“Se a nossa Internacional é ainda fraca em número, é já forte pelo programa, pela tradição; a têmpera incompatível dos seus quadros opõe-se irredutivelmente a todos os grupos políticos apegados às saias da burguesia. A sua tarefa é derrubar a dominação do Capital. O seu fim é o socialismo. O seu método é a revolução proletária”.
Leon Trotsky, 1939.

“Uma bela manhã a esquerda poderá descobrir que sua vitória parlamentar e sua derrota real coincidem”.
Karl Marx, 1848.

Fábio Mascaro

As ambigüidades concretas (“a era bastarda”) do momento histórico de Marx e Engels
As explosões revolucionárias de 1848 – que abalaram o velho continente na Alemanha, Itália e Áustria, dentre outros países – são centrais na construção da teoria revolucionária em Marx. Serão estes acontecimentos que irão evidenciar o fim das possibilidades revolucionárias da burguesia e, assim, exigir de Marx e Engels o estabelecimento de outras perspectivas em relação às alianças dos trabalhadores com diferentes setores da burguesia[2][2]. Os dois revolucionários foram, junto ao clarear contra-revolucionário da burguesia, assimilando a impossibilidade histórica de uma revolução burguesa, como aquela que havia ocorrido na França em 1789, mesmo que as tarefas a serem cumpridas eram, em sua plena maioria, democráticas, e, conseqüentemente, historicamente burguesas. Assim, Marx e Engels passaram a descartar qualquer tipo de aliança estratégica com a burguesia, proclamando a necessidade férrea da independência de classe do proletariado. Não obstante, Marx, embora sentisse na prática a insuficiente postura dos setores democráticos em relação ao antigo regime, jamais romperia, em suas formulações teóricas, com um certo “etapismo”. Esse era o dilema que perpassava o momento histórico, a vida e as reflexões de Marx e Engels, e que foi caracterizada por Alain Brossat como um “intervalo bastardo”, em que “já não mais” se poderia realizar a revolução burguesa e, simultaneamente, “ainda não” estava posta a possibilidade real da revolução proletária[3][3]. Entretanto, é evidente que essas implicações práticas, muitas vezes, permitiriam a Marx vislumbrar a possibilidade de revolução proletária[4][4], ainda que não estivessem dadas as condições econômicas para tanto. Noutras palavras, as ambigüidades da época vivida por Marx e Engels não os impediram de enxergar, no terreno da práxis política (e, dizia Lênin, “a prática é o critério da razão”) as limitações da burguesia, apontando para a necessidade do estabelecimento do proletariado como classe, rumo à revolução socialista. Nas palavras de Marx, em sua famosa Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas:

“Desde o primeiro momento da vitória é preciso direcionar a desconfiança não mais contra o partido reacionário derrotado, mas contra os antigos aliados, contra o partido que queria explorar a vitória comum em seu exclusivo benefício (…) o papel de traidores que os liberais burgueses alemães desempenharam em relação ao povo em 1848, o desempenharão os pequeno-burgueses democráticos na próxima revolução”
(MARX, 1850)

Contudo, o que Marx e Engels puderam vislumbrar, após as experiências de 1848, é a constituição da independência histórica do proletariado, com a finalidade de conquistar espaços para facilitar a queda do poder burguês que se constituía. Ainda assim, trata-se de dois processos distintos e não de um “transcrescimento” da revolução democrática em socialista, como argumentava Trotsky. Marx e Engels esboçam algumas antecipações permanentistas, na medida em que percebem a impossibilidade de a burguesia efetivar as tarefas que lhe cabem, entretanto, devido ao “atoleiro histórico” – por assim dizer – em que estão submetidos, não podem evocar uma plena concepção da revolução permanente, como aquela que se apresentaria com Trotsky. Em Marx e Engels a decadência política da burguesia, nitidamente comprovada nas revoluções de 1848, força-os a uma luta pela independência total da classe trabalhadora frente à burguesia, mas ainda não os incitam a uma superação teórica plena da noção de sucessão de etapas históricas economicamente determinadas e separadas. Isto se dava porque – como nos mostrou Trotsky em “Resultados e Perspectivas” – ao contrário de 1789, a burguesia era incapaz de jogar um papel revolucionário nos processos de 1848. Por outro lado, ao contrário de 1905, o proletariado, “era demasiado fraco, não tinha ainda organização, experiência e conhecimentos. O desenvolvimento capitalista tinha ido longe o suficiente para tornar necessária a abolição dos entraves feudais, mas não tão longe para permitir que a classe operária – produto das novas condições de produção – se destacasse como força política decisiva” (TROTSKY, 1905). Assim, “1848 não pertence mais à era das revoluções burguesas, que teve seu apogeu com o 1789 francês. Também não é parte ainda da era das revoluções proletárias, conseqüência direta do desenvolvimento do imperialismo e do declínio das forças produtivas. Tratava-se de uma era bastarda” (BIANCHI, 1999, grifos no original). Deste modo, “era, portanto, impossível para Marx e Engels não racionar em termos de etapas já que, globalmente, a fase de dominação capitalista não havia chegado ao final de suas possibilidades”, pois a teoria de revolução permanente, tal como aquela cunhada por Trotsky, “unicamente pode desenvolver-se no terreno da atualidade da revolução proletária mundial (no terreno das premissas objetivas)” e, portanto, sob a época imperialista. (BROSSAT, 1977).

