Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação

Leia a parte 1 do artigo: O mito da democracia

As grandes manifestações de junho de 2013 abriram um período de enormes possibilidades para o movimento de massas brasileiro. Mas também de enormes perigos. Junto com a chuva de bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, os ativistas políticos, militantes de esquerda e lutadores sociais enfrentam também, há mais de um ano, um verdadeiro bombardeio ideológico, que apesar de ser invisível, insípido e inodoro, é tão perigoso quanto o gás de pimenta e as balas de borracha. Aliás, ao longo de sua história, o movimento de massas foi derrotado mais vezes por mentiras e enganos do que por tiros, cassetetes e canhões. O perigo ideológico, portanto, não deveria ser desprezado.

Opinamos que uma das principais questões colocadas hoje diante dos ativistas da esquerda brasileira diz respeito, de uma forma ou de outra, ao problema da democracia burguesa: sua natureza e seus mecanismos, suas possibilidades e impossibilidades, sua força e suas fraquezas. Sem compreender a fundo essa questão, não é possível dar uma resposta correta a fenômenos tão complexos como o resultado eleitoral da esquerda nas eleições 2014, os novos movimentos sociais e suas formas organizativas, o fôlego dos governos de colaboração de classes como o PT, ou os inesperados atores políticos em países que viveram grandes ascensos de massas, como o Podemos na Espanha e o Siriza na Grécia. O fio condutor que liga todas essas peças aparentemente desconexas é a democracia burguesa. Trata-se, portanto, de recuperar uma compreensão marxista sobre esse intrincado fenômeno.

A essência da democracia burguesa
Não é muito lembrado entre os marxistas que a democracia burguesa foi um dos primeiros temas abordados por Marx em seu processo de elaboração sobre a emancipação humana. Em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), o jovem filósofo alemão explica a diferença entre a democracia burguesa (ou a época moderna) e todas as formas políticas anteriores.

Diz Marx:

“A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstração do Estado político é um produto moderno. Na Idade Média (…) a propriedade, o comércio, a sociedade, o homem são políticos; (…) Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas”. (p. 52)

E mais adiante:

“Lá [na Idade Média – H. C.], os estamentos [estratos, camadas – H. C.] da sociedade civil em geral e os estamentos em sentido político eram idênticos. Pode-se exprimir o espírito da Idade Média desta forma: os estamentos da sociedade civil e os estamentos em sentido político eram idênticos porque a sociedade civil era a sociedade política; porque o princípio orgânico da sociedade civil era o princípio do Estado”.  (p. 89)

O que isso quer dizer? Fundamentalmente, que na Idade Média as esferas privada (família, relações econômicas e pessoais) e pública (política, Estado) não se diferenciavam claramente. O servo estava submetido ao senhor feudal por numerosos laços históricos, religiosos, pessoais, militares, jurídicos, sociais e econômicos, sem que cada um desses aspectos se diferenciasse na cabeça do servo. Por isso, a submissão econômica era, para o servo, idêntica à submissão política. Ele não distinguia essas duas esferas. O servo era globalmente submisso. A consequência desse fato é que a dominação de classe na sociedade feudal era absolutamente clara e inconteste. A dominação do senhor feudal sobre o servo se dava através da aceitação, por parte do servo, da hierarquia social e, consequentemente, da hierarquia política, da dominação política: o direito do senhor à primeira noite, ao açoite, a decidir as questões de Estado etc.

Mas um tal sistema não servia à burguesia nascente, cujo poder econômico se assentava sobre a base de um livre contrato (o de compra e venda de força de trabalho), que deveria ser assinado entre partes juridicamente livres e iguais. Assim, toda a luta da burguesia durante o seu período revolucionário foi, em última instância, a luta pela separação dessas duas esferas: tornar a dominação econômica (sociedade civil, compra e venda de força de trabalho) independente da dominação política (Estado), ou seja, o advento da democracia.

