João Ricardo Soares, da Direção Nacional do PSTU

Não há como acabar com o Estado burguês sem fazer a Revolução`SêloA derrubada da nobreza feudal, em fevereiro de 1917, na Rússia, aprofundou a situação revolucionária naquele país e colocou a luta pelo poder na ordem do dia. Essa situação exigiu uma resposta política imediata a um dos temas mais importantes aos marxistas: a questão do Estado.

Os tempos de paz ficavam para trás, quando a atividade dos partidos da II Internacional se limitava à rotina da luta parlamentar e sindical. Iniciava-se uma época de guerras e revoluções e, por conseqüência, tornava-se presente a questão fundamental de toda Revolução que é a questão do poder do Estado. Sem esclarecer essa questão, nem sequer se pode falar em participar de modo consciente na Revolução, para não falar em dirigi-la.

Consciente de que a revolução de fevereiro preparava o caminho para a tomada do poder, ainda em Zurique, Lenin fez um amplo estudo sobre o marxismo e o Estado, que serviu de base para sua publicação mais conhecida: O Estado e a Revolução – A doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na Revolução.
Como expressa o próprio título, a preocupação central de Lenin era desenvolver o programa da Revolução proletária frente ao Estado burguês, e como o proletariado revolucionário conquistaria o poder.

A essência do Estado

A essência e o caráter do Estado burguês se revelam no momento em que este exerce toda sua violência contra o proletariado revolucionário. Isso acontece quando a propriedade privada e as relações capitalistas de produção estão ameaçadas pelo avanço da Revolução proletária e quando as massas se libertam de toda falsa consciência e das ideologias que as mantêm presas à escravidão do trabalho assalariado.

Por isso, o primeiro capítulo de O Estado e a Revolução explica que o Estado é o produto irreconciliável das contradições de classe. Sua principal instituição é o destacamento de homens armados e o aparato repressivo concentrados no exército burguês e na polícia.

Mas, se o Estado reflete a divisão da sociedade em classes, ele perderá a sua função como organismo de repressão quando as classes deixarem de existir. Para Friedrich Engels, as condições para a extinção do Estado se dão quando “(…) a intervenção de um poder de Estado nas relações sociais torna-se supérflua (…) Em lugar de governo sobre as pessoas surge a administração de coisas e a direção dos processos de produção. O Estado não é abolido, extingue-se”.

Lenin ressaltou que Karl Kautsky converteu a afirmação de Engels numa “(…) idéia vaga de uma mudança lenta, uniforme e gradual, da ausência de saltos e tempestades, da ausência de Revolução”. Assim, a afirmação de que a extinção do Estado tinha um passo prévio, a tomada do poder através da Revolução, separou os marxistas entre revolucionários e reformistas.

Mas, se a Revolução foi o divisor de águas inicial, faltava definir qual programa aplicar frente ao Estado burguês e como o proletariado organizaria seu próprio Estado.

Não há Revolução sem a destruição do Estado burguês

Lenin buscou responder a questões teóricas, entre elas, “(…) como surgiu historicamente o Estado burguês, (…) quais as suas transformações, qual a sua evolução no decurso das revoluções burguesas e em face das ações autônomas das classes oprimidas. Quais as tarefas do proletariado em relação a esta máquina de Estado”, baseando-se nas avaliações de Karl Marx e Friedrich Engels das Revoluções burguesas de 1848 e 1851, na França e, posteriormente, na primeira Revolução proletária: a Comuna de Paris.

A primeira conclusão resgatou o fato de que o Estado burguês era resultado do aperfeiçoamento da máquina estatal herdada pela burguesia das monarquias absolutistas feudais européias. Essa máquina tinha duas características centrais: uma burocracia estatal e um exército permanente.

Marx pontuou que “(…) as revoluções burguesas aperfeiçoaram esta máquina em vez de destruí-la”. Lenin observou que “(…) este notável raciocínio do marxismo dá um imenso passo em frente, comparado com o Manifesto Comunista”. Isso porque este somente assinalava que o proletariado “(…) usará o seu domínio político para ir arrancando todo o capital das mãos da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado”.

Essa formulação, considerada geral e abstrata por Lenin, avançou e se concretizou com a conclusão de que, ao chegar ao poder, o proletariado necessitaria destruir a máquina do Estado burguês.