O internacionalismo: de Marx e Engels a Lênin e Trotsky
Esse espectro, carregado das determinações materiais e suas mediações equivalentes, fornece-nos elementos para a explicação, por exemplo, das diferentes possibilidades de dimensionamento internacionalista, de Marx e Engels, a Lênin e Trotsky. Nesse sentido, os exemplos concretos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que posteriormente viria a ser chamada de I Internacional – em relação às III e IV Internacionais –, são essenciais para a compreensão destes diferentes arranjos históricos. Enquanto a I Internacional – fundada em 1864, e liderada por Marx desde seu início – ajustada a seu presente histórico, era a culminação político-organizativa de um nascente operariado, já sob as bases da solidariedade internacional, a III Internacional liderada por Lênin – bem como a IV Internacional, fundada por Trotsky em 1938 – aspirava a ser um partido mundial, democraticamente centralizado, procurando responder às novas necessidades e possibilidades da época imperialista, que colocava, como devir histórico, a atualidade da revolução proletária[5][5].

Assim Lênin e Trotsky, vivendo sob a vigência do imperialismo, puderam alicerçar seu marxismo sob a base de novas características da economia capitalista. Deste modo, o surgimento das novas concepções internacionalistas de Lênin e Trotsky não pode ser concebido como uma abstração de suas (certamente magníficas) inteligências, mas senão como expressão subjetiva de uma nova realidade que cerceava aos marxistas a necessidade de ferramentas de luta que pudesse responder aos mais novos enfrentamentos com o Capital. Para tanto, os líderes da revolução russa, ao contrário de seus camaradas em armas do século anterior – Marx e Engels –, puderam “servir-se” de uma época que, superando as ambigüidades da etapa anterior, colocava na ordem do dia a possibilidade da revolução proletária, até mesmo nos países de capitalismo “retardatário”, que ainda não haviam enterrado completamente os miseráveis restos do chamado ancien regime. Mais que isso, os ensinamentos anti-mecanicistas de Marx – que apesar das dificuldades eram sempre ressaltados –, junto à situação objetiva em que estavam mergulhados, permitiram a Lênin e Trotsky “descobrir a idéia essencial de que o conteúdo econômico-social de uma revolução não coincide necessariamente com as forças motrizes que ‘legitimamente’ a colocarão em marcha” (BROSSAT, 1977). Trotsky não hesitou, por exemplo, em polemizar com o Marx de “Revolução e contra-revolução na Alemanha”. O militante bolchevique-leninista se opôs à idéia-força básica “de tal amo, tal servo”[6][6], afirmando que, dado o desenvolvimento já atingido pelo capitalismo russo e devido a sua inserção orgânica na economia mundial – e isso certamente vale para os países dependentes na época imperialista atual – “o servo russo pode chegar ao poder antes que o seu amo”.

Internacionalismo e revolução permanente para o novo século
Nesse sentido, as limitações da teoria da revolução de Marx estavam intimamente ligadas a uma determinação histórica[7][7]. Não obstante, “daí a uma interpretação caricatural como a que foi levada a cabo pelo stalinismo durante décadas há uma grande distância” (BIANCHI, 1999, p.43), uma vez que, “afirmar a necessidade de uma revolução burguesa nunca significou para eles admitir a necessidade de um desenvolvimento pacífico das forças proletárias depois de tal revolução” (BIANCHI, 1999, p.43). Afinal, como postulava Trotsky, o marxismo é um método de análise – “não de análise de textos, mas das relações sociais”.

Mais que isso, do ponto de vista interpretativo, “é mais produtivo (…) compreender a forma como viam (Marx e Engels) a passagem de uma revolução a outra” (BIANCHI, 1999, p.44). Para Marx, a revolução que se iniciava deveria ser um movimento democrático de todo o povo, sendo que o desenvolvimento desse processo possibilitaria a emergência histórica do proletariado enquanto força social independente, capaz de levar adiante a luta pela superação da sociedade capitalista.
Em Trotsky e Lênin, a impotência da burguesia em impulsionar um processo revolucionário transforma-se – a partir das devidas mediações – em teoria. O imperialismo fazia acender na fogueira teórica de Trotsky e Lênin uma compreensão do capitalismo enquanto uma só totalidade, desigualmente combinada, entre os diversos Estados nacionais[8][8]. Com efeito, nos países de capitalismo atrasado, a ditadura do proletariado passaria a ser um pressuposto para a garantia das conquistas democrático-burguesas. Assim a luta pelo socialismo deveria, desde o início, balizar a conduta dos partidos revolucionários, mesmo que haja a existência de tarefas burguesas a serem realizadas.

