Foto Governo do Ceará
Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

Pablo Biondi

Diante do ressurgimento do debate entre os ativistas e militantes organizados a respeito da natureza de classe do corpo policial, cumpre listar os argumentos mais utilizados para se negar aos policiais o reconhecimento como trabalhadores e submetê-los a um exame crítico, desenvolvendo suas implicações até que eles revelem sua falsidade teórica e incorporando à discussão as premissas fundamentais do materialismo histórico e da teoria marxista do valor, para além das generalidades a respeito das funções repressivas do Estado.

1- “Policiais são agentes do Estado”

Pertencer ao corpo administrativo estatal não exclui os indivíduos das relações sociais. O Estado não é uma zona neutra que paira sobre as relações de produção. Não por acaso, uma empresa estatal funciona como capital e extrai mais-valia, participando tanto da produção quanto da repartição da mais-valia global no mercado (desde que seja realmente uma empresa movida pelo lucro, inserida no movimento de acumulação, o que não vale para uma repartição administrativa). Logo, receber vencimentos do poder público não descaracteriza a condição social do indivíduo desprovido dos meios de produção.

2- “Policiais são o braço armado do Estado”

Sim, policiais são parte do braço armado do Estado, mas se isso exclui sua condição proletária, então o raciocínio deverá valer também para o “antebraço” e para todos os órgãos conexos. O aparato repressivo do Estado, além da polícia e do exército, compreende o Judiciário, o sistema prisional e os órgãos administrativos correlatos. Logo, vale perguntar: os trabalhadores do Judiciário (cartorários, oficiais de justiça, escrivães, assistentes) não são trabalhadores? E quanto aos carcereiros? Se a resposta for afirmativa, então se ignora a unidade orgânica que é inerente ao aparelho estatal, imaginando-se a polícia como uma ilha de malignidade no interior de repartições neutras, vinculadas apenas acidentalmente ao funcionamento do corpo policial.

3- “Policiais não geram riqueza”

Riqueza no capitalismo é valor que se acumula como capital, e que é gerado pelo trabalho produtivo. Nem todo trabalho é produtivo, o que significa dizer que nem todo trabalho produz riqueza (valor). Os operários que operam na seara da circulação, como os comerciários, não criam riqueza nova, apenas a repassam. Produção e circulação no capitalismo são produção e circulação de valor e mais-valia na constante metamorfose da mercadoria. Se “não gerar riqueza” significa não ser trabalhador, então os comerciários e os demais trabalhadores da circulação, assim como todos os funcionários da administração pública, estarão excluídos da classe trabalhadora.

Protesto reivindicando reajuste a bombeiros e policiais em dezembro último

4- “Policiais oprimem trabalhadores”

Sim, assim como trabalhadores matam suas companheiras trabalhadoras em inúmeros casos de violência doméstica, e não se tornam menos proletários por conta disso. Assim como há negros que são racistas e não deixam de ser negros por conta disso. A existência da opressão no interior da classe trabalhadora não a descaracteriza como classe, apenas demonstra a urgente necessidade de se combater as práticas opressivas em todas as fileiras com o programa e com a estratégia da revolução socialista.

A objetividade da condição proletária é dada pelas suas condições materiais, não pelas práticas dos indivíduos proletários ou pelo conteúdo de sua atividade. O operário produz apenas valor, e por isso é operário, pouco importa se o produz na forma de vestuário, prédios ou automóveis. O proletário, categoria mais ampla, é o despossuído que precisa viver do salário, esteja ou não localizado na produção direta de mais-valia. O supervisor que oprime os trabalhadores sob seu comando é também um assalariado que se sujeita, em última instância, às mesmas determinações sociais que seus colegas. O mesmo se aplica ao gerente assalariado. Daí o caráter ultraparasitário da burguesia, que sequer administra seus negócios, confiando essa tarefa a trabalhadores de colarinho branco. Também eles precisam viver da venda de sua força de trabalho, por mais que se identifiquem politicamente com o capital.

De um ponto de vista marxista, o que define a classe não é a função que o capital ou o Estado atribuem aos seus funcionários (supervisionar, gerir, reprimir), e sim o critério das relações sociais em que os indivíduos se inserem para produzir sua vida material. Um policial, por mais conservador que possa ser, faz seu serviço em troca de renda de natureza salarial, ele não participa dos ganhos capitalistas. A pergunta não é “o que ele faz?”, mas antes “como ele se sustenta?”. Não à toa, quando se coloca em movimento enquanto categoria profissional, comporta-se objetivamente como assalariado, confrontando um poder patronal em suas campanhas salariais, organizando piquetes, associando-se etc. E quando ele o faz, entra em rota de colisão com a instituição que o constitui em seu papel na sociedade, abrindo-se uma oportunidade única para que os revolucionários incidam sobre sua consciência política. A greve policial motivada por reivindicações trabalhistas é o melhor momento para que essa categoria perceba sua própria proximidade social perante os demais assalariados. Rechaçá-los, ao contrário, significa jogá-los de volta para os braços dos seus superiores hierárquicos.

5- “Repressão não é trabalho”

Trabalho é produção de efeitos úteis, sendo que o “útil” é sempre uma determinação social historicamente circunscrita. A atividade repressiva seria inútil numa sociedade para além das contradições do capitalismo, assim como outras atividades, como, por exemplo, a publicidade comercial e a advocacia. Nem por isso faz sentido dizer que fazer publicidade e advogar não sejam práticas laborais. No mais, se um resultado vil anulasse o caráter laboral de sua atividade, então os trabalhadores que produzem armas e agrotóxicos, por exemplo, não seriam trabalhadores.

Uma breve conclusão

O ódio contra a violência policial é legítimo e necessário, mas ele não é uma faculdade cognitiva, não podendo ser usado como um pretexto para não se estudar a realidade de acordo com seus níveis de complexidade. A caracterização dos indivíduos e de suas relações de classe não pode ser esgotada por apreciações empíricas sobre a repressão, como se a ação visível e imediata dos policiais já contivesse em si toda a verdade de suas determinações. Como dizia Marx, “toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”. Quanto àqueles que se dizem marxistas e, não obstante, preferem endossar suas convicções com frases retóricas e emotivas, resta desejar que se sintam convidados a abandonar sua lassidão teórica e a tomar parte, com seriedade, nessa discussão.

Opor-se à repressão policial, inclusive com métodos proletários de autodefesa, é extremamente legítimo e necessário, mas essa tarefa será muito mais difícil de ser levada a cabo contra um aparato que contar com a total obediência de sua base. A verdadeira política revolucionária, portanto, é aquela que atua para enfraquecer tal lealdade ao invés de confirmá-la. É aquela que se dá conta de que os indivíduos que vestem a farda e que se colocam nas ruas não apenas são recrutados das camadas proletárias, como são, na perspectiva do capital, tão descartáveis quanto os trabalhadores mortos diariamente nas periferias. Nós do PSTU queremos que os policiais percebam essa realidade, e que se indignem cada vez mais contra o seu comando e contra uma sociedade que não contempla seus interesses materiais. A quem interessa ocultar essa situação?