No dia 29 de junho, Lula e o ministro das Comunicações do Japão, Heizo Takenaka, assinaram o acordo para implantação do sistema de TV digital no país. Depois de cerca de dez anos de discussões e uma acirrada disputa entre empresas norte-americanas, européias e japonesas, a assinatura foi comemorada e anunciada como mais uma conquista do governo na condução do país ao “primeiro mundo”.

Para se ter uma idéia da importância dada pelo governo ao acordo, no dia 2 de julho, nada menos que seis ministros assinaram um artigo na Folha de S. Paulo para defender as razões que levaram o governo a optar pelos japoneses. Segundo o artigo, o que motivou a escolha foram questões puramente técnicas – melhor qualidade das imagens e serviços – e a preservação das diretrizes que Lula estabeleceu para o sistema: “acessibilidade por parte de toda a população; inclusão social; preservação da identidade nacional nos meios de comunicação de massa; fortalecimento da cadeia produtiva de televisão”.

Tudo muito bonito. Mas tão verdadeiro quanto o enredo de uma telenovela. Aliás, é grande a proximidade desta história com a teledramaturgia. Afinal, por trás da escolha do padrão japonês (conhecido como ISDB), estão interesses tão escusos quanto as falcatruas e manobras típicas dos vilões que povoam a “telinha”. A única diferença é que, neste caso, quase todo mundo já sabia como a história iria acabar.

Apesar de a discussão ter começado ainda no governo FHC, o debate ganhou corpo em 2003, quando Lula anunciou a intenção de definir o padrão a ser adotado no Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Desde então, cerca de 1.500 cientistas e técnicos brasileiros se dedicaram a estudar qual seria o melhor deles e, principalmente, a desenvolver um sistema próprio, com tecnologia nacional, que nos desse autonomia. Neste processo, foram gastos cerca de R$ 50 milhões em verbas públicas.

Enquanto isso, nos bastidores, representantes dos sistemas europeu (conhecido como DVB e utilizado em 99 países) e norte-americano (ATSC, adotado pelos EUA, além de Canadá, México e Coréia do Sul) se debatiam furiosamente para conseguir o papel principal. Como anunciamos em março no Opinião, todas as evidências levavam a crer que, no capítulo final, Lula subiria ao altar com os japoneses (apesar de o padrão ser utilizado só neste país), levando como damas-de-honra as emissoras brasileiras e como madrinha a sempre onipresente Rede Globo.

O que há por trás ?
Em uma Carta Aberta divulgada no dia 29 de junho, a Frente Nacional por um Sistema Democrático de TV Digital afirma que a adoção do padrão japonês, “no apagar das luzes do primeiro mandato do presidente Lula”, significa não só a morte do SBTVD, como também a submissão do governo “aos interesses dos principais radiodifusores do país, especialmente aos das Organizações Globo”.

A nota destaca ainda que, além da falta de transparência nas negociações, elas também foram marcadas pela completa ausência de discussão com a população, “privilegiando a interlocução com os representantes das emissoras comerciais de televisão e negando-se a abrir espaço semelhante às organizações sociais”.

Para se entender o porquê disto, é preciso lembrar duas coisas. Primeiro, as possibilidades oferecidas pelo sistema digital são, no mínimo, fascinantes: assistir à programação em equipamentos móveis, acessar até quatro canais por faixa e uma quase completa interatividade (podendo, por exemplo, usar a TV para serviços públicos, comentar programas, ler e-mails, etc). Segundo, o que diferencia os padrões que estavam em disputa é que este serviço pode tanto priorizar a transmissão por empresas de telecomunicações (casos europeu e norte-americano) ou pelas emissoras de TV (sistema japonês).

Ou seja, por trás dos três padrões, existiam unicamente dois grandes grupos. De um lado, as emissoras de TV. Do outro, os fabricantes de celulares e tecnologia móvel, aliados às grandes operadoras. A “vitória” das emissoras significa que os celulares poderão receber a programação da TV aberta diretamente, sem que os sinais passem pela rede das telefônicas (ou seja, sem que estas recebam um só centavo). Caso as teles tivessem ganho a queda de braço, poderiam atuar na distribuição e produção de conteúdos tanto para a TV quanto para os celulares. Algo, evidentemente, inaceitável para a Rede Globo e suas parceiras (principalmente quando se sabe que, no Brasil, temos cerca 54 milhões de aparelhos de TV, contra 85 milhões de celulares).