Marx e Engels chegaram a essa conclusão a partir do balanço da Comuna de Paris, assinalando que “(…) a classe operária não pode limitar-se a tomar conta da máquina do Estado que encontra montada (…)”, o que favoreceria a reação burguesa. A máquina burocrático-militar que serve à burguesia deve ser demolida e, em seu lugar, devem ser erguidas outras instituições de outro caráter. Para Lenin, “(…) esta conclusão é o principal, o fundamental da doutrina marxista sobre o Estado”.

Mas “(…) pelo que substituir a máquina do Estado quebrada?” Até a Comuna de Paris, o marxismo não “(…) põe concretamente a questão de saber pelo que substituir esta máquina do Estado que deve ser suprimida”.

Lenin assinalou que “As formas dos Estados burgueses são extraordinariamente variadas, mas sua essência é apenas uma: em última análise, todos esses Estados são, de uma maneira ou de outra, mas necessariamente, uma ditadura da burguesia. A transição do capitalismo para o comunismo não pode naturalmente deixar de dar uma enorme abundância e variedade de formas políticas, mas sua essência será uma só: a ditadura do proletariado”.

QUANDO O ESTADO DE DIREITO É A PROPRIEDADE PRIVADA

O Brasil vive hoje em um regime democrático-burguês, mas, por exemplo, quando os trabalhadores ocuparam a Flekepet, uma fábrica na região da Grande São Paulo, para preservar seus empregos, se depararam com uma medida judicial que “devolvia” a fábrica ao patrão; quando os sem-terra e os sem-teto ocupam terras para plantar ou para ter uma moradia, sempre estão às voltas com medidas de “reintegrações de posse”. Caso essas medidas não se cumpram, as forças de repressão entram em ação.

Apesar da Constituição brasileira garantir o direito ao emprego, à terra e à moradia, esses “direitos” não podem ser exercidos pela maioria do povo, acima do direito da propriedade privada. Este direito é exercido por uma minoria, mesmo que signifique que a maioria fique desempregada e more na rua.

Para garantir essa situação, a Justiça, as forças de repressão, junto com as prisões, o Parlamento e o governo, que administra tudo isso, formam o Estado. Independentemente da forma como o Estado burguês aparece, se é um regime democrático-burguês ou um regime militar, ele é uma ditadura de uma classe, da burguesia sobre o proletariado. Seu objetivo último é a defesa da propriedade privada e essa defesa não é feita por meios pacíficos, ao contrário, é feita de forma muito violenta.

O emprego da violência sobre o proletariado é proporcional ao acirramento da luta entre as classes. Nos períodos de “paz”, Lenin indicava que “(…) sempre soubemos e indicamos repetidamente que a burguesia não se mantém apenas pela violência, mas também pela falta de consciência, pelo embrutecimento, pela desorganização das massas”.

Dessa forma, todo Estado tem uma essência à qual não escapa o Estado burguês. Ele é sempre uma ditadura de uma classe sobre outra.

ORIGEM E MISTIFICAÇÃO DO ESTADO BURGUÊS

Uma das principais contribuições do marxismo à teoria do Estado foi defini-lo como um fenômeno histórico, resultado da divisão social do trabalho e, posteriormente, da divisão da sociedade em classes.

As sociedades tribais que habitavam o Brasil antes da conquista portuguesa não estavam divididas entre exploradores e explorados. Não havia a necessidade de um Estado, porque não havia privilégios a serem defendidos através da coerção.

O Estado surgiu entre 6 e 8 mil anos atrás, na região do atual Iraque. A irrigação dos campos permitiu a existência de grandes safras, ao mesmo tempo em que desenvolveu uma burocracia que administrava a terra e o excedente. Burocracias desse tipo construíram grandes Estados como no Egito e nos Andes.

Mas, para justificar o fato de que uns governavam e outros eram governados, foi criada uma ideologia, uma falsa consciência de que o poder do Faraó e do Inca vinha das mãos de um Deus. O Estado era algo imposto pelo poder divino, acima do homem comum.

O Estado burguês se desvencilhou da “aura” divina, mas foi coberto por uma outra “aura”, igualmente falsa: a imagem mistificadora do Estado como “árbitro entre as classes” e da defesa do “interesse nacional”, da “neutralidade”.

