“Se não há justiça para o povo, que não haja paz para o governo” Emiliano Zapata

26 de setembro do ano de 2014: Um grupo de estudantes da Escola Rural para Normalistas de Ayotzinaga chega até a cidade de Iguala (Estado de Guerreiro) para arrecadar subsídios para desenvolver suas atividades acadêmicas, entre elas a participação nas marchas em homenagem aos mortos de Tlatelolco, na Cidade do México.

Ao saírem da empresa de ônibus Estrella Oro que os levaria à capital do país, os jovens são alvejados pela polícia, seis pessoas morrem, vinte ficam feridas e quarenta e três estudantes são “desaparecidos” pelas forças repressivas oficiais e paramilitares. O mandante do crime é ninguém menos que o prefeito de Iguala, José Luis Abarca. A partir de então uma onda de protestos toma conta do México e de suas embaixadas e consulados no exterior, exigindo respostas sobre o “desaparecimento” dos estudantes e punição aos responsáveis. O México renasce em chamas…

Escolas do Campo: Celeiro de lideranças populares
O assombro que as escolas rurais causam historicamente na elite mexicana não se limita à socialização dos conhecimentos universais transmitidos para os pobres campesinos de origem indígena, todavia os pesadelos dos terratenentes, da burguesia oficial e narcotraficante que domina o Estado, ocorrem também pelo “perigo” que é a zona de desenvolvimento proximal que essas escolas constituem entre o conhecimento do gênero humano e a necessidade de organização política de indivíduos silenciados por séculos, sujeitos sociais que carregam nas mãos calejadas e nos olhos cansados o peso histórico da exploração e opressão.

A Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, conhecida como Escola Rural para Normalistas de Ayotzinaga foi fundada no ano de 1926, a partir da concepção de educação como direito popular no México pós-revolucionário. Por essas características a escola, juntamente com outras escolas rurais, se consolidou como centro de formação de professores comprometidos com questões étnicas e classistas que afligem parcelas significativas da população mexicana. Não por acaso, formaram-se ali importantes líderes sindicais e populares como Genaro Vásquez Rojas, Lucio Cabañas Barrientos e Othón Salazar Ramirez, tornando-se um celeiro de dirigentes da poderosa  Federación de Estudiantes Campesinos Socialistas de México.[2]

Durante o Governo Cárdenas (1934-1940) e sob influência dos anos revolucionários, as escolas rurais normalistas do México viveram seu apogeu financeiro e programático com a aplicação da proposta curricular de inspiração socialista. Todavia, pelo comprometimento social e político das escolas do campo, os governos subseqüentes, adotaram como política a destruição do ensino campesino.

Nos anos 1940 as elucubrações contrárias às escolas do campo sobre a necessidade de “limpar” o caráter “ideológico” dessas escolas que as tornavam fracassadas.  [3] Já na década de 1960, a falácia da classe dominante dita pelos lábios estatais, esbravejava contra o caráter subversivo existente nesse tipo de educação, que colocava o país na iminência do comunismo.

Nos sombrios anos de 1990 o discurso contra o caráter comunista e subversivo das escolas rurais foi superado por assimilação pelos tecnocratas reformadores da educação e transformado na ideologia da modernização. Para os seguidores do receituário neoliberal era anacrônica a educação baseada no sujeito social real mexicano, ou seja, era obsoleta a educação com e para os trabalhadores do campo e de origem indígena.

O discurso produzido por setores empresariais nacionais e estrangeiros, via intelectuais orgânicos da direita, emergiu para camuflar as reais tácticas utilizadas pelo Estado para destruir as escolas rurais. Em outras palavras, por trás do discurso de ordem social e modernização estava (está) a destruição da escola campesina, por meio da negligencia financeira do Estado que as transformou em verdadeiras sucatas, e da repressão aberta contra seus sujeitos políticos que resistem com as mesmas mãos que ensinam e cultivam a terra.

“Es necesario levantar la voz, gritar más fuerte que las balas”
Embora para os 130 mil habitantes da cidade de Iguala, uma das mais pobres do México, a solidariedade para com os estudantes é prática comum, para o poder político a juventude normalista (como são conhecidos os universitários campesinos) trata-se de “terroristas de esquerda”. Não são raros os confrontos entre estudantes e a polícia apoiada no paralimitarismo narcotraficante. Porém, o Massacre de Ayotzinapa parece não ser apenas mais um ataque da classe dominante corruptora e seus lacaios corruptos, mas também o estopim embrionário de um novo processo de lutas e resistências no México.

A trama trágica que culminou na emboscada e assassinato dos estudantes de Ayotzinapa envolveu desde a ordem de execução por parte do prefeito de Iguala, a relação promíscua entre a polícia e o grupo narcotraficante “Guerreros Unidos[4], a cumplicidade do governo do Estado de Guerreiro e o silêncio do presidente da república, cujo partido – Partido Revolucionário Institucional (PRI)[5] também é investigado por corrupção e envolvimento com o crime organizado. Sem eufemismos, o Massacre de Ayotzinapa desnuda todas as vísceras apodrecidas do Estado mexicano e seus aparatos políticos e burocráticos lacaios de uma burguesia imperialista e gângster.