Mais uma vez, Marx esclarece:

“Somente a Revolução Francesa completou a transformação dos estamentos políticos em sociais, ou seja, fez das distinções estamentais da sociedade civil simples distinções sociais, distinções da vida privada, sem qualquer significado na vida política. A separação da vida política e da sociedade civil foi, assim, consumada”. (p. 97)

Ou seja, segundo Marx, na sociedade capitalista, diferentemente da sociedade feudal, não há uma relação direta e evidente entre a dominação econômica e a dominação política. Dominação econômica e dominação política aparecem para o cidadão do mundo burguês como esferas absolutamente distintas. O operário, se é minimamente consciente, entende que é explorado na fábrica, mas ele não deduz daí que o mesmo patrão o domine politicamente, como classe, através do Estado burguês. Para ele, trata-se de duas questões distintas, sem ligação entre si. O Estado burguês não se apresenta para o operário como um defensor direto do patrão. O Estado burguês apenas defende as leis, votadas por deputados eleitos por todos os “cidadãos”. O patrão não obriga o operário a votar nos candidatos burgueses, nem tem o poder de impedir que o operário vote nos partidos operários. Tanto o operário quanto o burguês são “cidadãos” com os mesmos direitos e obrigações. A “única” diferença entre eles é econômica. Não há nenhuma lei capitalista que restrinja oficialmente as liberdades políticas do operário em relação ao burguês ou oficialize a dominação política do burguês sobre o operário. Todos podem organizar partidos e disputar eleições. O Estado burguês, diferentemente dos outros Estados, é representativo, e não estamental. Por isso, ele não aparece para a população como o que realmente é, ou seja, como um Estado de classe, e sim aparece como um Estado neutro, impessoal etc.

O problema do voto universal
A partir do final do século 19 -início do século 20, formou-se dentro do marxismo uma corrente reformista, que passou a ver nos processos eleitorais regidos pelo voto universal uma alternativa ao esquema de ruptura revolucionária defendido por Marx e Engels. Embora o mundo e o próprio reformismo tenham mudado bastante desde então, a discussão entre marxistas e reformistas permanece essencialmente a mesma, porque a base filosófica do reformismo permanece a mesma, qual seja: a identificação entre a forma do Estado e o seu conteúdo. Expliquemo-nos: porque o Estado republicano democrático aparece aos olhos da população como uma “casca vazia” (que pode ser preenchida com qualquer conteúdo), a esquerda reformista acredita que o Estado seja verdadeiramente isso, “oco”, que seja de fato possível conquistá-lo através das eleições e preenchê-lo com um conteúdo diferente do conteúdo burguês. A esquerda reformista acredita que a dominação burguesa seja, antes de tudo, ideológica. Acredita que a burguesia exerça apenas uma “hegemonia” sobre a sociedade civil, e não uma verdadeira dominação política e policial. Por isso, os reformistas se dedicam fundamentalmente a construir uma “contra-hegemonia”: meios de comunicação próprios, influência sobre a “opinião pública”, disputa de “espaços”, eleição de parlamentares etc.

A vitória, de tempos em tempos, de candidatos “alternativos” alimenta essa crença da esquerda reformista. A esquerda reformista acredita que o que impede os trabalhadores de votarem “certo” seja a “hegemonia” exercida pela burguesia no seio da sociedade civil. No entanto, ocorre justamente o contrário: a ideologia burguesa, a mídia e o poder econômico apenas reproduzem a dominação burguesa. Mas não a criam. É o próprio voto universal, livre de qualquer coação policial direta, que engendra o domínio da burguesia sobre a sociedade. A esquerda reformista quer vencer a dominação burguesa pelo voto, mas o voto é o próprio sustentáculo desta dominação, sua raiz mais profunda.

