Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Em 24 de agosto de 1882, morreu Luiz Gama, uma das figuras mais excepcionais de nossa história, tão excepcional que foi esquecido de propósito pelos livros didáticos e por aqueles que se prestam a falar da luta abolicionista no país. Mesmo quando é lembrado, em tempos de busca por saídas conciliatórias e remediadas, não tem sido raro que sua vida seja filtrada por uma perspectiva que tenta emparedá-lo na luta institucional ou retratá-lo como um intelectual negro símbolo de um tal empoderamento que, com certeza, o faria erguer seu vozeirão em protesto.

Para se ter uma ideia de quem foi Gama, basta lembrar que, há 132 anos, seu cortejo fúnebre, saindo da região da Mooca, em São Paulo, em direção ao Cemitério da Consolação, foi considerado, pela imprensa da época, como o maior jamais visto na cidade, arrastando cerca de 30 mil pessoas, a maioria escravos, negros e negras forros, gente do povo e brancos pobres que o viam como porta-voz dos anseio por liberdade e por um mundo novo – o que na época significava no mínimo republicano.

Por que esse apagamento? A resposta tem a ver com toda uma vida dedicada à luta sem tréguas pela liberdade e pela justiça, a uma língua tão afiada quanto a pena que usava para produzir seus textos (poéticos, literários, jurídicos e jornalísticos).

Mas, acima de tudo, em função de sua visão de mundo, era um rebelde e radical no melhor sentido do termo: sempre a busca das raízes dos problemas, vendo além da superfície das coisas e, por consequência, não poupando esforços para transformá-las de forma radical, desde suas estruturas. Uma visão de mundo sintetizada numa frase proferida, sem medo nem rodeios, em pleno Tribunal de Justiça: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa.”

Nascido e cunhado na rebeldia

A história de Gama tem origem e se confunde com a de outra grande lutadora de nossa história, sua mãe, Luiza Mahin, que ele próprio descreveu, mencionando sua participação na Revolta do Malês (1835) e na Sabinada (1837), numa carta autobiográfica que enviou em 1880 ao amigo Lúcio de Mendonça.

Apesar de ter nascido livre, foi vendido em 1840 pelo próprio pai, um homem branco atolado em dívidas, e levado para Santos, no litoral. De lá, seguiu a pé até Campinas, onde ninguém quis comprá-lo por “ser baiano”, sinônimo para “rebelde” na época, o que fez com que acabasse parando nas mãos de um comerciante de São Paulo.

Aprendeu a ler e escrever com um estudante que era pensionista do dono. Assim que pode, forjou documentos que “lhe restituíram” a liberdade. Em 1850, mesmo ano em que se casou com Claudina Gama, com quem teve um único filho, Benedito Graco, tentou frequentar o curso de Direito do Largo de São Francisco, enfrentando forte hostilidade (tanto de professores quanto de alunos) em função de sua negritude. No entanto, seguiu nas aulas como ouvinte, o que acabou o qualificando como rábula ou advogado provisionado (sem formação acadêmica, mas licenciado pelo poder judiciário). Isso não o impediu, como veremos, de se tornar um dos mais competentes advogados de nossa história.

 

PARA SEMPRE, UM DE NÓS!

Um revolucionário, por todos meios necessários

A frase está desde sempre associada a Malcolm X, mas não há porque não a utilizar para falar de Luiz Gama. Na introdução que fez para Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas, organizado por Lígia Fonseca Ferreira, uma das obras mais importantes sobre o autor-militante, exatamente por dar voz a ele próprio, o historiador Fábio Konder Comparado, sintetiza sua vida excepcional, a amplitude e a importância de seus feitos:

“O menino negro, vendido como escravo pelo próprio pai quando tinha dez anos, tendo aprendido a ler e escrever somente aos 17 anos, tornou-se um intelectual apurado e o maior advogado de escravos que este país conheceu. Praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro ilegal mais de 500 negros – fato sem precedentes na história mundial da advocacia. Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais que qualquer abolicionista brasileiro, não hesitou em desmascarar pela imprensa – o grande instrumento de contrapoder da época – a falsidade de nossas pretensas elites.”

Mesmo que precisa em vários sentidos, a síntese de Comparato ainda é um tanto parcial. Primeiro porque, para Gama, apesar de sua paixão pela escrita – tanto na sua forma poética e literária, quanto jornalística e jurídica –, não foi exatamente a imprensa a sua principal ferramenta de contrapoder. É verdade que suas sátiras sociais e políticas, seus textos afiados e suas peças jurídicas imbatíveis foram fundamentais em sua luta, tanto com relação à escravidão quanto à monarquia.

Vale dizer que a palavra para ele também tinha uma força para além do papel. Seu poder de oratória era quase lendário em sua época. Porém tudo que escreveu e produziu foi resultante de sua atividade militante concreta, também nas ações diretas, na luta pela liberdade. Algo que não se limitava aos textos publicados no jornal A Redenção, mas implicava em métodos de luta que incluíam libertar escravos de forma clandestina (mesmo quando isso significasse confronto aberto com os senhores, feitores e capitães-do-mato) e enviá-los para o Quilombo do Jabaquara ou outras regiões fora de São Paulo.

Mestiço consciente de sua negritude, homem que soube usar todas as armas em sua luta, rebelde contra toda e qualquer ordem estabelecida, conspirador que sabia atuar por dentro das instituições para detoná-las, Luiz Gama é, para nós do PSTU, um exemplo de revolucionário negro, mesmo que o socialismo ainda não estivesse em seu horizonte.

Isso, contudo, não o impediu de sentir e entender o verdadeiro sentido da revolução, como escreveu no folhetim O Polichenelo, em 31 de dezembro de 1876: “É muito difícil organizar uma revolução, muito mais difícil realizá-la, e absolutamente insuportável a opinião dos humanitários que nos apregoam máximas e dão lições de prudência no meio das tempestades e hecatombes.”