As revelações feitas no livro do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do exército (2015-2019) confirmam aquilo que ainda é familiar ao pensamento militar brasileiro: a noção autoritária de que as Forças Armadas são o árbitro da política interna do país. No livro General Villas Bôas: conversa com o comandante, escrito pelo pesquisador Celso de Castro a partir do depoimento do general e lançado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Villas Bôas revela que, em abril de 2018, houve uma articulação da cúpula do Exército para intervir com uma ameaça golpista e pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a recusar o habeas corpus que impediria a prisão do ex-presidente Lula.

Na véspera do julgamento do STF, o general escreveu no Twitter: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Na época, a mensagem foi amplamente denunciada como uma ameaça do chefe militar ao STF. Três anos depois, o próprio Villas Bôas, sabe-se agora pelo livro, afirma que a sua mensagem foi combinada e aprovada pelo alto comando do Exército. Essa instância reúne o comandante do Exército e os generais de quatro estrelas na ativa (15 membros atualmente).

A confissão de Villas Bôas é gravíssima, porque os militares articularam uma ameaça ao poder civil com a força militar. Deixa evidente que houve uma ameaça direta ao Supremo e se constitui num atentado contra as liberdades democráticas e o regime democrático burguês, a favor de uma visão autoritária e ditatorial de que o exército estaria em posição de tutelar ou intervir sobre o poder civil. Num sentido mais profundo, essa visão golpista de “poder moderador” é reflexo do entulho autoritário herdado da ditadura militar e nunca varrido para a lata de lixo da história. Por isso deve ser repudiada com vigor. A gravidade dessas informações exigiria, no mínimo, que todos os generais envolvidos – que ainda ocupam posições no alto escalão das Forças Armadas e no Governo Federal – fossem imediatamente afastados. Não se pode tolerar esse tipo de ameaça de gente que defende, à luz do dia, o golpe de 1964, seus torturadores e assassinos.

Daniel Silveira deve ser punido por defender ditadura

Embalado pelas revelações do general, articulador da candidatura de Bolsonaro e apoiador de seu governo militarizado, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), publicou um vídeo na internet no qual faz ameaças, prega o fechamento do STF, defende a ditadura militar e o AI-5, o mais duro Ato Institucional do período militar. Silveira é parte da escória bolsonarista defensora de um golpe no país, patrocina fake news, campanhas de difamação e ameaças de todo tipo a ativistas. Ele foi um dos que organizaram e financiaram os atos pró-golpe ocorridos em Brasília no ano passado. Mas o patife ficou conhecido mesmo por rasgar uma placa que homenageava a vereadora Marielle Franco (PSOL) num gesto de solidariedade aos seus assassinos que moram no condomínio Vivendas da Barra, mesmo do Bolsonaro.

Daniel Silveira rasga placa em homenagem a Marielle Franco.

Nesta terça-feira, 16, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, mandou prender em flagrante o deputado Daniel Silveira. Como é parlamentar, o caso vai para o plenário da Câmara dos Deputados e também será analisado pelo pleno no STF nesta quarta-feira. O problema não é o fato de o deputado fascistoide ter determinada opinião sobre ministros do STF. O problema é que o deputado atua em defesa de uma ditadura, contra todas liberdades democráticas, incluindo a de expressão, ameaçando fisicamente os ativistas sociais. Somos os maiores defensores da liberdade de expressão, mas o deputado e sua trupe miliciana e pró-ditadura atuam contra a liberdade de expressão e contra qualquer liberdade democrática. Aliás, este mesmo deputado ficou conhecido por defender o assassinato de Marielle Franco.

Pelo conjunto da obra, o deputado deve ter seu mandato cassado e ser preso. Não porque não se pode criticar o STF. Pelo contrário, porque age para impor uma ditadura, praticando inúmeros crimes. Ao mesmo tempo não devemos depositar nenhuma confiança no STF e em seus ministros, que tantas injustiças votam contra a classe trabalhadora, criminalizam nossas lutas e não são consequentes em impedir ameaças e ações autoritárias.
Basta ver a reação do Supremo contra Villas Bôas e os militares que fizeram a ameaça golpista em 2018. Poucos ministros se manifestaram contra suas revelações, a maioria se calou. Nem mesmo o presidente da corte, Luiz Fux, havia se pronunciado até o último dia 17.

