Dilma Roussef recebe relatório final da Comissão da Verdade

Punir os repressores do passado é fundamental para lutar contra os repressores de hoje e de amanhã

Nesta quarta, 10 de dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos, a Comissão Nacional da Verdade apresentou à sociedade brasileira seu relatório final, resultado de quase três anos de trabalhos. Foram 1121 depoimentos, sendo 132 deles de agentes públicos.

O documento lista os responsáveis pela repressão política, além de 434 vítimas dos crimes cometidos. Há ainda a relação dos locais onde ocorriam as sessões de interrogatórios forçados, prisões ilegais e desaparecimentos forçados.

A presidente Dilma Rousseff se emocionou e chorou durante a cerimônia de entrega, ao fazer referência aos brasileiros que perderam parentes e amigos no combate à ditadura. No entanto, Dilma afirmou em seu discurso que o documento elaborado ajuda o Brasil a “se reconciliar consigo mesmo” após as duas décadas de regime militar.

 Destacou ainda que o acesso à informação é necessário para “pacificar o país e evitar mágoas”. E defendeu o respeito pelos “pactos políticos” feitos para viabilizar  a “redemocratização”, em referência à Lei de Anistia, que perdoou violações cometidas por agentes do Estado durante a ditadura.

O fato é que o relatório apresentado tem muitas limitações impostas pelo próprio governo, que formou uma comissão com poucos membros, pouca infraestrura e pouco tempo para o trabalho.

Mas o que ele não pode servir é para a “reconciliação nacional”, chamada por Dilma, em respeito a pactos políticos efetivados durante a ditadura. Não há reconciliação entre torturado e torturador sem haver punição exemplar dos agentes do Estado que cometeram crimes tais como: sequestro, tortura e estupro. Não pode haver reconciliação nacional entre os milhares de trabalhadores demitidos, presos e perseguidos por lutarem contra a ditadura e os órgãos do Estado e as empresas capitalistas que tiveram grandes lucros com este regime, sem que estas sejam responsabilizadas e punidas pelo Estado.

Enfim, não pode haver reconciliação com impunidade. Pois esta é uma reconciliação dos cemitérios, onde aqueles os criminosos não anistiados e os que sofreram atrocidades permanecem com suas penas.

A partir do relatório apresentado, os movimentos sociais, entidades de Direitos Humanos, entidades da classe trabalhadora e seus partidos políticos devem exigir a apuração completa, punição exemplar dos financiadores, patrocinadores e agentes da repressão e a reparação de todos os danos causados durante a ditadura. Esta luta não pode parar aqui.

Recomendações da comissão
Em discurso, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que o relatório recomenda a criação de um órgão público para dar seguimento aos trabalhos iniciados pelo colegiado, inclusive com investigações que possam identificar mais vítimas da ditadura militar. “Certo que o rol de vítimas do relatório não é definitivo”, disse.

A Deputada Federal Luiza Erundina (PSB-SP) considerou que “o governo brasileiro continua em dívida com as vítimas da ditadura militar“, e que este será “só mais um relatório que vai para o Arquivo Nacional“. Ela ainda falou: “Não posso nem me colocar diante daqueles que sofreram torturas, abusos sexuais, violência sobre sua dignidade. Sobretudo as mulheres, que foram vítimas pela sua natureza de mulher, mães cujos filhos pequenininhos assistiram à sua tortura, mães que assistiram aos filhos pequenininhos sendo torturados“.

Trabalhadores entregam reivindicações à comissão
O Grupo de Trabalho dos Trabalhadores entregou à Comissão Nacional da Verdade na segunda-feira, 8, um relatório com o resultado da pesquisa, coleta de testemunhos e documentos sobre a perseguição e repressão aos trabalhadores e trabalhadoras durante o período do regime civil-militar em todo o país.

Este relatório apresenta as seguintes informações:

1) Os trabalhadores e seu movimento sindical constituíram o alvo primordial do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes dos golpistas e da ditadura a seguir imposta; 2) O Golpe de 1964 e a ditadura subsequente decorreram de uma aliança civil-militar embasada em um projeto comum e numa ação articulada; 3) A ditadura de 1964 criou um novo regime fabril; 4) A articulação público-privada constituída no âmbito da ditadura de 1964 ampliou significativamente as formas de violência e repressão praticadas contra os trabalhadores; 5) Na ditadura de 1964 empresas estatais tornaram-se laboratórios de monitoramento e repressão; 6) Durante a ditadura de 1964 alterou-se a legislação econômica e trabalhista para viabilizar a superexploração dos trabalhadores e mais rápida concentração de capital; 7) Na esteira das violações de direitos mencionadas ocorreram as graves violações de direitos dos trabalhadores: prisões ilegais e arbitrárias, tortura, assassinatos, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver; 8) A classe trabalhadora foi vítima de torturas que resultaram em sequelas físicas e  psicológicas insuperáveis; 9) Tem-se notícia de muitas mortes e desaparecimentos forçados de trabalhadores, mas os números continuam inconclusivos.

