Milhares na Argentina protestam contra a impunidade
Américo Gomes, do Instituto José Luís e Rosa Sundermann

Muitos exemplos estão chegando de nossos irmãos da América Latina. A luta dos trabalhadores e dos setores mais explorados da sociedade em nosso subcontinente demonstram que estamos vivendo em uma nova conjuntura na região.

Recentemente, os trabalhadores paraguaios queimaram o parlamento e, com seu processo de mobilização, conseguiram uma vitória importante derrotando a aliança Carter-Lugo pela reeleição. Agora, os trabalhadores argentinos demonstram que o povo nas ruas pode barrar a impunidade.

Depois de os argentinos conviverem com os retrocessos impostos pelos governos que se seguiram às mobilizações de 2001, entre eles o de Cristina Kirchner, uma decisão da Corte Suprema gerou indignação e uma revolta generalizada. A deliberação permitiu diminuir a pena dos agentes do Estado que cometeram atrocidades durante a ditadura, como torturas, sequestros, estupros e outros crimes de lesa humanidade.

A Corte resolveu usar essa lei, que já não estava mais em vigor, para aliviar a sentença de Luis Muiña, condenado, em 2011, a 13 anos de prisão por sequestrar e torturar cinco pessoas no hospital Posadas, um centro de detenção. Assim, abriu precedente para que dezenas de outros torturadores pudessem pedir o mesmo tratamento.

Hoje, há cerca de 700 agentes da repressão cumprindo pena em regime fechado na Argentina, entre eles o ex-presidente Reynaldo Bignone; o médico Jorge Luis Magnacco, o “obstetra da Esma (Escola Superior da Marinha)”, condenado por roubo de bebês; e Alfredo Astiz, o “anjo da morte”, que cumpre pena de prisão perpétua por sequestros e torturas. Na Argentina, adota-se a interpretação do Estatuto de Roma, que prevê que crimes como sequestro, assassinato, tortura e roubo de bebês, quando praticados pelo Estado, são considerados de lesa humanidade e, portanto,imprescritíveis.

Milhares de pessoas saíram às ruas gritando: “nunca mais privilégios para os criminosos de lesa humanidade, nunca mais genocidas soltos”. Famílias inteiras, avós e avôs, mães e filhos pequenos foram às ruas, mostrando que o ódio pelos criminosos da ditadura passa de geração a geração. Houve gritos contra o governo, que esta por trás da sentença. Foi Mauricio Macri, atual presidente do país, que nomeou os juízes Rosatti, Rosenkantz e Highton de Nolasco que tomaram a decisão.

Fruto da mobilização, o Congresso Nacional sancionou, em caráter de urgência, uma lei que limita os alcances da norma aprovada pela Corte Suprema, o que já foi uma primeira vitória. Isso obrigou até o presidente Macri a se declarar contra a lei, abandonando os juízes que seguiam suas ordens à própria sorte.

Ficou demonstrado, mais uma vez, que os trabalhadores e o povo pobre mobilizados e nas ruas conseguem vitórias.

A luta deve seguir
Foram as mobilizações das massas e a rebelião de 19 e 20 de dezembro de 2001 que derrubaram o governo de De la Rúa, que anularam as leis de impunidade de Alfonsín e abriram a possibilidade de se julgar os genocidas da ditadura. Com isso, aconteceram alguns julgamentos. Mesmo assim, depois de 16 anos da anulação das leis de impunidade, só foram condenados 737 genocidas, menos da metade dos processados. Vale lembrar que no Brasil, apesar de ter vários presidentes perseguidos, presos e torturados pela ditadura, nenhum torturador jamais foi preso ou punido.

Esses julgamentos vêm diminuindo a cada ano. Cerca de 40% dos repressores que estão sendo julgados (mais de 500) gozam do benefício da prisão domiciliar, outorgado pelo governo Kirchner. Os sócios e cúmplices civis da ditadura – empresários, juízes e políticos – permanecem impunes. Da mesma maneira que os crimes da Triple A e das bandas fascistas.

“Os governos de Néstor e Cristina Kirchner, não só não agilizaram os julgamentos, dispondo dos recursos políticos para fazê-lo, senão que decidiram conviver com um poder judicial repleto de juízes designados durante a ditadura e que atuaram uma e outra vez como garantidores da impunidade”, afirma o documento “Encuentro Memoria, Verdad e Justicia”.

Somente a mobilização da classe trabalhadora e suas organizações, no Brasil, na Argentina e em todo o Cone Sul, fará justiça com os agentes de Estado e com as multinacionais que cometeram crimes durante as ditaduras em nosso subcontinente. Essa é uma luta que ainda não está no fim.

Américo Gomes é advogado e também membro da Comissão de Presos e Perseguidos Políticos da ex-Convergência Socialista