`Cromafoto`O operário aposentado André Lancteau integra a delegação da França, um dos diversos países representados no Conat. André é militante da fração pública da Lutte Ouvriére, organização trotskista francesa. Nesta entrevista a Ana Cristina Silva, Hélcio Duarte Filho, Yara Fernandes e Rodrigo Correia, jornalistas que acompanham o Conat, ele fala sobre os protestos contra os ataques aos direitos trabalhistas e a questão dos imigrantes na França. Para ele, que iniciava sua militância no Maio de 68, os protestos de abril de 2006, contra o Contrato do Primeiro Emprego, lembraram 1968 e deram novo impulso ao movimento sindical. “Gente que estava um pouco desmoralizada retomou a confiança, retomou o entusiasmo, um entusiasmo que foi passado pela força das lutas dos jovens”. Ele ainda falou da importância do Conat e da fração política a que pertence, que também se apresenta como “L’Etincelle” (“A Faísca”). A entrevista contou com a tradução de Delphine Eyraud.

Qual a impressão que você tem sobre o Conat? o que está achando desse congresso de fundação de uma nova alternativa de luta?

Lancteau – Minhas impressões são boas. Aprendi muita coisa, fiquei impressionado pelo ato de vocês, pela Conlutas. É impressionante o entusiasmo de todos os camaradas, que eu posso perceber nas plenárias. É uma pena que os outros camaradas da França e da Europa não estão aqui para assistir esses debates que são muito importantes, para poder conhecer os problemas da América Latina, do Brasil, da Argentina. É uma pena também eu não poder me comunicar com mais facilidade para participar dos debates, ajudar nas traduções.

Você acompanhou as recentes manifestações na França contra o Contrato do Primeiro Emprego (CPE). Qual a avaliação que você faz dessas manifestações?

Lancteau – Acompanhei as lutas, não só através das manifestações, mas também conversando e tentando discutir muito com os jovens. Não pude participar das assembléias gerais da coordenação, até porque não sou mais estudante, sou um militante operário aposentado. Mas tentei conversar muito com o mundo do trabalho, para tentar fazer esse vínculo e convencer os trabalhadores que essa luta era também deles e da importância dessa luta dos jovens para os trabalhadores. E o resultado claro dessa luta foi o recuo do governo. E o saldo mais importante foi ter cada vez mais gente se juntando na luta. Gente que estava um pouco desmoralizada retomou a confiança, retomou o entusiasmo, um entusiasmo que foi passado pela força das lutas dos jovens.

Como você avalia a questão dos imigrantes? É uma luta isolada ou é um reflexo de todo um contexto do que está acontecendo na Europa?

Lancteau – Existiu também um vínculo entre a revolta de novembro da periferia dos imigrantes e seus filhos. Houve uma parcela de escolas secundaristas que foi nas passeatas junto com os universitários, que eram mais do centro de Paris, dos centros das grandes cidades. Mas foi pequeno, por causa da pouca compreensão dos jovens em relação ao CPE. E tinha ainda o problema da falta de direção, para acompanhar esses jovens e articular uma unidade.

Mas não teve um caráter anti-imperialista, mesmo que inconsciente, uma contestação ao neoliberalismo?

Lancteau – Não teve um caráter anti-imperialista por causa das organizações, que queriam manter o movimento num patamar mais limitado. Agora, o que houve de novo foi o enfrentamento político. Por exemplo, os enfrentamentos com a polícia e o Estado. Então, isso foi muito importante. Há muito tempo não víamos um movimento tão politizado. Teve também uma importância muito grande a luta dos secundaristas, o que radicalizou mais o movimento, colocou-o num patamar maior. Principalmente os jovens da periferia o que causou, por causa da polícia racista, um enfrentamento muito grande.

Como você vê a relação desse ataque do CPE com o ataque que está sendo feito no Brasil com a reforma sindical e trabalhista? Qual é a situação dos direitos trabalhistas na Europa e especificamente na França?

Lancteau – Esse ataque do CPE se insere numa série de ataques mais gerais. Teve um ataque na aposentadoria, uma série de cortes na saúde, muitos hospitais fechando, teve o problema dos alojamentos, um monte de gente morrendo de frio na rua, num país imperialista. Tem toda uma série de ataques contra a classe operária francesa e européia, um exemplo foi o fechamento da Peugeot na Inglaterra, que causou muito desemprego, e a empresa aproveita para explorar trabalhadores que recebem ainda menos, porque há um rebaixamento dos direitos dos operários. Os operários na França se sentem envolvidos, pois sabem que tudo isso vai trazer conseqüências. Os ataques não só estão tirando direitos da classe operária, mas também da classe média.

