Lenin discursa no Palácio Tavrichesky, em abril de 1917
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O giro dos bolcheviques e a oposição irreconciliável ao governo provisórioHá 90 anos, em fevereiro de 1917, uma insurreição operária e popular derrubou o poder totalitário do czar. Essa revolução não teve uma direção política partidária, ainda que os operários de vanguarda, em especial os educados pelos bolcheviques [1], estivessem à frente dos principais enfrentamentos. Mas, como mais tarde diria Lênin, a primeira fase da revolução deu o poder à burguesia por “carecer o proletariado do nível necessário de consciência e organização” [2].

“A burguesia tomou o poder de costas para o povo. Não tinha nenhum ponto de apoio nas classes trabalhadoras, mas com o poder conseguiu algo assim como um ponto de apoio de segunda mão: os mencheviques e socialistas revolucionários, elevados às alturas pela massa, deram um voto de confiança à burguesia” [3]. Assim, a Duma (parlamento russo), com o apoio dos partidos reformistas, elege um governo provisório encabeçado por um príncipe, cujo homem forte é o cadete [4] Miliukov. Deste governo, participa o socialista revolucionário Alexandr Kerensky [5].

Ainda que os trabalhadores não consigam tomar o poder, a revolução dá origem a uma situação inédita: a do duplo poder. Desde fevereiro até outubro de 1917, existiu um duplo poder entre o governo provisório e os sovietes de delegados, operários e camponeses, que se estendiam por todo o país.

O governo provisório, integrado majoritariamente por representantes da burguesia liberal, foi visto, a princípio, com desconfiança pelos lutadores operários e camponeses. Mas a participação de Kerensky (visto com simpatia pelos soldados revolucionários) e a campanha a favor desenvolvida pelos partidos reformistas foram criando expectativas no movimento de massas.

Os bolcheviques e os primeiros meses da revolução
Essa expectativa chegou, inclusive, ao partido bolchevique. Segundo Trotsky, “o primeiro mês da revolução foi para o bolchevismo um período de desconcerto e vacilações. No manifesto do Comitê Central dos bolcheviques, escrito imediatamente depois de triunfar o movimento de fevereiro, se dizia: ‘os operários das fábricas, assim como os soldados sublevados, devem eleger imediatamente seus representantes no governo revolucionário provisório’ (…) Não falavam como os representantes de um partido proletário que se dispõe a enfrentar uma luta imponente pela conquista do poder, mas como a ala esquerda da democracia”.

Quatro dias depois, dos 400 delegados presentes na sessão do Soviete de Petrogrado, apenas 19 votaram contra a entrega do poder à burguesia, apesar de que a delegação bolchevique já era de 40. Em 4 de março, o birô do Comitê Central vota uma resolução sobre o caráter contra-revolucionário do Governo Provisório.

Mas o Comitê de Petrogrado resolveu que “não se opõe ao poder do Governo Provisório, na medida em que…”. Quer dizer, como disse Trotsky, a mesma política oportunista de mencheviques [6] e social-revolucionários.

Mas essa política oportunista se chocava com a base operária do partido. O comitê bolchevique do bairro operário de Viborg protestava contra as posições públicas do partido e realizava comícios com milhares de operários e soldados onde se votava a necessidade de que o soviete tomasse o poder em suas mãos.

O partido bolchevique, desfalcado de seus principias dirigentes que se encontravam no exílio e sofrendo as pressões das massas que confiavam no governo, ia se convertendo, cada vez mais, na ala esquerda da “democracia (burguesa) revolucionária”.

Cartas de longe
Sem poder sair da Suíça e recebendo apenas informes fragmentados do que se passava na Rússia, Lênin envia, em 6 de março, um telegrama que diz: “nossa tática: desconfiança absoluta, negar todo apoio ao novo governo; temos receio especialmente de Kerensky; não há maior garantia que armar o proletariado; eleições imediatas para a Duma de Petrogrado; manter-se bem separados dos demais partidos”. E começa a enviar ao Pravda (jornal bolchevique) suas Cartas de longe. A pouca informação que recebe da imprensa estrangeira lhe permite chegar à conclusão de que Kerensky e os dirigentes mencheviques estão enganando os operários, fazendo-os acreditar que a guerra era defensiva [7], ou seja, seria preciso continuar a guerra para defender a revolução.

Em 17 de março, numa de suas cartas, Lênin disse: “nosso partido se cobriria para sempre de desonra, se suicidaria politicamente se se deixasse levar por esse engano… Preferiria, inclusive, romper imediatamente com quem fosse, dentro do nosso partido, a fazer concessões de qualquer tipo ao ‘social-patriotismo’ [8]”.

Lênin chega à Rússia
Em 3 de abril, finalmente Lênin chega. É recebido por uma delegação do Soviete de Petrogrado e uma grande quantidade de operários e soldados. Cheidse, dirigente menchevique do soviete, faz um discurso de boas-vindas em que, referindo-se à necessidade de continuar a guerra, diz a ele que o dever da “democracia revolucionária” é enfrentar os inimigos de dentro e de fora.

Diante disso, Lênin lhe dá as costas e, dirigindo-se aos operários e soldados presentes, diz: “queridos camaradas, soldados, marinheiros, operários: me sinto feliz ao saudar em vocês a revolução russa triunfante, ao saudar-vos como a vanguarda do exército proletário internacional. (…) Não está longe o dia em que, respondendo ao chamado de nosso camarada Karl Liebknecht [9], os povos voltarão as armas contra seus exploradores capitalistas. (…) A revolução russa, feita por vocês, iniciou uma nova era. Viva a revolução socialista mundial” [10].

