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Waldo Mermelstein

O problema das nacionalidades apontado por Lenin é muito atual. A guerra nos Bálcãs, nos anos 1990, a situação da Chetchênia e da Ucrânia e as iniciativas imperialistas que visam colonizar a América Latina confirmam que as lutas dos povos oprimidos eEsse é um dos aspectos mais importantes da contribuição de Lenin ao marxismo. Marx e Engels já haviam delineado uma clara posição a favor dos dois principais movimentos de luta contra a opressão nacional na Europa do século XIX – na Polônia, contra o império czarista e, na Irlanda, contra a dominação inglesa.

Ao final do século XIX, a Segunda Internacional começou a elaborar uma política mais precisa para a questão nacional devido a várias mudanças ditadas pela passagem do capitalismo para a fase monopolista e imperialista, conservando, criando e recriando os problemas nacionais e os generalizando a várias partes da Europa e depois ao mundo. Por um lado, ao estimular as migrações, reconfigurando os mapas de várias regiões da Europa, o que, no quadro das crises econômicas crescentes, levava à agudização das tensões nacionais, em especial na Europa Central, nos Balcãs e na Rússia, por outro, fechavam-se as portas para a dissolução pacífica de velhas tensões, como a presença de milhões de judeus pobres oprimidos na Rússia czarista, originando os modernos pogroms.

As potências européias partiram então para a disputa pelos mercados coloniais, fato que generalizou os “incidentes” e guerras coloniais, culminando, finalmente, na grande carnificina da Primeira Guerra.

A discussão original na Segunda Internacional

Primeiro, a Segunda Internacional discutiu sobre a forma de organização dos trabalhadores, especialmente nos dois impérios multinacionais, o Áustro-Húngaro e o Russo. Lenin foi sempre inflexível contra qualquer organização partidária separada por nacionalidades, entendendo que a luta contra a autocracia e o capital teria de ser unitária. Foi esse o motivo principal de sua diferença com o Bund (Partido Socialista dos Trabalhadores Judeus que tinha grande força na zona habitada pelos judeus na Rússia, tendo sido a primeira organização socialista de massas do império). A negativa em conceder ao Bund o direito de representação separada e exclusiva dos trabalhadores judeus levou à divisão no Congresso da Social-Democracia russa de 1903.

Polêmica com Rosa Luxemburgo

No marco da aceitação das posições clássicas da social-democracia pela fraternidade entre os povos e contra a opressão nacional, Lenin polemizou com Rosa Luxemburgo, que dizia que as lutas nacionais teriam perdido seu caráter progressista após a unificação italiana e alemã, ignorando o elemento mais importante que era como os trabalhadores e os povos explorados viviam o problema nacional. O início da discussão teve lugar na Polônia, onde Lenin era favorável ao direito de autodeterminação nacional como forma de fortalecer a luta contra o czarismo e de dialogar com as massas oprimidas polonesas, tentando assim evitar que as massas fossem levadas à armadilha do nacionalismo burguês e pequeno-burguês.

Mais tarde, a polêmica girou sobre o caráter das guerras, na qual Rosa extrapolou sua oposição correta – compartilhada com Lenin – contra a guerra imperialista de 1914, dizendo no seu livro A Crise da Social-Democracia que “as guerras nacionais não são mais possíveis na época deste imperialismo desenfreado, os interesses nacionais somente servem como um instrumento de engano, para colocar as massas ao serviço de seu inimigo mortal, o imperialismo”. Lenin se opôs a isso dizendo que se tratava de uma generalização abusiva, porque “as guerras nacionais travadas pelas colônias e semi-colônias na época imperialista são não somente prováveis mas inevitáveis” e que “a continuação da política de libertação nacional inevitavelmente tomará a forma de guerras nacionais contra o imperialismo. Tais guerras poderiam levar a uma guerra imperialista… mas poderiam não fazê-lo” (Sobre o Folheto Junius – Obras Completas XXIV, 247, em espanhol).

Defesa da autodeterminação nacional

Lenin criticava duramente também a posição dos chamados “austro-marxistas” que não propunham o direito à autodeterminação e somente a autonomia cultural das nacionalidades oprimidas pelo Império Austro-Húngaro, o que seria segundo Lenin uma capitulação frente ao poder central. Para o revolucionário russo, apenas o direito à separação poderia dar uma solução revolucionária para a opressão nacional, já que somente a disposição de permitir a separação seria capaz de mostrar que os revolucionários não eram os velhos opressores com uma nova fachada de esquerda e, dessa forma, impedir a fragmentação do antigo Império em pequenos Estados inviáveis.

