr Fernandes, as artes brasileiras não perdem apenas um homem, perdem um conjunto inteiro de artistas, cada um mais singular do que o outro. “Todo homem nasce original e morre plágio.”, dizia ele. Acabou contrariando a si mesmo. Hoje, sem o Millôr, o Brasil é um país mais triste e menos inteligente.

Frases
“Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar.”

“O cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.”

“O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é.”

“Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem.”

“O otimista não sabe o que o espera.”

“Eu também não sou um homem livre. Mas muito poucos estiveram tão perto.”

“Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.”

“Brasil, condenado à esperança.”

“Brasil; um filme pornô com trilha de Bossa Nova.”

“Todo homem nasce original e morre plágio.”

“O dedo do destino não deixa impressão digital.”

“Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”

“Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo pro Congresso: Quando alguém gritar “- Pega ladrão”, finge que não é com você”

“Quando os eruditos descobriram a língua, ela já estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado”.

“A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho.”

“Não devemos odiar com fins lucrativos. O ódio perde a sua pureza”.

“Um Homem só é completo quando tem família; mulher e filhos. Desculpe: completo ou acabado?”

“Deus é realmente um ser superior. Não há nada nem parecido no Governo Federal”.

“Prudência: E devemos sempre deixar bem claro que nenhum de nós, brasileiros, é contra o roubo. Somos apenas contra ser roubados”.

“Feliz é o que você percebe que era, muito tempo depois”.

“Aprenda de uma vez: Se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. A felicidade começa com a constatação do óbvio”.

“Nem só comer e coçar é questão de começar. Viver também”.

“Os ateus têm um Deus em que nem eles acreditam”.

“O melhor do sexo antes do casamento é que depois você não precisa se casar”.

“Tudo na vida tem uma utilidade – se não fosse o mau cheiro quem inventaria o perfume?”

“Voto de pobreza, obviamente só pode ser feito por rico”.

“Errar é humano. Botar a culpa nos outros também”.

“O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato”.

Atualizado às 20h40 do dia 31 de março