Na abertura do Conat, você fez duras críticas à esquerda francesa, inclusive à esquerda mais radical, pela posição que a esquerda como um todo tomou na França diante de novembro e diante das mobilizações contra o CPE. Por que a posição da esquerda francesa, desde a esquerda mais tradicional à esquerda mais radical foi tão ruim assim?

Lancteau – A esquerda tradicional conhece muito bem os problemas da periferia porque esteve no governo muitos anos. Essa esquerda reduziu os protestos de novembro a um problema de bandidos, de máfia, ralé, de jovens queimando carros, quando na verdade se trata de um problema econômico muito profundo, de desemprego, de exploração de jovens, de filhos de imigrantes que foram retirados de seus próprios países pra vir construir a riqueza da França. A preocupação maior da esquerda, e particularmente também da extrema-esquerda e também da organização da qual eu faço parte, são as eleições de 2007. Eu sou de uma fração pública da organização Lutte Ouvrière e houve muita disputa lá em relação a esta questão.

Como você vê a situação do movimento sindical na França e os acontecimentos na França em relação às lutas, por exemplo, na Alemanha contra os ataques à Previdência e o Conat no Brasil. Você vê alguma ligação entre essas mobilizações?

Lancteau – O movimento sindical na França, que é forte, tem muito peso no país. Não fala nada sobre o que se passa aqui, não fala do que se passa na América Latina, não faz uma ligação entre as lutas. Quando são questões mais complicadas, como em novembro, como no CPE, também não conseguem se enfrentar com a própria base deles. Um exemplo é o amianto. Uma pesquisa está prevendo centenas de milhares de mortos pelo uso dele. Este é um problema do mundo inteiro e os sindicatos não tentam se coordenar para encaminhar uma luta.

Você pode fazer uma descrição de como foram as mobilizações, qual era a composição social, o que as pessoas diziam? Algumas fotos que chegaram ao Brasil tinham faixas aparentemente anarquistas, com dizeres como “sem políticos e sem sindicatos” nas manifestações. Outra coisa, você fala bastante dos estudantes, mas as notícias que chegaram aqui falam que começou a ter uma participação grande dos trabalhadores. Qual é o peso disso?

Lancteau – Foi um apoio muito mais moral, mas não uma adesão completa. Houve gestos de solidariedade, algumas empresas pararam, mas não foi um engajamento inteiro. Houve greves, mas não foi uma greve geral. Lembrou o Maio de 68. Com os jovens na rua, tudo é possível! Isso empurra os sindicatos, os partidos políticos, empurra todo mundo. Teve coisas boas, teve coisas não tão boas, mas empurrou todo mundo para frente, e nisso lembrou 68. Nós também fizemos bandeiras, faixas, dizendo que governo tem medo de um novo 68.

A mobilização começou nas universidades de Reno e depois se espalhou na França inteira. Dentro da universidade tinha uma tensão para fechar a universidade, mas mesmo os estudantes que eram contra parar a universidade tinham muita simpatia pelo movimento. Os secundaristas aderiram depois. E o movimento, desde o início, teve muita simpatia dos trabalhadores, do mundo do trabalho, que tinham perdido a confiança, que tinham medo por causa das derrotas que tinham sofrido. E essa mobilização deu de novo confiança ao mundo do trabalho. Um exemplo é por causa da derrota do movimento dos professores há três anos. Eles perderam depois de uma greve muito dura. Tem também o próprio medo da demissão. Isso explica esse medo. Mas alguma coisa mudou agora, as discussões são diferentes, as preocupações são diferentes, ficou de lado a preocupação com as eleições. O CPE foi entendido pelos trabalhadores como um ataque a todos, um ataque ao código do trabalho.

Aqui no Brasil existe um discurso muito forte de que é preciso mudar as leis trabalhistas para gerar empregos. Parte da cobertura da mídia sobre as manifestações na França foi também nessa direção. A Rede Globo disse que as manifestações estão na contramão da maré do mundo, contra a história. O que você acha disso e qual é o sentimento da França em relação a isso?

Lancteau – Na França tem esse mesmo discurso. Por exemplo, na Renault eles sempre diziam que tinha que flexibilizar o trabalho. Isso significava que os operários tinham que trabalhar sem horário de almoço. Com trabalhadores que tinham média de 48 anos, corriam risco de acidente de trabalho… Então esse é o discurso também do governo francês, mas os trabalhadores não assumem esse discurso como seu.

Sempre que acontece uma manifestação de maior porte na França, no mundo, se remete a 68. E não foi diferente nesse caso. Você pode falar um pouco sobre isso e sobre 68, sobre sua participação?