A Revolução de 1917

A Revolução Russa colocou essa linha à prova. O balanço dos primeiros anos foi amplamente positivo em seu sentido geral: a) o Partido Bolchevique soube unir no seu interior os trabalhadores e explorados das várias nacionalidades para derrotar o inimigo comum e dirigir a tomada do poder, permanecendo unido frente às tremendas pressões centrífugas a que estava submetido o poder soviético durante a Guerra Civil; b) a oposição radical à secular opressão nacional que havia transformado a Rússia no “cárcere dos povos” foi uma das questões centrais para a vitória da Revolução. Como exemplo do respeito ao direito de autodeterminação das nacionalidades, inclusive sua separação sob a direção de governos burgueses, sobressaem os casos da Finlândia, da Polônia e dos países bálticos; c) foi implementada uma política de respeito aos direitos nacionais dos povos que permaneceram no Estado revolucionário, incluindo a restituição de tesouros religiosos aos povos muçulmanos, o estímulo ao desenvolvimento da língua e da cultura das nações não-russas, decisiva para influir no resultado da Guerra Civil que o novo regime enfrentou. A adesão das massas operárias e camponesas, incluindo as das nações periféricas à Rússia, foi decisiva para a derrota da invasão, pois os comandantes dos exércitos brancos não escondiam sua intenção de restaurar o velho e opressivo Império Grão-Russo.

O isolamento da revolução e seus problemas

Evidentemente, essa política teve erros (o mito da infalibilidade dos dirigentes é fruto da era stalinista), provocados pelas terríveis condições e pelo isolamento a que a Revolução foi submetida e devido ao seu caráter pioneiro. Mas o balanço deve examinar qual foi o sentido geral da política e qual foi a atitude dos dirigentes para corrigir os erros.

Um erro de avaliação, que é quase consensual, foi a invasão da Polônia em 1920. Contra a opinião de Trotsky, o Exército Vermelho, após rechaçar a agressão do governo Pilsudsky, tentou levar a revolução à Polônia e foi derrotado, pois subestimou os sentimentos nacionais dos trabalhadores e camponeses poloneses que viram nos russos os velhos opressores e não os libertadores sociais.

Os problemas de uma revolução em um país atrasado, obrigada a enfrentar o bloqueio econômico total e uma guerra civil que contou com a invasão de múltiplos exércitos imperialistas, causando 7 milhões de mortos, e o fracasso da primeira onda da revolução européia, traída pela social-democracia, refletiram-se no início do processo de burocratização do Estado e do partido. No terreno nacional, a tradução disso foi a permanência de um Estado que era, segundo Lenin, essencialmente russo.
Lenin começou a se dar conta de que, na verdade, a tradicional opressão russa sobre os pequenos povos continuava sob outras formas, apesar das inegáveis conquistas. Seus últimos artigos dedicaram-se em boa parte a tratar dos problemas nacionais e deixou alguns ensinamentos importantes. Por exemplo, ao se discutir se a Ucrânia soviética seria parte da Rússia, que dizer, se comporia uma federação ou seria um país independente e solidário, Lenin disse que a delimitação exata das fronteiras era algo secundário frente à unidade contra o imperialismo.

Lenin lutou contra o que denominou “chauvinismo grão-russo travestido de socialismo”, expresso no trato brutal aos comunistas da Geórgia que não aceitavam serem incluídos na futura União Soviética como parte de uma Federação das Repúblicas do Cáucaso e queriam unir-se à URSS diretamente em igualdade de condições com a República Socialista Russa.

A III Internacional

As teses da Internacional Comunista em seus primeiros quatro congressos, antes do processo de stalinização, baseiam-se nas elaborações de Lenin para as nacionalidades oprimidas e os movimentos nacionalistas nas colônias e semi-colônias. Esses ensinamentos são mais atuais que nunca neste início de século XXI. Em primeiro lugar, porque as lutas dos povos oprimidos e as guerras de libertação nacional foram e ainda são um dos principais fatores revolucionários em nosso mundo, assumindo novas formas e contornos cada vez mais dramáticos, como foram as sangrentas guerras dos Bálcãs e do Cáucaso, onde a opressão nacional joga um papel importantíssimo. A nova investida colonizadora do imperialismo, em especial americano, busca restringir a já limitada independência dos países fora dos centros imperialistas, através de invasões (Afeganistão e Iraque) e da imposição de novos tratados e regras comerciais que diminuem drasticamente a soberania das nações como o Brasil frente ao “mercado” dominado pelos monopólios imperialistas (Alca e demais acordos do tipo).

