Nelson Mandela está morto. Antes de mais nada, há que se respeitar a dor e o luto daqueles que têm referência no líder sul-africano que cumpriu um papel decisivo na luta contra um dos regimes mais racistas e fascistas que já existiu no mundo.

Não por acaso, sua morte, nesse 5 de dezembro aos 95 anos, foi sentida particularmente por negros e negras, cujas consciência e militância contra o racismo – em inumeráveis casos e durante gerações – começaram inspiradas por ele, alimentadas pela indignação e revolta contra o asqueroso regime do apartheid, ou em meio à campanha “Libertem Mandela”, cuja prisão, por quase três décadas, impulsionou mobilizações ao redor do planeta.

Por isso mesmo, hoje, não são só os que lutam contra o racismo que, mundo afora, estão de luto, manifestando sincera comoção e tristeza diante da morte do principal dirigente do Congresso Nacional Africano. A morte daquele que, inegavelmente, foi um dos maiores símbolos da luta pela liberdade e justiça no século 20 também foi sentida por oprimidos e explorados, trabalhadores e jovens, e ativistas de todos os movimentos sociais e em todos os cantos do mundo.

Nós, do PSTU, estamos entre os que reconhecem a importância de sua luta e veem sua trajetória com respeito. Contudo, diante de sua morte, também não podemos esquecer que nem toda ela pode ser saudada sem críticas pelos socialistas. Sua história política e seu legado para os sul-africanos também estão marcados por contradições que, de certa forma, encontram-se sintetizadas no principal cartaz que, hoje, ilustra a entrada do Museu do Apartheid, em Johanesburgo: “Mandela: Companheiro. Dirigente. Prisioneiro. Negociador. Homem de Estado”.

Hoje, diante de sua morte, a maioria da imprensa, personalidades e dirigentes mundiais (muitas delas mergulhadas na total hipocrisia) ressaltam o “negociador e homem de Estado”. E é exatamente aí que reside a principal contradição: há uma considerável distância entre o companheiro Mandela, que serviu de inspiração para negros e negras ao liderar uma luta inegavelmente revolucionária contra o Estado racista sul-africano, e o ex-presidente que, simultaneamente, liderou o processo de “reconciliação” e abriu as portas da África do Sul para o neoliberalismo.    

Décadas dedicadas à luta
A vida de Rolihlahla Mandela praticamente se confunde com a história do apartheid e da luta contra o regime. Ele nasceu em 18 de julho de 1918 na província de Transkei, filho de um chefe tribal e descendente da realeza Thembu, do clã Madiba (nome pelo qual é chamado pelos sul-africanos). Nelson, seu nome “branco” lhe foi dado apenas aos sete anos, no primeiro dia na escola.

Naquela época, o regime do apartheid começava a ser implementado pelos imperialistas britânicos e holandeses que, depois da sangrenta Guerra dos Boers, se uniram para criar um sistema segregacionista que pudesse lhes garantir o completo domínio sobre os gigantescos e bilionários recursos minerais do país, às custas da exploração sem limites dos mais de 90% de não-brancos sul-africanos.

Sua militância teve início no movimento estudantil, aos 23 anos, quando começou a estudar Direito na Universidade de Fort Hare. Pouco depois, em 1942, Mandela passou a integrar o CNA (fundado em 1912), criando, dois anos depois, a Liga da Juventude do movimento.

Suas atividades se intensificaram depois de 1948, quando o Partido Nacional (que agrupava os africâners/brancos) começou a impor a asquerosa legislação segregacionista que, dentre outros absurdos racistas, previa a divisão da população em quatro “setores”: negros, mestiços, indianos/asiáticos e brancos. Criminalizavam casamentos e até mesmo relações sexuais interraciais; impunham passes para que não-brancos circulassem até mesmo em suas regiões; separavam todos os aspectos da vida social (do transporte à educação; dos locais públicos ao acesso ao emprego) em base ao critério racial e baniram toda e qualquer organização anti-apartheid, colocadas todas sob a “etiqueta” de comunistas.

Foi como líder da juventude que Mandela, em 1955, cumpriu um importante papel na construção da “Carta da Liberdade” que, nas décadas seguintes, serviu como um “programa” que unificou boa parte da resistência ao regime em torno de uma série de reivindicações que começavam com as palavras de ordem: “O povo deve governar” e “O povo deve dividir a riqueza do país”, concretizadas em exigências de direitos e oportunidades iguais em relação à moradia, ao emprego, educação, saúde, segurança etc.