No dia seguinte, Lênin expôs ao partido suas posições através de um documento escrito que a partir deste momento ficou conhecido como Teses de Abril. Como disse Trotsky, “as teses expressavam idéias simples em palavras não menos simples, acessíveis a todo mundo. A república, fruto da insurreição de fevereiro, não é nossa república, nem a guerra que se mantém é nossa guerra. A missão dos bolcheviques consiste em derrubar o governo imperialista. Este se sustenta graças ao apoio dos social-revolucionários e mencheviques, que por sua vez se apóiam na confiança que as massas populares depositam neles.

Nós representamos uma minoria. Nessas condições não se pode nem sequer falar do emprego da violência de nossa parte. É preciso ensinar as massas a desconfiar dos conciliadores e defensistas [11]. É preciso aclarar a situação pacientemente. O êxito desta política imposta pela situação é certo e nos conduzirá à ditadura do proletariado, e, com ela, à superação do regime burguês. Romperemos completamente com o capital, publicaremos seus tratados secretos e chamaremos os operários de todo o mundo a romper com a burguesia e pôr fim à guerra. Iniciaremos a revolução internacional. Só o triunfo desta consolidará o nosso e assegurará o caminho para o regime socialista” [12].

As teses de Lênin foram publicadas no Pravda apenas com sua assinatura. Nenhum dos dirigentes bolcheviques quis assinar com ele. Trotsky, que, por sua vez, vinha defendendo as mesmas posições, estava preso nos EUA. Os dirigentes bolcheviques estavam escandalizados, não entendiam o que acontecia com Lênin. Como podia ter posições tão sectárias frente ao governo que havia surgido da revolução e que as massas olhavam com simpatia? Como falava em derrubar o governo, se reconhecia que os bolcheviques eram uma minoria?

A essas posições políticas se somavam as teóricas: como Lênin defendia a ditadura do proletariado? Os bolcheviques sempre haviam defendido “a ditadura democrática de operários e camponeses”, não a ditadura do proletariado. Quem defendia a ditadura do proletariado era Trotsky. Lênin havia se transformado em trotskista?

Essas dúvidas teóricas tinham fundamento, já que era certo que Lênin, até esse momento, nunca havia falado de ditadura do proletariado. Mas, como ele mesmo diria mais adiante, “ninguém pôde fazer uma grande revolução sabendo de antemão como ela haveria de se desenvolver até o fim. De onde iria tirar essas previsões? Dos livros, não, porque esses livros não existem. Só a experiência das massas poderia inspirar nossas decisões”.

E essa experiência mostrou que a revolução russa não deu origem a uma ditadura democrática de operários e camponeses, mas sim a um regime de duplo poder entre classes antagônicas: a burguesia e o proletariado. Diante desta disjuntiva, Lênin não ficou preso a seus velhos esquemas e não teve a menor dúvida: era preciso enfrentar o poder burguês para impor o poder operário.

A explicação paciente
Lênin era totalmente consciente do caráter minoritário dos bolcheviques. Por isso estava totalmente contra ações aventureiras, elitistas, para brigar pelo poder. Mas, ao mesmo tempo, sustentava que para deixar de ser minoria, para ganhar o movimento de massas, não se pode capitular a suas ilusões, é preciso dizer a verdade, ainda que doa. Era preciso explicar pacientemente que o governo provisório não ia fazer um acordo pela paz e que era falso ter de ganhar a guerra junto aos aliados imperialistas para defender a revolução. Era preciso explicar pacientemente que, para defender a revolução, haveria que derrubar o governo, impor o poder dos sovietes e impulsionar a revolução socialista mundial.

Apoiando-se na base operária, Lênin saiu a dar a batalha política em seu partido, e conseguiu corrigir a orientação equivocada. A nova política começou a ser aplicada e essa explicação paciente começou a dar frutos. Os bolcheviques começaram a ganhar influência, o que lhes permitiu cumprir um papel dirigente nas chamadas “jornadas de abril” (maio, segundo o calendário ocidental), onde se deu o primeiro enfrentamento operário contra o Governo Provisório.

NOTAS:
1.
Nome pelo qual era conhecida a fração de esquerda do Partido Socialista russo, dirigida por Lênin. Posteriormente adotou o nome de Partido Comunista.
2. Teses de Abril, escritas por Lênin em abril de 1917, para tentar orientar os bolcheviques frente à revolução.
3. A revolução russa, Leon Trotsky.
4. Cadete: partido da burguesia liberal.
5. Socialistas revolucionários ou “esseristas”: partido dirigido por intelectuais urbanos de peso majoritário entre os camponeses.
6. Nome pelo qual era conhecida a fração de direita do Partido Socialista russo.
7. Refere-se à participação da Rússia como país imperialista na Primeira Guerra Mundial. Uma das principais reivindicações populares, especialmente dos soldados, era que o país saísse da guerra.
8. Nome que se dava às organizações socialistas que apoiaram seus governos e burguesias imperialistas na participação na guerra.
9. Dirigente revolucionário alemão. Foi o único deputado socialista que votou contra os créditos de guerra para o governo imperial, em 1914.
10. Citado por Trotsky em A Revolução Russa.
11. Aqueles que sustentavam haver que continuar a guerra para “defender” a revolução.
12. A Revolução Russa, Leon Trotsky.

  • Artigo publicado originalmente no jornal Lucha Socialista, da Frente Obrera Socialista, partido da LIT-QI na Argentina.

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  • Baixe “Teses de Abril”, de Lenin