União dos povos contra os opressores

Lenin insistia que os marxistas lutam pela união dos povos, pela fraternidade dos trabalhadores contra os opressores e que este é o eixo central que orienta sua política. Toda luta que ajude os trabalhadores nesse sentido é positiva e pode ser apoiada. É nesse marco que recomendava que nos países imperialistas ou que oprimem outras nações, o dever fundamental dos revolucionários era o de lutar contra a opressão específica realizada por seu próprio país. Isso significou, por exemplo, que os revolucionários franceses seriam medidos por sua luta a favor da independência da Indochina ou da Argélia (e no Brasil de hoje, na oposição irredutível ao envio de tropas ao Haiti). Com relação às nacionalidades oprimidas no interior de um império ou nação mais poderosa, em uma de suas frases simples, defendia “o direito à separação”, o que não se confundia com a adoção da bandeira da independência, pois era contrário à criação de pequenos países inviáveis, um retrocesso do ponto de vista do crescimento das forças produtivas. No entanto, frente à existência de um forte movimento independentista os revolucionários poderiam lhe dar apoio crítico, defendendo a Federação de Repúblicas Socialistas. A defesa do direito à separação seria uma posição para que não pairassem dúvidas da honestidade de propósitos, particularmente em se tratando de revolucionários de países opressores.

Em todos os casos defendia a independência dos trabalhadores e dos revolucionários frente aos nacionalistas burgueses e pequeno-burgueses, pois tinham eles muitas limitações inclusive na conseqüência da luta nacional, sem falar que sua estreiteza os levava a não encaminhar a luta contra o imperialismo e a opressão como uma luta comum dos trabalhadores e dos povos oprimidos (a negativa dos sandinistas em estender sua Revolução aos demais países da América Central é um exemplo trágico dessa miopia nacionalista).

No caso de ocorrer a independência, os revolucionários deveriam lutar pelo “direito à unificação”, ou seja, pela federação entre os países antes unidos, mas agora em bases socialistas e democráticas. No caso das colônias, a III Internacional era favorável à independência.

Ação independente dos trabalhadores

Esta é a herança de Lenin para os marxistas elaborarem sua política para as questões nacionais, tão dramaticamente vigentes no mundo de hoje como fruto da decadência do sistema capitalista e dos anos de contra-revolução stalinista. No entanto, toda tentação de aplicação mecânica à realidade poderá redundar em equívocos, pois as questões nacionais têm sempre aspectos particulares, que se modificam ao longo do tempo.

Por exemplo, toda luta nacional tem de ser analisada no contexto internacional em que se desenvolve, se realmente provém de um legítimo movimento nacional ou é um joguete nas mãos de potências maiores (por exemplo, os mujahedin do Afeganistão armados pela CIA que lutavam contra a invasão soviética), ou é parte de um movimento reacionário (os movimentos de colonos contra antigas metrópoles ou o sionismo, movimento reacionário e colonizador supostamente representante de uma nação). O central é não esquecer que movimentos nacionalistas e os interesses da classe trabalhadora podem ter acordos táticos fundamentais, mas que as diferenças fatalmente surgirão no desenrolar das lutas, para o qual a independência política dos trabalhadores é indispensável.

Questão muito atual com a ofensiva imperialista contra o governo Chávez, na Venezuela.

GLOSSÁRIO

POGROMS
Perseguições violentas e assassinatos em massa de judeus na Rússia.

AUSTRO-MARXISTAS
Dirigentes do partido social-democrata da Áustria, como Otto Bauer, Max Adler e Karl Renner.

GOVERNO PILSUDSKY
Governo da Polônia dirigido pelo ditador marechal Jozsef Pilsudsky.

MUJAHEDIN
Guerrilha do Afeganistão que lutava contra a ocupação soviética. Os Mujahedin receberam financiamento da CIA.