Os economistas (incluindo grande parte dos marxistas) costumam desclassificar a análise de Marx do valor, com o falso argumento de que ela não passa de um exemplo abstrato, que não tem valor histórico etc. Ao contrário, essa análise da circulação simples, da mercadoria e das formas do valor – presente como elemento fundamental em todos os principais economistas clássicos, como Petty, Jones, Quesnais, Smith, Ricardo – é imprescindível para a compreensão da realidade das formas pré-capitalistas, da gênese da moeda, dos preços e, finalmente, da passagem à forma capital: “As definições mais abstratas, se as submetemos a um exame mais preciso, revelam sempre uma base determinada, concreta, histórica”. (Carta de Marx para Engels, abril de 1858)

Cada uma dessas formas sucessivas de valor carrega em si o gérmen da própria superação para um estágio superior. A partir do momento em que se dissolve a relação primitiva, na qual a espécie humana só produzia para o bem-estar da tribo (produção centrada no valor de uso), o processo conduz obrigatoriamente, do ponto de vista histórico, ao valor autonomizado, ao capital: “a forma simples do valor, forma embrionária que atravessa uma série de metamorfoses para chegar à forma preço”. (O Capital, livro I, seção 1)

Forma-valor simples ou virtual
Nesta primeira forma, a produção do valor é apenas esporádica e incerta. Ela diz respeito apenas ao excedente da produção da comunidade que não tem utilização imediata e encontra-se então disponível para a troca, a circulação, tornando-se portanto mercadoria. A comunidade ou a tribo trava então uma relação de troca de mercadorias com as tribos vizinhas. É o estágio do escambo, ainda sem o dinheiro e a moeda. Esse escambo só se efetua de comunidade a comunidade, o que quer dizer que ele não possui ainda um efeito dissolvente sobre a organização interna dessas comunidades: “Na origem o processo de troca das mercadorias não aparece dentro das comunidades primitivas, mas lá onde elas terminam, nas suas fronteiras, nos raros pontos em que elas entram em contato com outras comunidades. É lá que começa o escambo e é de lá que ele repercute ao interior da comunidade, sobre a qual ele exerce então sua ação dissolvente. Os valores de uso específicos – que no escambo entre diferentes comunidades tornam-se mercadorias, como os escravos, o gado, os metais – também constituem na maioria das vezes a primeira moeda das próprias comunidades”. (Contribuição à Crítica da Economia Política)

Em resumo, nesta primeira forma do valor, existe apenas a troca direta de mercadoria com mercadoria, escambo, sem a presença da moeda.

1 cabra = 4 galinhas = 2 kg de sal.

A circulação ainda permanece virtual, a medida 4 galinhas por 2 kg de sal pode parecer absolutamente fortuita. A corrente de trocas interrompe-se naquela simples operação: “Realmente, a forma simples só serve para diferenciar o valor e o valor de uso de uma mercadoria e colocá-la em relação de troca com apenas uma espécie de qualquer outra mercadoria, ao invés de representar sua igualdade qualitativa e sua proporcionalidade quantitativa com todas as mercadorias” (…) “entretanto, a forma valor simples passa dela mesma a uma forma mais completa”. (O Capital)

Forma-valor total ou desenvolvida
Nesta segunda forma, mais completa, ao contrário da forma simples, assiste-se ao desenvolvimento de uma corrente de trocas que permite ao valor de uma mesma mercadoria ser representado em inúmeros outros exemplares: “A forma total do valor relativo coloca uma mercadoria em relação social com todas as demais. Ao mesmo tempo, a série interminável das suas expressões demonstra que o valor das mercadorias reveste indiferentemente quaisquer formas específicas de valores de uso”. (O Capital)

O valor da cabra pode relacionar-se a 2 kg de sal, mas também a um porco, ou a um paletó. Cada mercadoria se relaciona com todas as demais, isto é, seu valor de troca mantém-se sob as diferentes formas que ele pode se corporificar, ou seja, sob seus diferentes valores de uso. Vê-se como, pouco a pouco, o valor de troca vai se abstraindo do valor de uso e se tornando indiferente a ele, quer dizer, se autonomizando.

Forma-valor geral
As duas primeiras formas do valor apresentadas exprimem o valor de uma mercadoria qualquer em outra mercadoria diferente (forma simples) ou em uma série de muitas outras mercadorias (forma valor total). Isso ainda acontecia como um problema particular de cada mercadoria isolada exprimir o seu valor, e ela conseguia isso sem a interferência das outras mercadorias. Diante daquela mercadoria isolada, as demais mercadorias jogavam o papel puramente passivo de equivalente.

Doravante, na forma valor geral, todas as mercadorias encontram seu equivalente em apenas uma delas, sempre a mesma, naquela que vai fazer o papel de equivalente geral. Esta forma se exprime assim:

1 cabra =
4 galinhas = 2 kg de sal
1 paletó =

Então, “torna-se evidente que as mercadorias, que do ponto de vista do valor são coisa puramente sociais, também só podem exprimir aquela existência social por uma série envolvendo todas as suas relações recíprocas; que seu valor deve ser, conseqüentemente, uma forma socialmente validada”. (O Capital)

O sal então joga o papel de sanção social, que vai em seguida ser desempenhado pela moeda, que Marx denomina a “forma oficial dos valores”. Aconteceu aqui uma coisa muito importante: a passagem sutil da primeira forma simples do valor à forma-valor geral. Na segunda forma-valor total, como vimos, ocorreu o início da indiferença do valor de troca em relação ao valor de uso. Agora, porém, de um só golpe, passa-se à aparição de uma mercadoria equivalente que, uma vez que ela joga o papel de sanção social, não tem mais valor de uso específico. Ou seja, seu valor de uso consiste precisamente em seu valor de troca.

Com a passagem à forma-valor geral, consuma-se um salto qualitativo, pois se dissolve na totalidade social a antiga relação em que o valor de uso ainda predominava sobre o valor de troca. Daqui para a frente, o valor de troca de toda e qualquer mercadoria se encarnará indiferentemente em uma única e mesma mercadoria (no presente caso o sal). Anteriormente, o sal encarnava-se em todo e qualquer valor; doravante, todo e qualquer valor se encarna no sal. Ele não é mais um passivo equivalente qualquer, agora ele é um ativo equivalente geral.
Essa reviravolta, como se pode observar, não é puramente quantitativa. Ao contrário, ela encarna a mudança qualitativa que conduzirá imperceptivelmente à forma-dinheiro, como última forma do valor.

Forma-valor moeda ou dinheiro
“A mercadoria especial, com a forma natural à qual o equivalente geral se identifica pouco a pouco na sociedade, torna-se mercadoria-moeda, ou, melhor dizendo, funciona como moeda. Sua função social especifica e, conseqüentemente, seu monopólio social, é o de exercer o papel de equivalente universal no mundo das mercadorias”. (O Capital). Esta forma do valor se exprime assim:

1 cabra =
4 galinhas = 10 g de ouro
1 paletó =

Sobretudo por razões de comunidade, os metais preciosos e o ouro conquistaram o papel de representante da moeda. Mas o aparecimento do dinheiro e da moeda, como verificamos anteriormente, já estava contido em gérmen na relação mais simples do valor, em que as primeiras mercadorias se trocavam esporadicamente por outras, o que caracterizava também a primeira etapa da autonomização do valor.

Nos próximos números, estaremos verificando as etapas decisivas da autonomização do capital.

Post author por José Martins, economista e editor do boletim Crítica Semanal da Economia
Publication Date