Estamos a 16 meses da eleição presidencial dos EUA, mas a campanha, de fato, já começou. O calendário para a escolha dos candidatos dos Partidos Democrata e Republicano, nas primárias [1] que ocorrerão no início de 2008, foi antecipado em vários meses, e os candidatos pelos dois partidos já percorrem o país em busca de apoio e, principalmente, de dinheiro para suas campanhas.

Esta antecipação ocorre devido à vitória dos democratas nas últimas eleições legislativas de novembro de 2006 para a renovação da Câmara dos Deputados e de parte do Senado, quando o principal tema da campanha foi a guerra do Iraque. Pela primeira vez desde 1994, o Partido Democrata conseguiu maioria nas duas casas. Este fato deixou o presidente Bush refém de acordos com os democratas para poder governar e acendeu a luz vermelha de perigo para o imperialismo, principalmente pelo medo do fantasma do Vietnam.

Soma-se a isso mais dois fatos que estão levando a imprensa norte-americana a classificar esta eleição de histórica: pela primeira vez desde 1952 nenhum presidente ou vice-presidente titular está concorrendo, e poderá ser uma campanha de “primeiros”. Os norte-americanos poderão eleger a primeira presidente mulher, Hillary Clinton. Ou o primeiro presidente negro, Barack Obama. O primeiro mórmon, Mitt Romney. O primeiro hispânico, Bill Richardson, ou o presidente mais velho, John McCain. “Além disso, não há um favorito destacado pelo lado republicano, um fato sem precedentes e, dos dois lados, mesmo os candidatos mais atrativos têm falhas e limitações que os eleitores terão que enfrentar”, avalia o assessor do Partido Democrata Geoff Garin.

Tampouco Hillary Clinton pode ser considerada de antemão a favorita inevitável dos democratas, apesar de sua liderança nas pesquisas nacionais. Esposa do ex-presidente Bill Clinton, Hillary destacou-se por suas duras posições neoliberais como primeira-dama e tem hoje o apoio entusiasmado das feministas de seu país. Ela é ameaçada por Barack Obama, um senador novato de idéias reformistas para os padrões norte-americanos, que anunciou uma arrecadação de fundos de US$ 32,5 milhões no último quarto (os últimos 3 meses). Foi mais que qualquer candidato democrata na história num período similar, e bem acima dos US$ 27 milhões de Hillary Clinton.

A eleição de Obama é uma possibilidade real, já que uma pesquisa indicou que 59 % dos norte-americanos afirmam que o país está pronto para a eleição de um negro, contra 37% no início da década. Ele pode ser definido como um conciliador, que defende a inclusão dos negros no mercado de trabalho, mais importante, para ele, que a questão racial. Talvez a melhor caracterização de Obama seja dada pelo deputado Bobby Rush, um ex-Pantera Negra. “A elite burguesa prefere um afro-americano formado em Harvard, de fala suave, sempre sorridente e não ameaçador” do que alguém como ele. “Você sabe”, completa, “Moisés poderia não ser tão efetivo se não fosse criado como o neto do Faraó. Moisés tinha uma relação dentro do palácio, ele conhecia os caminhos e atalhos do palácio… por isso ele foi aceito… Barack tem a capacidade de mover-se dentro e fora do privilégio e do poder”. Isto é, dizemos nós, pode ser o candidato ideal para a burguesia em tempos mais conturbados da luta de classes. Por isso não é surpresa que magnatas das finaças como George Soros, Eric Mindich, Paul Tudor Jones e Daniel Loeb tenham feito doações para sua campanha.

Do lado dos republicanos, o candidato mais provável é Rudy Giuliani, prefeito de Nova Iorque famoso pela operação “tolerância zero” de combate ao crime naquela cidade, no qual inspiram-se os defensores da pena de morte e da ocupação de favelas pelo exército no Brasil, mas que não tem unanimidade entre seus pares por suas posições consideradas muito avançadas em temas sociais, como a defesa da legalização do aborto e dos direitos civis dos homossexuais.