Frente ao espetáculo de horror, a indignação da juventude mexicana é proporcional ao ataque, do qual ela foi vítima e, não somente não poupa nenhuma instituição estatal, como também ganha simpatia de diversos setores sociais. Suas palavras de ordem como: “Porque vivos se los llevaron, vivos los queremos” ou “Es necesario levantar la voz, gritar más fuerte que las balas são ecoadas por multidões que tomam as ruas. [6]

Somam-se aos protestos da juventude, diversas organizações sindicais e movimentos sociais camponeses e indígenas. Em Guerreiro, a Polícia Comunitária exige a renúncia do governador Angel Aguirre Rivero e do prefeito de Iguala, José Luis Abarca, denunciando o caráter gângster dos órgãos estatais, explicitamente vinculados ao narcotráfico. Em Chiapas o movimento zapatista domina as ruas em solidariedade aos estudantes. Na Cidade do México, no último dia 22 de outubro, mais de 30 escolas interromperam suas atividades e 50 mil pessoas protestaram pelo silêncio gritante do governo federal ao Massacre[7], enquanto entidades sindicais preparam para o dia 28 de outubro uma greve nacional e a maior manifestação social dos últimos anos no México.

Diante do cenário de lutas que se espalham como rastro de pólvora, o governo do presidente direitista Enrique Peña Nieto (PRI) encontra-se em uma encruzilhada. Por lado seu partido segue comprometido com as falanges paramilitares co-responsáveis pelos assassinatos dos jovens de Ayotzinapa, motivo pelo qual, as manifestações e o sentimento de revolta não se restringiram ao Estado de Guerreiro e a cidade de Iguala, mas ganham proporções nacionais e internacionais. Por outro, Peña que já não possuía a confiança dos movimentos sociais, agora é veementemente pressionado por eles.

Tlatelolco revive em Ayotzinapa e ambas sobrevirão naqueles que resistem
A história é um palco em movimento, o qual os homens constroem e se reconstroem enquanto sujeitos, daí a negação irrefutável do maktub [8] pelas leis históricas. Mas é seguro que a história dos homens guarda em si coincidências que a torna um processo, onde o passado e o presente se encontram, se negam e se transformam.  Assim poderíamos resumir a história recente do México.

No outono de 1968, o Estado mexicano perpetrou uma das maiores ignomínias da história latino-americana – o Massacre de Tlatelolco.[9] Às vésperas das Olimpíadas do México, no pôr-do-sol do dia 2 de outubro, o exército e a polícia mexicana auxiliados pelo serviço secreto estadunidense (CIA) abre fogo contra uma manifestação pacífica de estudantes e trabalhadores nas imediações da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) – mais de 300 pessoas foram assassinadas, a maioria estudantes.

Passados 46 anos, nos perguntamos: Quanto de Tlatelolco há em Ayotzinapa? Quantas semelhanças há entre os gritos de horror que ecoaram na Plaza de las Tres Culturas em 1968 e o silêncio da morte solitária dos corpos juvenis que desceram às valas comuns em 2014? 

Os jovens da cidade de Ayotzinapa morreram, “desapareceram”, quiçá foram torturados ao deixar viva a lembrança dos jovens assassinados no Massacre de Tlatelolco. Nesse caso, a história não indica ironia, mas diz algo substancial sobre os mortos que viverão naqueles que insistem em sobreviver, pois é seguro que há um rio ininterrupto que escorre dos olhos da juventude, dos campesinos e dos trabalhadores mexicanos. No entanto, agora suas águas assemelham-se às lavas que jorram pelos quatro rincões do México, o queimando mais do que as balas de fogo que varam os corpos dos que resistem…
 

[2] Genaro Vásquez Rojas foi professor campesino, dirigente sindical do Sindicato dos Professores do Estado de Guerreiro e organizador, em 1968 da Guerrilha Asociación Cívica Nacional Revolucionaria (ACNR).  Lucio Cabañas Barrientos foi professor de escolas rurais, líder estudantil e um dos organizadores da guerrilha Partido de los Pobres que atuou na década de 1970 na região da Serra de Guerreiro. Othón Salazar Ramirez foi professor das escolas rurais, dirigente sindical do  Movimiento Revolucionario del Magisterio (MRM) e em 1980 passa a ser militante do Partido Comunista Mexicano (PCM).

[3] PADILLA, T. Jornal La Jornada, 28/01/ 2012 “Normales rurales: el eterno retorno”. Disponível em http://www.jornada.unam.mx/2012/01/28/opinion/019a1pol Acesso em: 22/10/2014

[4] Grupo paramilitar narcotraficante envolvido com autoridades políticas no sul do México.

[5] BORBA, P. S. Revista Conjuntura Austral | ISSN: 2178-8839 | Vol. 2, nº. 6 | Jun.Jul 2011 p. 127

[6] Jornal El País, 16/10/2014 “Es necesario levantar la voz, gritar más furte que las balas”. Disponível em: www.internacional.elpais.com/internacional/2014/10/16/actualidad/1413429934_771454.htm Acesso em: 20/10/2014

[7] MORI, T. “México: Massacre de 43 estudantes provoca comoção nacional”. Disponível em: http://www.esquerda.net/artigo/mexico-massacre-de-43-estudantes-provoca-comocao-nacional/34474 Acesso em: 15/10/2014

[8] Palavra árabe, cujo significado é predestinação, “aquilo que já estava escrito”.

[9] O Massacre de Tlatelolco originou-se numa onda de manifestações estudantis e operárias que sacudiram o México em 1968. Como represália aos protestos estudantis em setembro daquele ano, o presidente Gustavo Díaz Ordaz Bolaños ordena a invasão e ocupação do exército dentro da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Entretanto, a reação popular volta-se contra o governo, que em 02 de outubro autoriza a repressão aberta e indiscriminada do exército e da polícia contra os estudantes e trabalhadores. 

Gisele é graduada em Pedagogia – Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestranda em Estudos Latino-Americanos pelo Programa de Integração da América Latina – Universidade de São Paulo (PROLAM-USP). Integrante do grupo de pesquisa América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura – Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Pesquisadora da Rede de Estudos Latino-Americanos de Trabalho Docente (Red Estrado)