Capa do livro
Kit Gaion

No ensaio Lições de Outubro, recém publicado no Brasil pela Editora Sundermann, Trotsky demonstra que para tomar o poder da burguesia, é necessário um partido revolucionário e uma direção preparada, que possa guiá-la. E mostra também um fato pouco conhecido e pouco discutido: durante todo o transcurso da Revolução Russa, no Comitê Central do partido bolchevique havia uma ala oportunista poderosa, que em todos os momentos mais cruciais esteve em desacordo com Lênin. Essa ala defendia uma estratégia de encaminhar a revolução para uma democracia burguesa e, inclusive, mesmo depois da tomada do poder pelos bolcheviques, queria devolver o poder à burguesia e o governo aos reformistas.

Diz Trotsky, sobre o partido bolchevique: “(…) no momento da ação decisiva, formou-se neste partido tão bem preparado, ou melhor, nas suas esferas dirigentes, um grupo de antigos bolcheviques, revolucionários experientes, que se opôs violentamente ao golpe de força proletário e assumiu em todas as questões essenciais, durante o período mais crítico da revolução, de fevereiro de 1917 a fevereiro de 1918, uma posição social-democrata. Foi preciso a excepcional influência de Lênin no partido para preservar este e a revolução de tal estado de coisas. Eis o que nunca se deverá esquecer se quisermos que os partidos comunistas dos outros países aprendam alguma coisa na nossa escola”.

Trotsky dava importância extraordinária a que os dirigentes estudassem as revoluções, especialmente a de Outubro, se quisessem dirigir uma. Alertava que o partido é instrumento essencial da revolução e que tanto a experiência russa, quanto as da Finlândia, Hungria, Itália, Bulgária e Alemanha, erigiam quase como uma lei a inevitabilidade de uma crise no partido, quando este passava de um período de preparação ao da luta pelo poder. Dizia que o partido corria o risco de perder-se na inércia, de não acertar o passo com as tarefas históricas da sua própria classe e de se tornar instrumento direto de outra classe.

Lênin luta contra maioria da direção Bolchevique
A tarefa da tomada do poder só foi posta ao partido depois que Lênin chegou à Rússia, vindo do exílio em abril.

Até então, a direção do partido aferrava-se à fórmula da “ditadura democrática do operariado e do campesinato”, colocando-se como ala esquerda e de pressão sobre o governo provisório (governo burguês) que tinha surgido da revolução de fevereiro.

A revolução contra o czar significava apenas que, se o proletariado não prosseguisse com a revolução, ela apenas se aproximaria de uma república burguesa. Os bolcheviques, até a chegada de Lênin, não tinham a estratégia de derrubar tal governo, nem de tomar o poder. Queriam pressionar o governo, para que este fosse o mais à esquerda possível dentro dos limites da “revolução democrática” e exigiam dele que negociasse a paz com as demais potências em guerra. Se isso não fosse conseguido, defendiam que os operários e camponeses russos seguissem na guerra. Contrariavam a posição revolucionária perante a mesma, que não era de defesa do seu país, mas de derrotismo revolucionário.

Claro! Faziam isso tudo em nome da revolução e da democracia.
Lênin, ainda antes de chegar à Rússia, insurgia-se contra essa política, através de suas “Cartas de Longe”. Dizia “é inadmissível fingir desconhecer e dissimular para o povo que este governo não pretende a continuação da guerra imperialista (…) Pedir a este governo uma paz democrática é a mesma coisa que pregar a virtude a donos de bordel”.

Quando desembarcou na estação Finlândia, Lênin fez um discurso que caiu como uma bomba para muitos dirigentes do partido, ao falar sobre o caráter socialista da Revolução Russa. No dia seguinte ele insurgiu-se contra a posição do Pravda, jornal bolchevique: “É preciso não conceder nenhum apoio ao governo provisório, é preciso explicar a falsidade de todas as suas promessas (…)”.

Havia acontecido uma demonstração armada em abril, em que ecoou a palavra de ordem “Abaixo o governo provisório”. Tal fato serviu à ala direita para acusar Lênin de aventureiro, já que a maioria dos sovietes, naquela altura, tinha enormes ilusões no governo provisório.

A manifestação de abril, no entanto, serviu apenas para aferir o ânimo das massas e demonstrou a necessidade de um longo trabalho de preparação. Uma vez feita a experiência, Lênin retirou a palavra de ordem de ‘abaixo o governo provisório’, mas o fez tão somente porque as massas ainda não eram capazes de derrubá-lo, não porque a revolução deveria parar no trilho da democracia burguesa.

A conferência de abril do partido foi palco de uma intensa luta política, acirrada e polarizada, pela seguinte polêmica, segundo Trotsky: “lançamo-nos à conquista do poder para realizar a revolução socialista ou ajudamos (qualquer um e todo mundo) à concluir a revolução democrática?”. Lênin, depois de muita briga, ganhou a maioria para sua política e estratégia, que seria sintetizada nas “Teses de Abril”.

Os mencheviques, os maiores defensores de que a burguesia dirigisse o país, entram no governo. A ala direita dos bolcheviques assume então, as antigas posições dos mencheviques: querem fazer pressão de fora do governo, nos marcos do parlamentarismo burguês.

Lênin ganhou a Conferência de Abril, assegurando uma linha inteiramente diferente e revolucionária ao partido bolchevique. Mas não eliminou essa ala oportunista, que viria a manifestar-se em todos os momentos cruciais da revolução.

