Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

 

Lançado no início do ano, o livro “Toda poesia: Paulo Leminski” (Companhia das Letras, 421 páginas) já conseguiu uma proeza literalmente digna da obra e vida do genial poeta curitibano: bateu boçalidades neomachistas como “50 tons de cinzas” e atingiu o topo da lista dos mais vendidos no país. Uma “glória” que, com certeza, faria Leminski rolar de irônico prazer, caso a cirrose tivesse abreviado sua vida, pouco antes dos 45 anos, em 1989.
O fato de o livro ter se tornado um “best seller” causou surpresa no mercado editorial. E, com certeza, o feito tem que ser visto como uma bem-vinda contradição diante da razoável pasmaceira que domina as estantes. Uma contradição que pode até ser entendida como um reflexo dos “novos ventos” que começam a soprar mundo afora; mas, certamente, tem tudo a ver com a personalidade única e a múltipla obra de Leminski.
Um banquete poético
Com cerca de 600 poesias, muitas delas inéditas, a coletânea é uma ótima oportunidade para que as novas gerações entrem em contato com uma obra que, como lembra Alice Ruiz (que foi companheira e parceira criativa do poeta), no prefácio do livro, foi construída com a destreza de um equilibrista que traça seu percurso entre mundos sem medo, com a coragem dos “ousados”.
Do ponto de vista poético, esta ousadia está no centro da obra de Leminski que, como também destaca Ruiz, concilia “em seus poemas a rigidez da construção formal e o mais genuíno coloquialismo”. Nada mais Leminski. Um autor que, ao mesmo tempo em que dominava os “clássicos” e flertava com a cultura Oriental, sabia como poucos captar as vozes das ruas; iluminando os pequenos fatos da vida e jogando luz e sarcasmo sobre as dores e os prazeres do dia a dia.
Cada página do livro é uma prova disto. Organizado em ordem cronológica – começando com o já raro “Quarenta clics em curitiba”, de 1976 –, “Toda poesia” permite conhecer uma obra marcada tanto pela explosiva, lírica e libertária produção da época em que o poeta era identificado como membro da “geração mimeógrafo” (que circulava pelas ruas divulgando seus trabalhos) quanto pelo profundo mergulho de Leminski na “poesia concreta”, cujos sentidos emergem tanto das palavras quanto da forma em que elas são escritas e dispostas na página.
Exemplos da personalidade de um sujeito adepto radical do “tudo junto e misturado”, os poemas são expressões, sempre esbanjando criatividade, como Leminski não temeu se equilibrar de forma bastante “instável” no meio de tudo isso.
Neles, a força poética é muitas vezes arrancada de um permanente diálogo com o melhor da poesia mundial, em particular os “rebeldes & malditos” (dos beatniks aos românticos do século 19). Acompanhando a variedade de temas, as formas circulam entre os curtos e cortantes haikais de inspiração oriental e as frases-piadas, que caracterizaram a poesia futurista (e, no Brasil, a obra de Oswald de Andrade).
O recorde de vendas alcançado pelo livro certamente também tem a ver com essa característica da obra de Leminski. A “multiplicidade de vozes” e a mescla de simplicidade e profundidade que ecoam em seus poemas, literalmente os tornaram atemporais. Prova disto foi a “febre”, tempos atrás, dos “twicais” (“twitters” que reproduziam ou se inspiravam na obra do poeta). E, por isso mesmo, é importante que se conheça um pouco, também, do sujeito e “ser político” por trás da obra.

O polaco-negro, o trotskista-budista
Como afirmamos em um artigo sobre o poeta, publicado em 2009, tentar definir Leminski é uma tarefa difícil. Descendente de poloneses e negros; simpatizante, na juventude, do grupo trotskista “Liberdade e Luta” e adepto apaixonado da cultura e religiosidade do Oriente, o escritor fez da “mescla” (sempre instigadora e inteligente) uma de suas principais marcas, o que pode ser exemplificado, na forma e conteúdo, através de seus mais fabulosos haicais, escrito em espanhol: “en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras, noches, poemas”.
Além da poesia, Leminski escreveu belíssimos livros (em formatos que sempre mesclam gêneros como o romance, a crônica, a autobiografia e o conto), como “Catatau“ (1976),  “Agora é que são elas” (1984), “Metaformose” (1994) e “O gozo fabuloso” (publicado em 2004).
Ainda mais impressionantes são as biografias escritas por Leminski, em particular as dedicadas ao poeta simbolista negro Cruz e Sousa e ao revolucionário russo Leon Trotsky (“Trotski: paixão segundo a revolução”).
O livro, cuja leitura é praticamente um “dever militante”, percorre a vida de Trotsky (dando grande destaque para as batalhas culturais que aconteceram ao redor dele), fazendo uma genial analogia com ele, Lênin e Stalin e os personagens centrais de “Os irmãos Karamazovski”, de Dostoévski.
Se tudo isto não bastasse, o poeta, fluente em diversas línguas (incluindo francês, japonês e latim), ainda nos brindou com importantes traduções, como o “Satiricon”, de Petrônio; “Sol e aço”, de Yukio Mishima (ambas de conteúdo fortemente homoerótico); textos do alucinado dramaturgo Alfred Jarry, além de poemas e novelas de James Joyce.

Sintonizado com a História
Toda essa produção e sua enorme qualidade também devem ser vistas como reflexo da vida de um artista antenado de forma crítica com seu tempo. Tendo declarado um dia ser um “daqueles que se colocam dentro de uma perspectiva histórica”, Leminski foi, a seu modo muito peculiar, um “militante” em tempo integral em prol da humanidade, no seu sentido mais profundo.
Sua sintonia com o mundo fica evidente na definição político-poética que ele deu aos conturbados anos de 1968, que tanto marcaram sua geração e sua obra: “contestação, rebelião estudantil na França, ‘primavera em praga’, / os ‘powers’ (black, red, gay, women’s lib), a pílula, o aborto, / o martírio do Vietnã / radicalização em sentido socialista, na américa latina, / psicodelismo, zen, sociedade alternativa / rock / homem na lua, mcluhan, aldeia global, o meio é a mensagem / contracultura”.
Por estas e muitas outras, ter a possibilidade de conhecer, na integra, a obra de Leminski é mais do que bem-vindo. E saber que há um público razoável interessado neste caldo de criatividade, ousadia e espírito rebelde, é uma notícia ainda melhor. Bravo, Leminski!

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