Segundo Perry Anderson em As antinomias de Antônio Gramsci:

“A forma geral do Estado representativo, a democracia burguesa, é em si mesma o principal bloqueio ideológico do capitalismo ocidental. (…) As relações de produção capitalista colocam homens e mulheres em diferentes classes sociais, definidos por seu acesso diferencial aos meios de produção. Estas divisões de classe são a realidade essencial do contrato salarial entre pessoas juridicamente iguais e livres, que é a marca dessa produção. As ordens políticas e econômicas são, portanto, formalmente separados sob o capitalismo. Assim, o Estado burguês ‘representa’, por definição, a totalidade da população, abstraída de sua distribuição em classes sociais, como cidadãos individuais e iguais. Em outras palavras, apresenta a homens e mulheres suas posições desiguais na sociedade civil, como se fossem [posições] iguais no Estado. (…) A existência do Estado parlamentar é, assim, o marco formal de todos os outros mecanismos ideológicos da classe dominante. Fornece o código geral em que se transmite toda a mensagem específica a qualquer lugar”.

Ou seja, a diferença fundamental entre a dominação feudal e a dominação capitalista é que enquanto a dominação feudal se dá, como já dissemos, através da aceitação da hierarquia política como fruto da hierarquia econômica e social, a dominação capitalista se dá através da negação da existência de qualquer hierarquia política. A dominação política da burguesia aparece como autodeterminação de todo o povo pelo voto (Quem nunca ouviu um grito de “Lugar de protesto é na urna!” vindo da calçada quando estava marchando em alguma passeata?). Na sociedade burguesa, as diferenças entre os cidadãos aparecem como simples diferenças econômicas, irrelevantes para a política. Por se dar em condições de igualdade entre todos os cidadãos, a política de Estado permitiria qualquer tipo de reviravolta, inclusive as mudanças mais progressivas. Seria a arena fundamental da luta, bastando que as demandas dos cidadãos encontrem uma expressão correta em termos de voto.

Nesse sentido, o caráter repressivo do Estado, suas forças armadas etc., são vistos na república democrática burguesa não como a própria essência do Estado, mas apenas como uma consequência triste, porém inevitável, do contrato social a que todos os cidadãos estão submetidos, inclusive os cidadãos burgueses, que às vezes são presos e reprimidos. O Estado burguês aparece, assim, como res publica (coisa pública) e não como um instrumento privado ou estamental. O mecanismo fundamental de tudo isso, o eixo em torno do qual todo esse sistema gira, é o voto universal. Analisemos, portanto, um pouco mais sua natureza.

A relação sociedade–voto–Estado
Mas as coisas não estariam tranquilas para a democracia burguesa se a separação entre sociedade civil e Estado fosse seu único mecanismo de defesa. Ora, ainda que a burguesia tenha separado a sociedade civil do Estado, estas duas esferas estão formalmente conectadas por meio do voto (a sociedade vota, e com isso elege os representantes do Estado). Então, o que impede a sociedade civil de “se expressar” através do voto e, consequentemente, se expressar no Estado? Dito de outra forma: por que não há uma grande bancada de trabalhadores no Congresso? Por que quase não existem deputados negros? Como a burguesia faz para que o Estado seja não apenas “separado” da sociedade civil, mas também (e principalmente!) impermeável a ela? Esta é, verdadeiramente, a varinha mágica da democracia burguesa, sua capa de invisibilidade, sua horcrux.

Marx explica:

“Sociedade civil e Estado estão separados. Portanto, também o cidadão do Estado está separado do simples cidadão, isto é, do membro da sociedade civil. O cidadão deve, pois, realizar uma ruptura essencial consigo mesmo. [grifo meu – H. C.] (…) Portanto, para se comportar como cidadão real do Estado, para obter significado e eficácia políticos, ele deve abandonar sua realidade social, abstrair-se dela, refugiar-se de toda essa organização em sua individualidade; pois a única existência que ele encontra para sua qualidade de cidadão do Estado é sua individualidade nua e crua (…). Apenas como indivíduo ele pode ser cidadão do Estado. Sua existência como cidadão do Estado é uma existência que se encontra fora de suas existências comunitárias, sendo, portanto, puramente individual”. (p. 94-95)