Lancteau – Maio de 68 foi para mim o primeiro contato com organizações trotskistas. Eu comecei a trabalhar muito jovem, em 1962. Tinha 19 anos e trabalhava como operário e tive primeiro contato com tudo que é tipo de organização, maoístas, anarquistas, trotskistas, de todas as organizações. Nesse contato, eu lembro da passeata do 13 de maio que juntou milhões de pessoas.

Nessa época, a idéia dominante era de que era preciso mudar o mundo. E hoje estamos num período de crise e o que mais pesa é a idéia de que não devemos pagar pelo preço da crise. Os trabalhadores querem ser respeitados, querem ter trabalho, e não pagar pela crise. É outro patamar. Em 68, havia, sobretudo para os operários, uma visão mais aberta sobre o mundo, de que era possível transformar todo o mundo.

Para a minha geração, o Maio de 68 é uma referência importante. Mas para os jovens de hoje eu não sei dizer. A gente falou sobre o peso das derrotas, mas não significa também que naquela época, em 68, a situação era melhor. Eu comecei a trabalhar aos 14 anos na fábrica, e não eram 35 horas semanais, eram 50 horas. Para as mulheres era proibido usar calças. E naquela época, as pessoas que tinham a idade que tenho agora falavam para mim sobre 1936, da Frente Popular.

Fale um pouco para nós sobre seu histórico de militância.

Lancteau – Eu comecei a trabalhar em fábricas pequenas desde 1962, aos 14 anos. Quando o maio de 68 mudou minha cabeça, quando eu decidi militar, escolhi a Reunalt para trabalhar, que era uma das maiores empresas, onde trabalhei por 35 anos. Era sindicalista das comissões de fábrica ligadas à CGT. Quando fui expulso da CGT, fui para CFDT, de onde fui expulso também e voltei para CGT. De 74 até 85 estava na CFTD. Mas não dava mais para criticar governo e estar dentro da CFDT. E foi um governo que implementou vários ataques. Foi o governo de Miterrand que primeiro estipulou a cobrança da diária nos hospitais, que não tinha antes. Eu fui aposentado, descartado, muito cedo pela Renault, o que eles chamam de pré-aposentadoria.

Hélcio Duarte Filho – Estive na França nas comemorações dos 150 anos do Manifesto Comunista. E a delegação brasileira quase entrou em estado de choque lá, pois ela foi pra lá mais ou menos no espírito de festa, como o de hoje aqui, de luta, e encontrou uma atividade muito acadêmica. Houve um impasse durante todo o evento com a delegação brasileira, que foi cantar a Internacional. O PC francês não queria cantar de jeito nenhum e a informação que tivemos foi de que há cinco anos o PC não cantava. Há um reflexo muito grande na esquerda da queda do Leste Europeu? Ainda tem esse impacto tão grande? E essa questão da Internacional procede? Aqui o Conat já começou cantando a Internacional…

O PC canta hoje a Internacional, ele reintroduziu a Internacional. O problema é que os militantes não são os mesmos de há 20 ou 40 anos. Os militantes do PC que eu conheci durante toda a minha vida são todos militantes que vêm de uma tradição comunista nacionalista, claro, mas tinham princípios. Agora acabou, não têm mais.

A Lutte Ouvrière (LO) é uma organização que luta prioritariamente nas empresas. Toda a extrema esquerda critica a postura obreirista da Lutte Ouvrière. Eu acho que é fácil essa crítica, de a Lutte Ouvrière ser obreirista. A Lutte Ouvrière tinha uma política específica em relação às outras organizações de esquerda.

Eles (LO) não têm políticas específicas para juventude, para mulheres, sempre priorizaram o trabalho operário. Apesar de eu não estar trabalhando, eu milito tanto quanto antigamente.

Houve crescimento da organização neste último período, com as mobilizações?

Lancteau – Sobre a Lutte Ouvrière eu não sei muito, pois sou da fração. Sobre a fração, nós juntamos muitas pessoas ao nosso redor, mas não está definido ainda se se tornarão simpatizantes ou militantes, não estão consolidados. Tinha bastante gente discutindo com os camaradas, mas ainda não sabemos o que vai dar. Mas não estamos diminuindo.

Na Lutte Ouvrière, são entre 2 mil e 2.500 pessoas. Mas é uma organização muito forte, organizada. Se fosse pelos critérios do Secretariado Unificado*, por exemplo seriam muitos mais, levando em conta os simpatizantes. A fração é composta por entre 100 e 150 militantes.


* Organização internacional que se reivindica trotskista, com maior influência na França e outros países na Europa. No Brasil, a maior parte dos militantes que reivindicam o SU é a Democracia Socialista, corrente petista.