A verdade é que o STF tem sido mais do que conivente com as ameaças autoritárias dos militares. É importante lembrar que na época das ameaças de Villas Bôas, o então presidente do STF, Dias Toffoli, resolveu reescrever a História e disse que preferia não usar o termo “golpe” para o golpe cívico-militar de 1964. Disse que houve “um movimento de 1964”: “Eu não me refiro mais nem a golpe nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964.” Na ocasião, Toffoli havia nomeado o general da reserva Fernando Azevedo e Silva para ser seu braço no Supremo. Adivinha quem sugeriu o nome do general? Acertou quem disse Eduardo Villas Bôas. Atualmente Silva é ministro da Defesa do Brasil no governo Bolsonaro.

O entulho autoritário está aí

Na história do nosso país, o exército sempre assumiu o papel de árbitro final das crises políticas. É uma longa história que vai desde a proclamação da República (1889), passando pela chamada “Revolução de 1930” e pelo Estado Novo (1937), até o golpe de 1964 e a postagem de Villas Bôas.

Essa presença das Forças Armadas na política brasileira pode ser interpretada como expressão da fragilidade das instituições da democracia burguesa em países capitalistas periféricos. As Forças Armadas acabaram revelando-se uma força muito mais coesa e organizada para interferir na vida política e, assim, garantir a paz social aos capitalistas, “submetendo o proletariado às correntes de uma ditadura policial”, como dizia Leon Trotsky ao estudar a América Latina.

A ditadura militar defendida por Bolsonaro, Mourão e por todos os militares do governo e pela cúpula das Forças Armadas protagonizou as maiores barbaridades da história recente do país. Num momento de crise social, com operários realizando greves, soldados rebelando-se nos quartéis contra os oficiais e camponeses lutando contra latifundiários, o golpe acabou com as liberdades democráticas e o direito a greve, interveio nos sindicatos, prendeu, torturou e assassinou trabalhadores, soldados, indígenas e camponeses. Tudo isso seria realizado para impor pesados ataques contra os direitos dos trabalhadores e assegurar a entrega do país ao imperialismo e o lucro dos grandes capitalistas que patrocinaram o golpe.

Toda essa geração que hoje está no comando das Forças Armadas e no governo foi politicamente educada na ditadura. Foi lá que aprenderam delírios tais como a doutrina do “inimigo interno”, a desconfiar de indígenas como uma ameaça à soberania; a confiar às Forças Armadas a missão da defesa da tradição, da família e dos valores nacionais (mesmo que sua cúpula seja totalmente entreguista, privatista e neoliberal); a idolatrar a mentira de missão salvacionista do golpe de 1964 (que “salvou a nação” do comunismo); e a defender a tortura da ditadura como um mal necessário de um país que supostamente estava em guerra.

Uma amostra desse pensamento está escancarada no livro de Villas Bôas. Em outros trechos, o general covarde diz que não houve pedido de desculpa das Forças Armadas por crimes cometidos na ditadura militar de 1964 por medo de punição na Justiça.

Outro trecho do general, digno do pensamento olavista, diz o seguinte: “Quanto mais igualdade de gênero, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente.” Há também a menção aos yanomamis como uma suposta ameaça à soberania. Em seu desvario, o general diz que os indígenas se juntariam aos interesses estrangeiros para criar uma “Nação Yanomami”, declarando a independência do Brasil…

História precisa ser passada a limpo

Por que esse pensamento delirante segue presente na alta cúpula das Forças Armadas?
A questão é que, durante o processo de redemocratização, a burguesia pactuou a preservação das instituições militares concedendo anistia a generais e torturadores. Até hoje os arquivos da ditadura não foram abertos e nenhum torturador ou assassino foi julgado ou preso. Toda corrupção da ditadura, promovida pelos militares e decorrente das grandes obras faraônicas, foi para debaixo do tapete. Todos os crimes e assassinatos promovidos pelo regime seguiram impunes.

Tal pactuação também é expressa no artigo 142 da Constituição de 1988. Trata-se de outro exemplo de entulho autoritário ainda presente na chamada Nova República, que serve para os generais manterem a crença de que as Forças Armadas são um poder moderador diante de crises sociais e políticas.

Infelizmente, os governos do PT contribuíram para isso ao se recusarem a abrir os arquivos da ditadura. Perdeu-se a oportunidade histórica de varrer o entulho autoritário e fazer como alguns vizinhos nossos, como Argentina, que julgaram e prenderam generais. Mesmo a Comissão da Verdade, tão odiada por Villas Bôas, ficou longe de expor toda carnificina da ditadura para todo mundo ver e não serviu para punir ninguém.

