Na terça-feira (23/2) dessa semana grandes jornais brasileiros trouxeram estampado em suas páginas um “Manifesto pela vida” defendendo uma receita para o tratamento precoce de Covid-19. Entre os jornais que aceitaram a publicação paga do manifesto estão a Folha de S. Paulo, O Globo, Estado de Minas, Correio Brasiliense, O Povo, Zero Hora, Jornal do Comércio, Correio e outros.

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O informe publicitário foi pago pela Associação de Médicos Pela Vida e o tal “tratamento precoce” defendido por ela é o já desmentido pacote de hidroxicloroquina, invermectina, azitromicina e afins. Inúmeros estudos sérios sobre a eficácia desses medicamentos contra a Covid-19 já demonstraram que eles têm tanta eficiência quanto dizer “abracadabra”. Mesma receita de “tratamento precoce” defendida por Bolsonaro e por Pazuello, Ministro da Saúde, que insistia na mentira em Manaus mesmo a cidade enfrentando o colapso do atendimento médico por falta de oxigênio.

O tratamento não só é uma mentira como ainda oferece riscos para a saúde de pessoas saudáveis que optam pelo falso tratamento. Um levantamento realizado pelo UOL no final de janeiro mostrou que 9 das 10 cidades brasileiras que adotaram o protocolo do “tratamento precoce” tiveram taxas de mortalidades maiores do que as respectivas médias estaduais. Há também na imprensa inúmeros declarações de profissionais da saúde relatando quadros clínicos de agravamento e complicações diretamente ligadas à automedicação desnecessária.

 

A relação entre a Associação de Médicos Pela Vida e Bolsonaro

No site da Associação ainda é possível encontrar matérias defendendo a não obrigatoriedade das vacinas. Uma busca em qualquer sistema WhoIs, que indica a propriedade de domínios na internet, mostra que o site da Associação está no nome de Claudinaldo Vicente dos Santos Junior, como pode ser visto aqui. Uma busca rápida por esse nome no Google nos mostra que Claudinaldo foi exonerado da Secretaria Municipal de Trânsito de Resende, no Rio de Janeiro, em 2014.

O outro nome associado ao domínio do site da Associação é o de Marcus Thiago de Oliveira Figueiredo. Ele foi coordenador de Tecnologia da Informação da Embratur, mas foi exonerado em 2020 após denúncias de assédio sexual reveladas pelo jornal Metrópoles. Na época, Marcus já estava ligado à Associação de Médicos Pela Vida e – mesmo depois de ter sido exonerado pelo caso de assédio – chegou a participar de reunião com o presidente Bolsonaro para discutir medidas contra o aborto, defendidas pelo grupo.

Além de falso, mentiroso e oportunista, o manifesto coloca um debate sobre o papel dos grandes jornais da disseminação desse tipo de informação. Ou seja, informação falsa. Desde meados de 2018, quando as eleições presidenciais colocaram na ordem do dia a discussão sobre as fake news e a pós-verdade, os grandes jornais tem se debatido para enfrentar a questão. Há um medo muito grande, por parte de todos, que uma política de combate às notícias falsas dê margem para escaladas autoritárias do governo de plantão. Por isso o debate tem sido colocado nos termos de um enfrentamento entre a censura e a liberdade de expressão.

 

A hipocrisia dos grandes jornais

Contudo, grandes empresas de mídia, Congresso e a Justiça brasileira transformam o debate em uma grande hipocrisia ao colocá-lo no nível de uma discussão moral. Como se a pessoa que manda uma notícia duvidosa no grupo do condomínio fosse tão culpada quanto as milícias digitais do bolsonarismo. O que eles não fazem – e por isso são hipócritas – é justamente separar quem reproduz de quem financia as notícias falsas. Máquinas de fake news são muito bem financiadas mas seguir o rastro do dinheiro é tudo que eles não querem.

Isso significa que, além de hipócrita, o aceite dos grandes jornais em publicar o Manifesto Pela Vida é cínico. Os mesmos que dizem estar preocupados com as notícias falsas são os que, por algumas centenas de milhares de reais, aceitam a publicação de conteúdo mentiroso.

E não somos nós que estamos dizendo que o Manifesto é mentiroso. São os próprios jornais que publicaram o manifesto. Ou melhor, os profissionais de imprensa que neles trabalham. Semanalmente jornalistas fazem o sérios esforço de desmentir esse tipo de coisa. Assinam matérias com seus nomes e são submetidos a linchamentos virtuais por parte das milícias digitais e de exércitos de robôs.

Os jornalistas desses veículos, inclusive, junto de seus sindicatos e associações, deveriam estar cobrando uma resposta das empresas. Quanto pagaram por esse anúncio e porque aceitaram receber? O que elas fizeram com a publicação do Manifesto foi, em nome do lucro, descartar o trabalho de seus próprios profissionais que se expõem semanalmente e são ameaçados pelo trabalho que fazem. O relatório da Federação Nacional dos Jornalistas já mostrou que sob o governo Bolsonaro a violência contra jornalistas e os ataques contra a liberdade de imprensa cresceram 54%. Aceitar a publicação desse manifesto é mais um episódio de violência contra os trabalhadores da imprensa.

O cinismo e a hipocrisia da Folha de S. Paulo, por exemplo, é tamanho que o jornal chegou a publicar no mesmo dia dois conteúdos desmentido o Manifesto. Um feito pela agência de checagem Lupa, e outro por um jornalista da casa. Consultaram fontes, checaram fatos, informações, tentaram ouvir a Associação, tudo como manda os manuais de jornalismo. Ouviram até a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que disse defender a “liberdade de expressão” no caso do anúncio. A única coisa que não fizeram e que deveriam ter feito é: questionar o próprio departamento comercial do jornal.

 

Mercadoria notícia

Aparentemente, para os grandes jornais, a diferença entre uma informação falsa e uma “opinião controvérsia” é a quantidade de dinheiro envolvido. Se um grupo é grande o bastante para pagar por anúncios e fazer lobby no Congresso, tudo não passa de uma “polêmica”.

Fica então a pergunta: que moral essas grandes empresas têm para debater o problema das fake news e enfrentar a desinformação se, no final das contas, o que vale é o lucro da empresa?

O debate, contudo, não é novo. Em 2016 a Fiesp pagou por informes publicitários defendendo o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Fato é que os grandes jornais, como empresas capitalistas que são, estão interessados primeiros em seus lucros. O jornalismo e sua função social vêm depois. O jornal ideal para elas seria o jornal sem notícias, só com espaço publicitário, pois é daí que vêm os lucros.

Apesar de escandalosa, a publicação no Manifesto não é bem uma novidade. A hipocrisia e o cinismo da grande imprensa não é de hoje. A notícia aqui é só o tamanho dessa hipocrisia.