Por isso o Grupo de Trabalho elaborou uma cartilha com as “Nossas recomendações”, que foi entregue à Comissão Nacional da Verdade e aos representantes do governo Dilma Rousseff.

O documento reivindica, entre outras coisas: mudanças na legislação, com a revisão da Lei de Anistia, para que os agentes de Estado criminosos sejam punidos; a desmilitarização das Polícias Militares e punição das empresas, empresário e todos que tenham colaborado com a repressão à classe trabalhadora durante o a ditadura.

Para Luís Carlos Prates, o Mancha, da CSP-Conlutas, “a principal crítica que temos é ao poder limitado da comissão que não garante a aplicação de  nenhuma das recomendações como a punição dos torturadores, a desmilitarização das policias e a exigência da abertura dos arquivos militares, que não foram entregues a CNV. Também faltou coragem da Comissão em utilizar seus meios para constranger os militares e as empresas, no sentido de esclarecer crimes contra os trabalhadores. É necessário a mobilização independente dos grupos de direitos humanos, Comissões da Verdade das entidades, sindicatos e centrais sindicais para exigir do governo Dilma medidas imediatas e efetivas com relação a isso a realização de reparação e justiça

Romper o limite da Lei de Anistia de 1979
Quando o Congresso Nacional aprovou, em 1979, a Lei da Anistia, por apenas cinco votos, constituía na época um avanço. Os militares estavam enfraquecidos, mas ainda mantinham o controle do país, e intimidavam os lutadores sociais. Mas esta lei pode e deve ser modificada abrindo a possibilidade para que os agentes do Estado que cometeram crimes de lesa humanidade sejam punidos.  

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão de que a Lei da Anistia impediria julgamentos de atos praticados durante o regime militar.   A decisão do STF reverte o conceito de como devem ser julgados os crimes contra a humanidade ocorridos em qualquer ditadura, particularmente quando envolvem crimes como ocultação de cadáver ou sequestro.

Um crime não cessa enquanto sua materialidade não for provada.   Uma legislação não pode estar acima da defesa dos cidadãos contra um Estado que tortura, sequestra, estupra e assassina. Não pode servir para proteger criminosos ou encobertar crimes. Inclusive os tribunais penais internacionais há décadas trabalham com o postulado segundo o qual leis extremamente injustas não são jurídicas, motivo pelo qual devem ser afastadas se servem para isentar criminosos de seus delitos.  

O Brasil reconhece o conceito de “crime contra a humanidade”, sendo signatário de Convenções pelos Direitos Humanos, dentre os quais o Pacto de São José da Costa Rica, então, deve aceitar a jurisprudência das instâncias penais internacionais.   Tanto é assim que esta Comissão Interamericana da OEA decidiu que o Estado brasileiro deve investigar a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida no DOI-Codi de São Paulo, em 1975.  

 E o Brasil foi condenado pela mesma corte, em dezembro de 2010, pelo desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia. Este organismo determinou, entre outras coisas, que o Estado faça a investigação plena e puna os responsáveis por detenções arbitrárias, torturas e desaparecimentos de 70 pessoas, entre 1972 e 1975.  

Essas determinações respaldam o entendimento de que a Lei de Anistia não impede que se processe torturadores.  Os envolvidos em terrorismo de Estado devem sim ser punidos. Se não esta anistia valerá somente para um lado. Pois os que lutaram contra a ditadura e cometeram atos contra o regime de exceção, em geral, já foram punidos.  

Combater a impunidade
Exigir punição exemplar para agentes do Estado que cometem crimes como prisões arbitrárias e torturas não tem nada a ver com revanchismo ou revirar o passado. Tem a ver com garantir o presente e o futuro.  A certeza da impunidade é o que faz com que agentes de Estado continuem cometendo crimes e desacatando a legislação existente. Ter a certeza da investigação e da punição, mesmo que seja futura, intimidará qualquer funcionário do Estado a cometer crimes e arbitrariedade em qualquer regime de exceção.  

Para onde quer que se olhe na sociedade brasileira o peso da repressão política vem aumentando. Punir os repressores do passado é fundamental para lutar contra os repressores de hoje e de amanhã, uma necessidade para defender as organizações operárias e populares.

A direita levanta a cabeça
Como há passividade do governo contra os promotores e financiadores da ditadura, a direita no Brasil levanta ainda mais sua cabeça.

Dois fatos marcaram esta semana. O primeiro é que um grupo de militares recorreu à Justiça para tentar barrar a divulgação do documento, no entanto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) negou a solicitação.

E o segundo, mais escandaloso, foi a atitude do Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) de afirmar que “não estupraria” a também Deputada Federal e ex-ministra de Direitos Humanos Maria do Rosário (PT-RS) porque “ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero.

Com desdém Bolsonaro “garante não se importar com a representação feita pelo PT contra ele, muito menos” com o processo que Maria do Rosário vai impetrar contra ele.

O fato é que a impunidade do passado cobra seu preço no presente em todos os aspectos da sociedade.