Assim como muitos outros militantes e organizações sul-africanas, a radicalização da militância de Mandela se deu depois do Massacre de Shaperville, em março de 1960, quando 69 pessoas foram assassinadas (e 180 gravemente feridas) em um protesto contra a “lei dos passes”.

Ao redor do mundo, o impacto do massacre e a pressão de trabalhadores e jovens (cujos corações e mentes pulsavam no ritmo acelerado dos rebeldes anos 1960) intensificou o isolamento do regime sul-africano e obrigou a ONU a declarar o dia do Massacre – 21 de março – como Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial.  

Dentro da África do Sul, a revolta levou a uma vigorosa onda de mobilizações que foi enfrentada por uma forte repressão que resultou na detenção de cerca de 12 mil pessoas (cinco mil das quais foram condenadas) e um número nunca definido de mortos. Foi neste período que Mandela divulgou uma foto queimando seu próprio passe (o que significava, obrigatoriamente, a ida para a clandestinidade) e fez uma declaração pública na qual anunciava que era chegada a hora de se pegar em armas contra o regime.

Mandela, então, tornou-se fundador e principal comandante do Umkhonto we Sizwe (a MK, “A Lança da Nação”), cargo que exerceu por pouquíssimo tempo, já que foi preso juntamente com boa parte das direções do movimento em 5 de agosto de 1962, sendo condenado, um ano depois, à prisão perpétua. Pena que cumpriu por 27 anos (18 deles isolado na Ilha de Robben), até ser libertado em 1990.

Os descaminhos de uma revolução
De dentro da prisão Mandela não só continuou a liderar a resistência, como ajudou a impulsionar a luta na medida em que a campanha por sua libertação e dos demais presos políticos tornou-se uma campanha permanente, abraçada por movimentos de todas as partes do mundo.

Na época, suas posturas de dentro da prisão também foram fundamentais para alimentar e impulsionar a luta contra o sistema. Em 1976, por exemplo, um novo ascenso varreu o país depois do terrível Massacre de Soweto (no qual a polícia abriu fogo contra estudantes, muitas deles menores de 10 anos, que protestavam contra o uso obrigatório dos passes e da língua dos opressores, o afrikan, dentro das escolas).

Diante da enorme repercussão (ainda maior depois das milhares de mortes que se seguiram país afora), o governo, acuado, ofereceu a liberdade a Mandela, contanto que ele retornasse para sua província, no interior do país. Proposta que o dirigente do CNA recusou.  

Poucos anos depois, em 1985, depois de uma tentativa frustrada e amplamente repudiada de formar um Parlamento Tricameral (somente com brancos, indianos e mestiço), o governo lhe ofereceu liberdade condicional, exigindo “apenas” que ele não incentivasse a luta armada. Mais uma vez, Mandela rejeitou a proposta, mantendo-se firme na luta, mesmo que por detrás das grades.

As farsescas concessões do regime, longe de demonstrarem uma real proposta de “abertura” surgiram como uma tentativa de conter um ascenso cada vez mais generalizado que, como lembram os autores de “Images of defiance” (Imagens de desafio) fizeram com que os anos 1980 sejam “lembrados como a década durante a qual os pilares do apartheid começaram a ruir diante da insurreição popular”.

Uma insurreição popular que, ao contrário de ser contida pelo fascista Estado de Emergência (instaurado entre 1985 e 1989), impulsionou a formação de inúmeras entidades (dentre elas o Congresso Sul-Africano de Sindicatos, a Cosatu, fundada em dezembro de 1985) e todo tipo de organizações de base que, segundo os autores do mesmo livro, “se consolidaram, criando – em alguns “townships”– uma situação que era popularmente percebida como de ‘duplo poder’, entre as estruturas cívicas e os representantes locais do Estado”.  

Foi exatamente nesse momento que a trajetória de Mandela deu uma guinada. Mundo afora, setores reformistas e burgueses de todas as matizes começaram a alardear a possibilidade de uma “sangrenta guerra civil” (o nome que estes setores dão aos processos revolucionários) e a pregar a necessidade imediata de negociações. Uma ideia lamentavelmente abraçada por Mandela.

No mesmo ano em que a Cosatu foi fundada, unificando praticamente todos os setores da classe operária e a colocando à frente do processo revolucionário, Mandela, depois de receber a visita, em sua cela, do ministro da “Justiça” do regime fascista, escreveu em seu diário (transformado depois em sua autobiografia “Um longo caminho para a liberdade”): “Eu tinha chegado à conclusão de que havia chegado o momento no qual a luta poderia ser impulsionada de melhor forma através das negociações” (p. 625).