O que significa tudo isso? Essencialmente, que os membros de uma classe social determinada (o proletariado, por exemplo) não podem jamais participar da vida política do Estado organizados enquanto classe. Se querem se organizar como classe, devem fazê-lo apenas no âmbito da sociedade civil: através de sindicatos, associações, clubes etc., já que a burguesia reconhece a existência de classes sociais e o seu direito à organização própria. O que as classes sociais não devem fazer jamais é se organizar politicamente, para participar da política enquanto classe. Se querem participar da política, ou seja, se querem disputar o poder, só podem fazê-lo na qualidade de “cidadãos” individuais. Por isso, toda e qualquer tentativa feita pelos partidos da classe trabalhadora de unir a vida real da sociedade com a esfera política é logo condenada pela burguesia como “aparelhamento”: “Estão politizando o problema!”, “Há partidos envolvidos!”, “Não se deve misturar partido e sindicato!”, gritam os representantes da burguesia sempre que os trabalhadores relacionam seus problemas reais como classe com o problema do poder e dos governantes. O que está por detrás dessas frases? Ora, não se trata apenas de desmoralizar as greves ou lutas parciais. É um recado mais profundo. Os governantes estão dizendo: “Não ousem participar da política como classe!”, “Se querem participar da política, precisam fazê-lo individualmente!”, “Não confundam seus problemas coletivos com sua condição de cidadão político individual!”

Desta maneira, se aprofunda cada vez mais a alienação política individual, que nada mais é do que o reflexo da alienação do Estado em relação à sociedade civil. Ou seja, na sociedade burguesa, o trabalhador vive uma situação de dualidade de consciência. Ele separa sua vida econômica de sua vida política. Na primeira, atua coletivamente (com seus sindicatos, suas associações etc). Na segunda, atua individualmente. Só assim se sente “cidadão”. Por isso, no dia da eleição, ele brinca depois de votar: “Já cumpri meu dever de cidadão!”. Que dever era esse? Se colocar sozinho, longe de todos os olhares, de toda opinião contraditória, diante de uma urna eletrônica, de um robô, e apertar um botão. Que relação isso tem com sua condição de membro da classe trabalhadora? Para ele, nenhuma.

Desta forma, a força da democracia burguesa não reside, como pensam muitas pessoas de esquerda, na possibilidade que o poder econômico tem de influenciar o rumo das eleições. A esquerda tem apelado, em geral, a esse tipo de argumento para explicar o caráter mentiroso da democracia burguesa. Não está errado, mas é uma explicação incompleta, que não vai na essência do problema. Como explicamos mais acima, o poder econômico apenas opera sobre condições já estabelecidas, sobre um terreno já favorável: o caráter individual da participação política, do voto. O poder econômico, portanto, é importante, mas não é o essencial. A força essencial da democracia burguesa, seu poder de manipulação, reside no fato de que ela transforma homens e mulheres reais, com suas complexas relações, em simples “cidadãos”, todos iguais entre si, que se apresentam individualmente perante uma urna para depositar nela um voto que é idêntico a todos os outros votos de todos os outros cidadãos. Assim, o voto universal, essa grandiosa conquista da modernidade, é também a principal mentira da sociedade em que vivemos. A força da democracia burguesa reside na dispersão, na atomização dos membros da classe explorada em meros eleitores individuais. Desta maneira, através de sucessivas eleições, quase sem violência, o individualismo acaba se sobrepondo às determinações de classe, que aparecem para o operário como secundárias ou mesmo irrelevantes na hora do voto. Ao fim e ao cabo, em torno do voto universal, vai se criando o mito da liberdade e da igualdade entre todos os cidadãos: o mito da democracia. A burguesia pode então respirar aliviada e promover sem medo quantas eleições, referendos e plebiscitos quiser. A alienação está completa.