Imprevisibilidade, novidades, mudança de comportamento do povo, uma nova consciência nacional em gestação, com a juventude norte-americana mais receptiva a idéias de esquerda. Tudo isso leva alguns analistas a comparar a próxima eleição com as mais importantes que já ocorreram na história daquele país, do ponto de vista burguês, “como em 1932, quando Franklin Roosevelt ganhou e expandiu em grande escala o alcance do governo federal; 1960, quando John F. Kennedy agarrou a tocha da liderança passada a uma nova geração; e 1980, quando Ronald Reagan levou os EUA a um caminho mais conservador”.

Republicanos e democratas, iguais em tudo
Porém, apesar das disputas eleitorais entre os dois partidos, nos principais temas costumam expressar concordâncias fundamentais. Nas eleições presidenciais de 2004, por exemplo, enquanto o vice-presidente Dick Cheney, candidato à reeleição, conclamava os norte-americanos a votar nos republicanos porque eram mais duros com o terrorismo, o democrata John Kerry pedia os votos dos eleitores argumentando que seu partido tinha a receita para ganhar a guerra do Iraque de maneira mais eficiente.

Diferente de 2004, atualmente a guerra do Iraque está no centro da disputa eleitoral. Quando o presidente Bush enviou ao Congresso o pedido para aumentar o orçamento de guerra, no início do ano, e enviar mais 30000 soldados, os democratas, já em maioria, decidiram exigir a retirada das tropas em março de 2008 em troca da liberação de mais US$ 125 bilhões para o esforço de guerra. A resposta da Casa Branca foi uma ameaça de veto ao projeto democrata.

Por fim, foi feito um acordo que permitiu a ida dos soldados e a liberação de verba com o compromisso de serem atingidas algumas metas até setembro. As metas exigidas pelos democratas relacionam-se à capacidade dos EUA derrotarem mais rapidamente a rebelião iraquiana, como a capacidade de controle do governo títere, ou com relação à economia, como a proposta da divisão do controle do petróleo entre os shiitas, sunitas e curdos.

Porém, conforme a situação no Iraque se agrava e a temperatura eleitoral aumenta, democratas e republicanos buscam outras saídas para agradar a opinião pública e, ao mesmo tempo, garantir a permanência dos EUA naquele país. Pelo lado republicano acontece uma debandada de deputados, que rompem politicamente com o presidente e apresentam uma série de projetos, como a divisão do país; a permanência das tropas com tarefas limitadas ao treinamento do exército iraquiano e ao combate ao terrorismo ou o estabelecimento de bases militares permanentes. Já o Partido Democrata prefere apostar na guerra parlamentar de desgaste, com um projeto que exige o início da retirada das tropas em 120 dias, para obrigar o veto presidencial e manter Bush na defensiva política.

A resposta da Casa Branca alega que um banho de sangue ocorreria se as tropas fossem retiradas e, afirmando sua visão colonialista, pede tempo para ajudar o povo iraquiano “a erguer suas próprias potencialidades”.

A política para a imigração é outro tema que aproxima democratas e republicanos. A questão da imigração ganhou muito destaque quando milhões de imigrantes foram às ruas para exigir sua legalização no primeiro de maio deste ano, um dia normal de trabalho nos EUA, transformando o filme “Um dia sem mexicanos” numa realidade nas principais cidades do país, e dando um sinal de alerta para o imperialismo.

No dia 17 de maio foi anunciado por uma comissão bipartidária do Senado o envio de um projeto de lei para oferecer status legal aos 12 milhões de imigrantes ilegais e para reforçar a segurança das fronteiras. Muito semelhante à legislação de alguns países europeus, como a Espanha, o projeto inclui um programa de trabalho temporário, pelo qual 400 a 600 mil trabalhadores estrangeiros seriam admitidos a cada ano, através de um sistema baseado na avaliação das qualificações profissionais dos candidatos, nível escolar e conhecimento de inglês.

Além disso, o projeto destina verbas para reforçar as fronteiras com a construção de mais muros, um aumento do número de patrulheiros e outras medidas de segurança. O projeto, na verdade, destina-se a garantir mão de obra sob medida à economia, sem excedentes. O visto de permanência e o emprego acabam quando acaba o trabalho. Assim, não seriam efetuados gastos “desnecessários” na área social com imigrantes desempregados.