Da revolução à reconciliação
As negociações, comandadas por Mandela e o Joe Slovo, o principal dirigente do Partido Comunista, foram sintomaticamente denominadas pela imprensa burguesa como “O milagre” e começaram a ser, primeiro com representantes do governo do então presidente P.W. Botha; depois com o “homem forte” do regime, o ministro das Relações Exteriores, Pik Botha. A partir de então, o presidente passou a receber em sua residência oficial, regularmente, o ainda prisioneiro Mandela, que era levado sigilosamente a ele.

O último encontro entre os dois ocorreu em 5 de julho de 1989. Em outubro, o último presidente eleito pelo regime, De Klerk, anunciou a libertação de alguns dos principais dirigentes do CNA e seus aliados e sinalizou com uma “abertura” (liberação das praias, retirada gradativa das leis segregacionistas etc.).

Apesar de colocarem os movimentos em “compasso de espera”, as medidas não foram suficientes para paralisar o processo de luta. As massas continuavam nas ruas, prédios públicos eram bombardeados com frequência, colaboracionistas (negros, mestiços e indianos) do sistema estavam sendo varridos do país e, principalmente, as greves e paralisação atingiam literalmente todos os setores da classe trabalhadora.


Mandela e o último presidente do apartheid, De Klerk

Foi em meio a este clima que Mandela finalmente foi libertado, no dia 11 de fevereiro de 1990, sendo recebido por uma das maiores e mais impressionantes manifestações do século 20 (que ecoou com força em praticamente todos os países do mundo).

Começava então o processo de “negociação e reconciliação”, liderado por Mandela e conduzido pela Convenção para a Democratização da África do Sul (Codesa).

O apartheid neoliberal
As negociações desembocaram nas eleições de abril de 1994 – cujas intermináveis filas ilustraram as enormes expectativas depositadas pela população –, nas quais Mandela (à frente da Aliança Tripartite – CNA, PC e Cosatu) foi eleito presidente do Governo de Unidade Nacional, tendo De Klerk como um dos vice-presidentes e formando um ministério com 27 membros, seis deles entregues a representantes do racista Partido Nacional.

A asquerosa legislação foi imediatamente banida. O pesadelo do apartheid havia chegado ao fim. Contudo, não de forma completa. Muito menos no que se refere àquilo que de mais importante se escondia por trás do regime racista: a manutenção de um gigantesco abismo sócio-econômico entre brancos e negros. Um abismo preservado em função do que muitos sul-africanos, hoje, chamam de “apartheid econômico” ou “apartheid neoliberal”.

Mandela, infelizmente, foi um dos principais responsáveis por esta situação. Seu principal projeto, o Plano de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP), apesar de prometer “paz, emprego, liberdade e uma vida melhor para todos”, na verdade, significou um profundo mergulho no pântano do neoliberalismo, com privatizações, reestruturação produtiva (terceirizações, precarização do trabalho etc.) e, simultaneamente, a manutenção quase intacta do grosso da economia nas mãos dos brancos.

Este processo foi acompanhado pela criação das raízes do hoje extremamente questionado projeto chamado de “Empoderamento Econômico dos Negros”. Hoje, o BEE (que significa “abelha”, na sigla em inglês) é alvo de todo tipo de críticas por parte de negros e negras que perceberam que ele só beneficiou um punhado de membros das entidades que compõem a Aliança Tripartite que, na voz correntes, “vivem de sugar o mel que jorra do Estado e dos grandes negócios”.

Para se ter uma ideia da razões das críticas, basta citar o lamentável exemplo de Cyril Ramaphosa, que foi o braço direito de Mandela durante o processo da Codesa e, antes, um dos fundadores do Sindicato Nacional dos Mineiros (NUM), a principal e mais forte entidade no interior da Cosatu.

Hoje, além de ser presidente do CNA, Ramaphosa é um dos homens mais ricos do país, possuindo vários negócios – nas áreas de recursos naturais, energia, imóveis, segurança, alimentação e comunicação, dentre outros – e exercendo o cargo diretor da Lonmin, a gigantesca empresa mineradora que controla a extração de platina que é dona da mina de Marikana, onde, em agosto do ano passado, 34 grevistas mineiros foram massacrados por policias, trazendo à lembrança os massacres de Shaperville e Soweto. Aprofundou-se, assim, o vigoroso processo de reorganização dos movimentos sociais que está em curso no país (leia mais aqui).