Marx teorizou sobre como a burguesia pôde construir um Estado baseado na falsa idéia da liberdade. Nas formações econômicas pré-capitalistas o excedente era extraído por relações extra-econômicas, quer dizer, o escravo era obrigado a trabalhar na terra; o servo era obrigado a trabalhar gratuitamente para o senhor feudal e lhe devia obrigações. Assim, o Estado, nas suas distintas formas e características, era o elemento central de coerção para a extração do excedente econômico.

O capital, para desenvolver a “escravidão assalariada”, necessitava do fim das relações feudais de produção. Necessitava das relações “livres de troca”, que separasse completamente os homens de seus meios de subsistência, obrigando o proletariado a vender sua força de trabalho, pois o seu poder viria da extração da mais-valia que ocorre dentro do processo de produção, e não fora dele, como faziam as classes que precederam a burguesia.

Por isso, a burguesia terminou a luta contra a nobreza no nível político da sociedade, com a idéia de que o novo Estado, nascido de sua Revolução, deixava de ser um Estado de classe. A liberdade para o capital, seria a liberdade para toda a sociedade.

Ao mesmo tempo em que foi um crítico implacável do Estado neutro, Lenin pôde compreender as distintas etapas históricas deste Estado: “A república burguesa, o parlamento, o sufrágio universal, tudo isso constitui um imenso progresso do ponto de vista do desenvolvimento mundial da sociedade. A humanidade avançou até o capitalismo e foi somente o capitalismo, que graças à cultura urbana, permitiu à classe oprimida dos proletários adquirir consciência de si mesma e criar o movimento operário mundial”.

O Estado capitalista e suas instituições cumpriram seu papel histórico. E a classe operária também pôde utilizar-se dessas liberdades necessárias ao desenvolvimento do capital para formar os sindicatos e intervir com seus partidos no cenário político. Algo jamais pensado, sob nenhum dos Estados que precederam o capitalismo.

Já o advento do imperialismo marca a decadência do sistema capitalista gerando, como conseqüência, profundas transformações na estrutura do Estado: “O imperialismo, época do capital bancário, época dos gigantescos monopólios capitalistas, época de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado, mostra o esforço extraordinário da ‘máquina do Estado’, o crescimento inaudito de seu aparelho burocrático e militar em ligação com o esforço da repressão contra o proletariado, tanto nos países monárquicos, como nos países republicanos mais livres”.

Essa tendência apontada por Lenin se expressa mais do que nunca na barbárie da ocupação norte-americana do Iraque, e no orçamento de defesa, tanto dos EUA, como da União Européia.

Mas, justamente quando a crise estrutural do capitalismo joga por terra toda falácia do Estado burguês neutro e árbitro da sociedade, ‘novos teóricos’ requentam velhas teorias da “Democratização do Estado”. O “Orçamento Participativo”, por exemplo, e o Conselho de Desenvolvimento Social, do governo federal, defendem que é possível acabar com as relações orgânicas do Estado burguês com o grande capital, colocando este sob o controle da “sociedade”.

Entretanto, para realizar tal proeza são obrigados a decretar o fim da luta de classes e das próprias classes sociais, e reconhecer o Estado burguês como algo eterno, e não como fenômeno histórico.

Como não se pode passar por cima da vida real, acabam administrando o Estado para os capitalistas e colocam a máquina de governo a serviço do próprio imperialismo, utilizando, para isso, os mesmos métodos da burguesia.

O Estado que o governo Lula quer democratizar já não passa de um fantoche, já não decide sobre os aspectos centrais da vida do país. Que decisões toma o Parlamento brasileiro? Elas estão todas dentro da margem definida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pois a mesma lógica que der início à ruptura com o imperialismo colocará em xeque a aliança com a burguesia e seu Estado, que estão a serviço da exploração e da opressão da maioria do povo.

Resta, então, ao teórico do Estado democrático, aplicar a Reforma Universitária e, ao presidente, vender soja na China. Não será a ilusão reacionária de “democratizar” o Estado burguês que poderá recuperar a soberania, senão sua destruição. Portanto, nunca esteve tão atual o pensamento de Lenin.

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