Nas jornadas de julho, se armou uma ação minoritária de massas prematura contra o governo. O partido bolchevique, sendo contrário à mesma, decide acompanhar as massas avançadas, para poder evitar uma insurreição precipitada, que levaria a uma derrota maior. A ala direita cresce novamente, voltando a carga contra o “aventureirismo”. Na verdade, estava questionando de fato a estratégia da tomada do poder.

Depois das jornadas de julho, o partido bolchevique teve suas sedes invadidas, e uma parte dos dirigentes presos. Mas corretamente atuou no sentido de acompanhar as massas e evitar um desastre maior.

A luta contra Kornilov: as diferenças não desapareceram
A unidade de ação com o governo de Kerensky contra o golpe de Kornilov, atenuou as diferenças com a ala direita, mas não as fez desaparecerem.

A certa altura, a ala direita manifestou a tendência ao apoio político à Kerensky, a defesa da “pátria”.

Lênin reagiu com firmeza: “Mesmo agora, não devemos sustentar o governo de Kerensky. Seria faltar aos princípios. Mas, então, dir-se-á, não se deve combater Kornilov? Certamente sim. Mas, entre combater Kornilov e sustentar Kerensky há uma diferença, um limite, que certos bolcheviques transpõem, caindo no “conciliacionismo”, deixando-se arrastar pela torrente dos acontecimentos”.

Conferência Democrática e pré-parlamento
De 14 a 22 de setembro, é convocada uma Conferência Democrática, que deu origem a um pré-parlamento. Os mencheviques e socialistas revolucionários procuravam ligar-se aos bolcheviques, através da legalidade parlamentar burguesa. A ala direita dos bolcheviques simpatizava com essa tática.

Os sovietes deveriam, na visão deles, transferir progressivamente as suas funções para as instituições “qualificadas” (municipalidades, distritos, sindicatos e, finalmente, para a Assembléia Constituinte) e, assim, irem abandonando a cena política.

O pensamento político das massas deveria encaminhar-se para a Assembléia Constituinte, coroamento da revolução democrática e burguesa.

A esta altura, os bolcheviques já eram maioria nos sovietes e sua influência no exército crescia todos os dias. Já se tratava de decidir por qual via seguir, se tomavam o caminho da insurreição e da tomada do poder, de “todo poder aos sovietes” para erigir a ditadura do proletariado, ou se do parlamentarismo burguês e, portanto, da ditadura da burguesia.

Lênin defendia o abandono ostensivo da Conferência Democrática e do boicote ao pré-parlamento. Mas os bolcheviques tinham 100 membros na conferência democrática, sendo que 50% concordava com as posições da ala direita, contra a posição de Lênin.

A concepção essencial da ala direita era de que a revolução devia transitar dos sovietes ao parlamentarismo burguês, o pré-parlamento era o elo desse processo e, uma vez que os comunistas não se negam a ocupar cadeiras no parlamento, também não deveriam boicotar o pré-parlamento. Para eles, era preciso completar a revolução democrática e “preparar” a revolução socialista, depois de um longo aprendizado de muitos anos com o parlamentarismo burguês, no qual eles seriam a oposição.

Lênin, mais uma vez, foi decisivo e chegou a propor um congresso extraordinário do partido, cuja plataforma deveria ser o boicote ao pré-parlamento, martelando num único pensamento: “não é ao pré-parlamento, visando ser rabo revolucionário dos conciliadores, que devemos ir, mas às ruas, visando lutar pelo poder!”. Não foi necessário um congresso, Lênin conseguiu o necessário deslocamento de forças à esquerda no comitê central e na fração do pré-parlamento, abandonado em 10 de outubro pelos bolcheviques.

Ala direita contra a insurreição
Em 16 de outubro, foi criado o comitê militar revolucionário. Os bolcheviques, que já eram maioria nos sovietes das principais cidades, sabiam que marchavam contra o tempo. Era preciso organizar a insurreição que consideravam uma arte, como Marx. Sabiam que o proletariado não tem a menor chance de sucesso em insurreições espontâneas, sem direção, sem preparo, sem organização.

Depois de votada pelo partido a organização da insurreição, a ala direita vem a público, através da carta “Sobre o momento presente”, de Kamenev e Zinoviev, erguendo-se contra a decisão do Comitê Central a respeito da insurreição armada.

Diz a carta: “Estamos profundamente convencidos de que proclamar neste momento a insurreição armada é por em jogo não só a sorte de nosso partido, mas também a Revolução Russa e a internacional (…)”… e propõem fazer o seguinte: “Por intermédio do exército e dos operários, apertamos um revólver contra as têmporas da burguesia, que sob essa ameaça, não poderá impedir a convocação da Assembléia Constituinte” .

Ala direita depois da insurreição
Em 25 de outubro, foi tomado o poder e constituído o governo soviético em Petrogrado. Em 4 de novembro, vários dirigentes apresentaram sua demissão do Comitê Central e do Conselho de Comissários do Povo, exigindo a criação de um governo de conciliação entre os partidos dos sovietes.

Exigiam a devolução do poder aos mencheviques e socialistas revolucionários e a convocação de uma Constituinte, para “evitar um derramamento de sangue”.

Os bolcheviques, como todos sabem, depois da tomada do poder, convocaram uma Constituinte para que as massas fizessem a experiência com ela: exigiram que ela ratificasse todo poder aos sovietes, como ela não o fez, foi dissolvida com apoio dos sovietes.

Assim, contra a sua própria ala direita, o partido bolchevique conquistou o poder e o conservou.

Lições de outubro Leon Trotsky

  • Editora Sundermann
    163 páginas
    R$10,00

    Este livro é um importante complemento à edição da História da Revolução Russa, em homenagem aos 90 anos da revolução.

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