Colonização do Estado

O resultado é que as Forças Armadas saíram intocadas em meio a tantos crimes e sangue. Por esse motivo, há tantas lendas e mentiras sobre aquele período, repetidas à exaustão por Bolsonaro e sua quadrilha. Bolsonaro defende a ditadura e faz ensaios golpistas para aplicar seu projeto entreguista, miliciano e neoliberal, impondo a morte e silenciando qualquer crítica. Por isso envia projetos ao Congresso para aumentar o armamento de policiais ou tenta, ainda, centralizar nas mãos do poder federal o comando das polícias militares dos estados. Tenta, assim, forjar uma força de “Tontons Macoutes”, com militares, policias e milicianos, para “acabar com o ativismo”, nas suas próprias palavras.

Embora neste momento não haja correlação de forças para um golpe, o governo Bolsonaro tem um projeto autoritário e seus militares seguem com sua “colonização do Estado”, promovendo milhares de militares nos cargos governamentais e imprimindo sua agenda ideológica reacionária e entreguista. Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caserna, incluindo aí o interino da Saúde, o general genocida Eduardo Pazuello. Há também 2.900 militares da ativa emprestados para funções civis na Esplanada.

Militares e a ‘boquinha”

O governo Bolsonaro também foi uma oportunidade para que muitos oficiais assumissem algumas “boquinhas” do Estado brasileiro. Os militares agora passaram a administrar funções de intermediar contratos do governo com empresas privadas. Não por acaso, tornaram-se comuns casos de superfaturamento, como os gastos de 80 mil cervejas e 714 toneladas de picanha (praticamente sem licitação) em 2020; o gasto de R$ 15 milhões em aquisição de leite condensado destinado a todo o Executivo; o uso do dinheiro para combater o desmatamento da Amazônia para reformar quartéis – o dobro das verbas de órgãos ambientais e de pesquisa para combate ao desmatamento – ou ainda o superfaturamento na produção de cloroquina, um medicamento totalmente ineficaz no combate à COVID-19.

No ano passado, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) entrou com representação para que seja investigado suposto superfaturamento na compra de insumos para a fabricação da cloroquina pelo Comando do Exército do Brasil. Segundo o MPTCU, a produção do medicamento foi 84 vezes maior nos últimos meses em relação ao mesmo período dos anos de 2017 a 2019.

Além disso, as Forças Armadas tiveram suas verbas aumentadas pelo governo. O Orçamento para 2021 prevê R$ 110,7 bilhões para as despesas primárias do Ministério da Defesa, alta de 4,7% em relação a 2020. Só para comparar, isso é quase os gastos com a Saúde para 2021 (R$ 135 bilhões), que teve uma pequena elevação de 1,7% em relação ao que o governo propôs no ano passado. Tudo isso se converte em fonte de corrupção da alta hierarquia militar presente no governo.

Já a situação dos soldados e dos oficiais de baixa patente é bem diferente. Passam por dificuldades para suprir suas necessidades básicas de forma digna. Um cabo na classe não engajado recebe R$ 1.078 e o cabo engajado e taifeiro-mor, R$ 2.627. Soldados e o baixo oficialato ainda não têm direito de sindicalização nem de fazer greve, conforme o artigo 142 da Constituição.

Ditadura nunca mais!

O Congresso Nacional e o STF, junto com Bolsonaro, têm imposto diversos ataques aos trabalhadores. Mas quando Bolsonaro e seus militares ameaçam e falam em fechar essas instituições, o que querem é impor uma ditadura para ampliar esses ataques. Uma ditadura serviria para encobrir os casos de corrupção em que estão metidos o presidente, seus filhos e os militares do governo. Impossibilitaria qualquer investigação sobre a política genocida do governo no seu trato criminoso com a pandemia e aumentaria mais a exploração e os ataques aos trabalhadores e à maioria do povo. Calaria qualquer tipo de oposição e liberdade de organização e expressão, para atender ainda mais os interesses dos banqueiros e dos grandes empresários.

É preciso repudiar as aspirações golpistas dos militares e de Bolsonaro, derrotar esse governo entreguista e genocida e botar para fora Bolsonaro e Mourão, varrer o entulho autoritário e dizer bem alto: ditadura nunca mais!