Mas o projeto foi rejeitado no senado, por uma espécie de decurso de prazo, com 37 votos republicanos e 15 democratas. Note-se que a maioria dos democratas votou a favor de um projeto extremamente prejudicial aos imigrantes. Entre os republicanos rebeldes, a maioria, o principal argumento foi o de considerar o projeto uma forma de anistia a pessoas fora-da-lei. Como disse Lou Dobbs, um apresentador de TV e crítico do projeto, ele é uma vitória aparente do lobby “pró-estrangeiros ilegais” e “poderia ameaçar a soberania e a segurança nacionais”.

Entre os democratas, pesou a opinião de associações hispânicas e do presidente da AFL-CIO [2], John J. Sweeney, ao dizer que “todos trabalhadores sofreriam porque os empregadores terão prontamente em suas mãos um grupo de trabalhadores que eles podem explorar para forçar o rebaixamento dos salários, benefícios, sistemas de saúde e segurança e outros padrões de trabalho”.

Assim, por motivos diferentes, um projeto de lei que interessava muito a Bush, já que poderia ser uma importante arma eleitoral, é rejeitado. Os republicanos que abandonaram Bush exigem ação por parte do governo, garantindo que “o povo americano quer o início do reforço das fronteiras e não querem mais promessas…”. Os democratas, incapazes de oferecer uma saída para os imigrantes através da unidade dos trabalhadores norte-americanos e estrangeiros, legais e ilegais, garantindo o direito à sindicalização e aos direitos civis a todos, quer responsabilizar o governo Bush e assim conseguir dividendos eleitorais.

Na maior democracia do mundo o que vale é o dinheiro
No Brasil, já estamos acostumados com as campanhas eleitorais milionárias, a doação de dinheiro pelos empresários e toda corrupção que acompanha este sistema. Mas nada é parecido com a campanha eleitoral norte-americana. No sistema de dois partidos imperialistas que se revezam no poder para melhor garantir a exploração mundial e conferir uma máscara democrática aos governos, o que vale mesmo é o dinheiro arrecadado pelos candidatos.

Ainda na campanha pelas primárias, o Partido Democrata arrecadou a impressionante quantia de US$ 160 milhões nos 6 primeiros meses, enquanto o Partido Republicano chegou a US$ 105 milhões. Entre os candidatos democratas, Barack Obama foi o candidato que mais recebeu doações, alcançando US$ 59 milhões, seguido por Hillary Clinton, com US$ 52,5 milhões. Pelo lado republicano, Mitt Romey com US$ 34,5 e Rudy Giuliani com US$ 33 milhões são os primeiros.

Para se ter uma idéia, na última eleição presidencial no Brasil todos os partidos informaram a arrecadação de R$ 51 milhões (aproximadamente US$ 27 milhões) nos dois primeiros meses de campanha, o equivalente à metade da arrecadação de apenas um candidato às primárias norte-americanas.

Se levarmos em conta que Bush foi eleito com apenas 19% dos votos possíveis na última eleição, num sistema eleitoral de voto opcional e de eleições indiretas que distorcem enormemente a vontade popular, e onde cada partido é responsável até pelo transporte de seus eleitores, muito parecido com o voto de cabresto da época dos coronéis no Brasil, podemos afirmar que a cédula eleitoral é verde e cada voto vale seu peso em dólar.

De qualquer forma, o fato de um candidato negro e uma candidata mulher liderarem o ranking de arrecadação indica uma mudança de perspectiva na condução do principal império do mundo. É possível que, da mesma forma que na América Latina, o resultado da eleição presidencial de 2008 nos EUA seja a conseqüência distorcida de uma vontade por mudanças mais radicais que a população norte-americana está exigindo.

Algo mais fundo pode estar se mexendo no solo norte-americano
“Sete em cada dez norte-americanos acham que seu país está na direção errada. Sete em cada dez acham que o presidente e o Congresso estão fazendo um trabalho pobre, e Bush está prestes a chegar ao fim de sua carreira muito antes da norma histórica. A maioria opõe-se à guerra do Iraque e 67% estão insatisfeitos com o sistema de dois partidos”. Este é o veredicto de Kenneth T. Walsh, um jornalista político.