Quase 20 anos depois de ter chegado, o resultado do caminho escolhido por Mandela (e aprofundado por seus sucessores, Thbek e Zuma), infelizmente, não poderia ser outro. Hoje, cerca de 40% da população negra vive na linha da pobreza,  principalmente por uma porcentagem idêntica está desempregada (o que chega a 60% da juventude).

Também como exemplo do “apartheid do Capital”, a relação entre o rendimento de negros e de brancos continua quase a mesma dos tempos do infame apartheid: se em 1993 os brancos tinham um rendimento 8,5 vezes maior que o dos negros, em 2008 essa relação era de 7,68 vezes. Algo que faz com que 5% da população (brancos e alguns poucos “bees”) continuem se apropriando de 43% da economia, o que faz com que a África do Sul esteja à frente em qualquer “ranking” sobre desigualdade social no mundo.

Mandela, desta forma, cumpriu um papel duplamente nefasto neste período. Primeiro, serviu à classe dominante para uma transição negociada que mantinha o capitalismo e essencialmente a mesma estrutura socialmente desigual do país. Bloqueou, assim, uma poderosa revolução democrática que poderia evoluir, da luta contra o apartheid, para uma revolução socialista que ameaçasse o Estado burguês. E depois, à frente do Estado, impôs diretamente várias reformas neoliberais que aprofundaram as desigualdades.

“Amandla Awethu”
Apesar de que muitos sul-africanos (a maioria, para ser exato) ainda separem a situação atual do início do governo Mandela, não há como isentá-lo disto, como lembrou o escritor e poeta negro sul-africano Zakes Mda, em um artigo intitulado “Mandela: nem vendido nem santo”, publicado no “The Guardian”, no dia 6 de dezembro: “para mim, Mandela não foi nem o demônio que muitos [críticos do CNA] querem fazer dele, nem o santo que a maioria de meus compatriotas e da comunidade internacional pensam que ele é”.

Lembrando, ainda, do crescente clima de desilusão, principalmente os jovens que nasceram durante os anos de “transição”, Zake Mda não está entre os que desvinculam Mandela deste processo, ao defender que a desigualdade de oportunidades “foi reforçada, ao invés de mudada, pela presidência de Mandela. Seu foco nos símbolos e na atmosfera de reconciliação foi feito às custas de uma verdadeira reforma econômica”.

Consequentemente, “a desilusão da juventude negra sul-africana começou quando ele era presidente. Como também a desenfreada acumulação de riqueza pelos membros do partido dirigente, acompanhada pela marginalização da maioria da população negra que permaneceu pobre e desempregada, concluiu Mda.

Apesar disto, principalmente para negros e negras de todo o mundo, Mandela continuará ser lembrado como um dos principais símbolos da luta contra o racismo e como um combatente incansável capaz de enormes sacrifícios na luta pela liberdade. E esta é uma lembrança mais do que correta e justa. Afinal, não há porque negar que Mandela foi um homem cuja coragem e determinação nos ensinou que a luta pode mudar a vida, mesmo quando o mundo atinge contornos tão absurdos como os que foram impostos pelo apartheid.

Contudo, o “negociador e homem de Estado” que ele também foi também não pode ser esquecido. Algo que também nos deixa uma importante lição: não há como derrubar os efeitos do racismo sobre a vida de trabalhadores e jovens, sem se colocar abaixo o sistema que o utiliza para superexplorar negros e todos os setores historicamente marginalizados. “Não há capitalismo sem racismo”, como nos lembra Malcolm X. E, por isso mesmo, o fim do “apartheid legal”, uma vitória inquestionável na qual Mandela cumpriu um papel imprescindível, não foi acompanhado pelo fim do abismo sócio-econômico alimentado, ainda, pela segregação racial.

Por isso, nós da Secretaria de Negros e Negras do PSTU, hoje, respeitamos a sua memória. Contudo, acreditamos que não podemos homenageá-lo de forma acrítica. Pelo contrário. Acreditamos que a melhor forma de prestar uma homenagem a sua vida dedicada à luta é dando continuidade a ela. Fazendo-a ir além dos limites que ele, infelizmente, optou por impor.

Para nós, a lembrança que fica de Mandela é as dos anos de luta quando, à frente de seu povo, ele puxava a palavra de ordem “Amandla” (o poder), que entusiasticamente respondia “Awethu” (é nosso). Mandela contribui de forma inestimável para alimentar este sonho, mas também contribuiu para jogar o país no pesadelo neoliberal.

Hoje, quando tomam as ruas aos milhões para homenagear seu ex-líder, temos certeza que o sonho de liberdade será relembrado. Da mesma forma que temos certeza que os sul-africanos irão, um dia, transformá-lo em realidade de fato.