O socialismo vive: que viva o socialismo
Em tempos em que as necessidades fazem emergir novos instrumentos de luta dos trabalhadores; em tempos em que as fantasias reformistas evidenciam seu próprio fracasso; em tempos em que o PT/PCdoB seguem de mãos dadas no gerenciamento do Estado Burguês; em tempos em que a luta contra o imperialismo faz sacudir a América Latina; em tempos em que o socialismo insiste em permanecer na luta contra a barbárie capitalista; torna-se imprescindível a contribuição de Trotsky para as gerações de lutadores que aí estão e que aí virão. A reconstrução da IV Internacional coloca-se, portanto, na linha de frente das batalhas de milhares de revolucionários que persistem na luta por uma “terra sem amos”. A manutenção de uma perspectiva para além do Capital continua presente naqueles que não se acomodam com a miséria terrena, e permanecem seguindo adiante segurando a unhas e dentes os pilares do reino da liberdade. Afinal, como dizia Marx, nada do que é humano me (nos) é alheio.

Se por um lado o trecho, abaixo transcrito, do poema “A Plenos Pulmões” de Maiakóviski simboliza sua dedicação à luta pela emancipação da classe operária, não é menos verdade – por outro – que pode ser tomado de empréstimo para expressar a vida e abra de Trotsky.

“Eu vos dôo, proletários do planeta,
cada folha até a última letra.
O inimigo da colossal classe obreira,
É também meu inimigo fidigal”.

(“A Plenos Pulmões”, Vladimir Maiakóviski)

Bibliografia:
BIANCHI, Álvaro (1999) “A Revolução fora do tempo: Marx, Engels em 1848”, em “Manifesto Comunista: ontem e hoje”. São Paulo, Xamã.
BIANCHI, Álvaro (2002) “Trotsky para o século XXI”. Opinião Socialista, São Paulo, Nº. 138.
BIANCHI, Álvaro (2005) “O marxismo de Leon Trotsky”. Site do PSTU.
BROSSAT, Alain (1977) “El pensameinto político del joven Trotsky: en los orígenes de la revolución permanente. México: Siglo XXI.
COGGIOLA, Osvaldo (1990). “Trotsky ontem e hoje”, Belo Horizonte, Oficina de Livros.
LÖWY, MICHAEL (2002). “A Teoria da Revolução no Jovem Marx”, Petrópolis. Ed. Vozes.
KORSH, Karl (1977). “Marxismo e Filosofia”. Porto. Afrontamento.
MARX, Karl (1850). “Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas”. Várias edições. Em: www.marxists.org.br
TROTSKY, Leon (1929). “A revolução permanente”. Várias edições. Em: www.marxists.org.br, acessado em 28/05/2005.
TROTSKY, Leon (1905). “Resultados y Perspectivas”. Várias edições. Em: www.marxists.org.br, acessado em 28/05/2005.

NOTAS
[1] “Apesar da política de Marx e Engels apresentar traços de uma teoria da revolução permanente, ela não vai mais além disso. Não apresenta essa teoria de forma acabada, como afirma Michael Lowy”. Álvaro Bianchi, A Revolução fora do tempo: Marx, Engels em 1848. em: Manifesto Comunista: ontem e hoje, Osvaldo Coggiola (org.).

[2] “O proletariado forma uma frente única com a burguesia enquanto a burguesia desempenhe um papel revolucionário”, afirmou Marx, no princípio dos processos revolucionários de 1848. O que Marx perceberia mais tarde é que a burguesia já não mais poderia cumprir um papel revolucionário.

[3] Esse verdadeiro dilema se estenderia até 1871, quando a Comuna de Paris escancara a força do proletariado em sua capacidade de se organizar e mobilizar de maneira historicamente independente e revolucionária.

[4] Ver, por exemplo, as reflexões de Marx e Engels estabelecidas ao final de suas vidas, acerca da possibilidade de revolução socialista na Rússia, um país de capitalismo retardatário, com traços pré-capitalistas marcantes. Sobre isso é interessante o texto de Enric Mompó (1997), “Marx e Engels e a Revolução Russa”, em Coggiola, Osvaldo. “A Revolução de Outubro sob o olhar da história”, São Paulo, Scritta.

[5] O internacionalismo de Lênin e Trotsky incorpora a necessidade da solidariedade fundada na identidade e nos projetos comuns – mas vai além, em superação histórico-dialética – a partir do alicerçamento em uma compreensão do imperialismo enquanto época histórica da atualidade da revolução proletária. Bianchi, Álvaro (2002) “Trotsky para o século XXI”. Opinião Socialista, São Paulo, Nº. 138.

[6] “O movimento operário nunca é independente, nunca tem um caráter político, até que todas as frações da burguesia, sobretudo o seu setor mais progressista, os grandes proprietários de fábricas, não tenham conquistado o poder político transformando o Estado segundo suas necessidades”. Marx, Karl Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, várias edições.

[7] “Como homens de sua época, Marx e Engels trabalharam naqueles anos com uma teoria da revolução que era a imagem do momento vivido” (BIANCHI, 1999, p.54).

[8] Ver, por exemplo, a obra de Lênin: “O Imperialismo, fase superior do capitalismo”, de 1916.

* Fábio Mascaro é graduando em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara) e bolsista PET-CNPq (Programa Especial de Treinamento / Conselho Nacional de Pesquisa). Correio Eletrônico: [email protected].