A causa mais evidente é o fracasso no Iraque, com bilhões de dólares retirados do orçamento da saúde, educação e previdência para alimentar uma máquina militar desmoralizada. Em 2001, Bush disse que a guerra do Iraque consumiria US$ 50 bilhões, mas as estimativas são de gastos de US$ 2 trilhões até 2006.

Mas alguns dados publicados por William K. Tabb na Monthly Review [3] mostram que algo mais pode estar ocorrendo, pois existe um ataque profundo ao nível de vida dos trabalhadores norte-americanos que pode estar na base do descontentamento com o governo Bush, com índice de aprovação de 29%. De 1980 a 2001, enquanto a renda per capita aumentou em quase 2/3, o salário médio dos trabalhadores caiu. Mesmo o salário dos americanos que ganham mais que os restantes 90% dos assalariados tiveram seus rendimentos aumentados em apenas 1% anuais. Por outro lado, aqueles que ganham mais que 99,9% dos assalariados tiveram um aumento de 181% nestes anos.

Mesmo numa gestão democrata, a última de Bill Clinton, enquanto 1% dos assalariados receberam 24% do total dos salários, a metade dos trabalhadores recebeu apenas 13%. E isto apesar de um crescimento de 24% na produtividade. Nos anos 80, os homens com educação primária viram seu salário real ser corroído em 20%, enquanto os homens com educação secundária tiveram seus salários reduzidos em mais de 23%. Ao mesmo tempo houve uma ampla expansão do trabalho temporário e de tempo parcial.

A pobreza aumentou. Durante os anos 80, 13% dos americanos entre 40 e 50 anos passaram pelo menos um ano vivendo na pobreza, mas nos anos 90 este número aumentou para 36%.

“O mito dos EUA como uma nação da classe média com perspectivas infinitas de mobilidade social ascendente é cada vez mais contraditório com as evidências. Aqueles no topo formam uma elite dirigente que está concentrando mais riqueza em suas próprias mãos. Edward Wolff calcula que os 10% mais ricos apropriam-se de 85% do rendimento das ações e dos fundos de investimento, e 1% destes abocanham a metade”, afirma William K. Tabb.

Mesmo a política de corte de impostos do Partido Republicano, desde Reagan até Bush, aumenta a diferença entre ricos e pobres, pois o déficit público resultante é financiado com empréstimos, fazendo com que para cada dólar de imposto cortado seja criada uma dívida de US$ 3,74 que será paga pela população. Mas esta realidade não se aplica ao 1% de mais ricos. Estas famílias foram beneficiadas com cortes de US$ 84.482 por membro da família, que excederam seus impostos em US$ 30.000.

Estes dados levam à conclusão que a diferença entre os mais ricos e os mais pobres aumentou progressivamente nas últimas décadas, e que não apenas a miséria relativa, mas a miséria absoluta também cresceu no país mais rico do mundo.

A devastação causada pelo furacão Katrina em 2005 mostrou a todo o mundo uma face pouco conhecida dos EUA: a pobreza da população de New Orleans. Mas os dados acima mostram que não está restrita a uma região daquele país. Mostram também que outro furacão pode estar sendo formado, o da revolta da classe operária mais poderosa do mundo. Quando isto acontecer, democratas e republicanos serão varridos do mapa e nenhuma eleição será suficiente para impedir seu curso. O curso da luta pelo socialismo.

NOTAS:
1.
As primárias são equivalentes às convenções partidárias no Brasil, mas realizadas em cada estado. Nesta eleição haverá o que está sendo chamado de megaprimária, devido à realização de convenções em mais de doze estados no dia 5 de fevereiro, que poderá decidir u futuro dos candidatos.
2. AFL-CIO é a central sindical dos trabalhadores norte-americanos.
3. William K. Tabb, Wage Stagnation, Growing Insecurity, and the Future of the U.S. Working Class, www.monthlyreview.org

FONTES:
Os dados e citações foram retiradas de edições eletrônicas dos jornais New York Times e Washington Post em: www.nytimes.com e www.washingtonpost.com.