O custo da modernidade
As negociações e a decisão do modelo foram conduzidas pelo ex-repórter da Rede Globo e atual ministro das Comunicações, Hélio Costa, e sua implantação deve implicar em, no mínimo, R$ 100 bilhões em dez anos.

Costa, Lula e seus parceiros não dizem, no entanto, que, como sempre, a população vai arcar com os custos. Segundo especialistas, o investimento que terá de ser feito pela população para a migração de um sistema para outro (compra de novos televisores e conversores, além dos “inevitáveis” impostos e taxas adicionais) será cerca de dez vezes maior do que aquele bancado pelas emissoras.

Segundo o ministro, somente o equipamento decodificador para fazer a conversão do sistema analógico para o digital irá custar entre R$ 80 e R$ 100. O que também não é verdade. Todos os especialistas acreditam que o custo médio de cada aparelho não será inferior a US$ 150 (R$ 300), podendo chegar facilmente ao dobro. Além disso, a alta resolução prometida pelo sistema só será desfrutada em aparelhos de televisão que, hoje, custam cerca de R$ 7 mil.

Toda esta tecnologia não tem como objetivo trazer benefícios e serviços ao público. A interatividade, ou seja, a possibilidade de o espectador acessar o canal “online” é um sonho para os vendedores de produtos pra lá de supérfluos dos programas de TV.

Por fim, como entre capitalistas, até os “perdedores” acabam lucrando. As empresas de celulares também receberão seu filão, já que também se prevê que, nos próximos anos, milhões trocarão seus celulares por aparelhos capazes de captar a programação da TV no visor.

De olho nas urnas
Em seu decreto, Lula atendeu uma outra reivindicação fundamental para as redes de TV. Como todo o processo de migração dos usuários de um sistema para outro deve demorar no mínimo dez anos, o governo concedeu “gratuitamente” um novo canal para todas as emissoras. Assim, elas poderão oferecer, paralelamente, sua programação para TV’s analógicas e digitais.

Esse “agrado” praticamente decreta a continuidade do monopólio dos meios de comunicação, já que fecha o espectro possível de canais em UHF e VHF em São Paulo e Rio para novas redes de TV e para outros usos das freqüências, como internet e telefonia.

Esse verdadeiro pacote de benefícios concedidos às emissoras não foi feito a troco de nada. Como denunciou um informativo do Intervozes: Coletivo Brasil de Comunicação Social, Lula cedeu – sem nenhuma resistência ou pudor – ao “pragmatismo eleitoral”.

Promessas, promessas… democracia, nada!
Nas negociações, para justificar sua submissão às emissoras, o governo afirmava que o Brasil receberia dos japoneses a construção de fábricas e o repasse de tecnologia. No fim, nada disso ocorreu.

Agora, além de prometer a criação de TV’s públicas para garantir o acesso ao sistema, Lula diz que irá financiar ou subsidiar o custo dos decodificadores. Mais um conto de fadas pré-eleitoral.

O fato é que Lula não só agiu mais uma vez pautado nos interesses do grande capital, como também dinamitou a possibilidade de o Brasil se tornar autônomo em uma área estratégica, já que os milhões de reais e todo o esforço dos pesquisadores brasileiros agora servirão simplesmente para “adaptar” o sistema japonês.
O governo deu mais um importante passo na direção contrária do que precisamos nos meios de comunicação: a sua completa democratização, o fim dos monopólios e o controle da sociedade sobre quem e o que se veicula nas emissoras de rádio e TV.

Possibilidade que poderiam ser potencializadas pela tecnologia digital, na medida em que esta permite múltiplos canais que, ao invés de ficarem promovendo vendas e bobagens, poderiam ser utilizados pelas organizações dos movimentos sociais.

É preciso que os movimentos sociais assumam a luta pela democratização, enfrentando os monopólios, grupos econômicos e famílias que controlam os veículos e denunciando o papel de um governo que tem um ministro da Globo, fecha rádios comunitárias e usa da digitalização para fortalecer o monopólio.

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