Poeta resgatou o pensamento trotskista sobre as relações entre arte e RevoluçãoNo dia 24 de agosto, Paulo Leminski completaria 60 anos. Nascido em 1944, o poeta curitibano – que se auto-definia como um “polonês negro” (referindo-se à sua marginalidade em relação a qualquer sistema em que tentassem encaixá-lo) – lamentavelmente, morreu, aos 44 anos, de cirrose, em junho de 1989, depois de ter vivido uma das mais intensas, complexas e produtivas vidas literárias em nosso país.

Inquieta como sua própria personalidade, a obra de Leminski, ícone da chamada contracultura no Brasil, é vasta e multifacetada. Além de poeta, Leminski foi tradutor (de James Joyce à escrita homoerótica do japonês Yukio Mishima, passando pelo latim arcaico e debochado de Petrônio, em Satyricon), romancista, colaborador de vários suplementos literários, letrista de músicas e autor de vários ensaios e biografias. Além disso, atuou como professor de História, jornalista e publicitário.

Seu primeiro romance, escrito em 1975, Catatau (prosa experimental) é, em certa medida, uma síntese do universo e das preocupações que atravessam toda a sua obra. No livro, o autor desloca o filósofo René Descartes e seu pensamento lógico para o Brasil, na época das invasões holandesas.

O ambiente fictício abre espaço para uma espécie de delírio tropical, que nos apresenta o choque entre o pensamento mecanicista e sistemático dos europeus com as desmedidas e imprevisíveis situações que imperam nos trópicos. Tudo isso regado a uma mescla alucinante de drogas, mitos e tipos, compondo uma obra ímpar (muitas vezes comparada com Macunaíma, de Mário de Andrade), que o próprio Leminski definiu da seguinte forma: “O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor (…), emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico.”

Em seu trabalho biográfico, destaca-se o resgate de dois “malditos”: Cruz e Sousa, o poeta “emparedado” pelo racismo, no Brasil do século XIX e Leon Trotsky, o revolucionário russo, perseguido e assassinado pelo stalinismo, no século XX.

Em 1985, ou seja, no final da ditadura, Leminski decidiu biografar Cruz e Sousa (1861 – 1898), exatamente por aquilo que mais profundamente marcou a vida do chamado poeta do Desterro: a sua marginalização e quase total exclusão do cenário cultural e poético brasileiro, apesar de ter sido a principal expressão do Simbolismo entre nós. Uma exclusão provocada por uma mescla de elementos com os quais o poeta curitibano certamente se identificava: o questionamento da ordem estabelecida (tanto na sociedade quanto na poesia) e uma rebeldia militante contra o sistema hipócrita em que vivia.

Posturas que também levaram o poeta a escrever Trotsky: a paixão segundo a Revolução (1986). Tendo tido contato com a organização estudantil trotskista Liberdade e Luta, no início da década de 1980, Leminski mesclou sua experiência militante e sua declarada simpatia pelo trotskismo com sua genialidade poética, dando origem a uma abordagem, no mínimo, original sobre a vida do revolucionário russo, ao utilizar os principais personagens do clássico Os irmãos Karamazov (escrito em 1879, por Dostoievsky) para discutir a vida e a obra de Trotsky e dois outros personagens fundamentais em sua trajetória: Lenin e Stalin.

Também como parte de suas preocupações, Leminski faz um excelente resgate do pensamento trotskista sobre as relações entre arte e Revolução e a necessidade da independência da primeira, para que a segunda se realize em sua plenitude.

Haicais de uma vida curta

Dentre os poucos poetas nacionais que conseguiram traduzir para a língua portuguesa a força dos haicais japoneses – poemas geralmente compostos por apenas três versos –, Paulo Leminski é, certamente, um dos mais bem-sucedidos (juntamente com a poeta Alice Ruiz, com quem foi casado por 20 anos).

E já foram muitos os críticos que atribuíram a beleza e a profundidade dos haicais do poeta curitibano à íntima relação que ele mantinha com o próprio estilo. Afinal, ele é autor de uma vida e de uma obra onde a intensidade sobrepõe-se à brevidade, o sentido das coisas brota do confronto e a síntese é o caminho que leva ao universal.

Tendo declarado um dia ser um “daqueles que se colocam dentro de uma perspectiva histórica”, Leminski foi, de fato, um reflexo alucinado de seu tempo. Em primeiro lugar, pela chamada geração pós-68, e suas conturbações, que ele, poeticamente, definiu da seguinte forma: “contestação, rebelião estudantil na França, ‘primavera em praga’,/ os ‘powers’ (black, red, gay, women’s lib), a pílula, o aborto,/ o martírio do vietnã/ radicalização em sentido socialista, na américa latina,/ psicodelismo, zen, sociedade alternativa/ rock/ homem na lua, mcluhan, aldeia global, o meio é a mensagem/ contracultura”.

Marcado e estimulado pelo ambiente rebelde que, no Brasil, buscava sobreviver ao clima de terror e censura da ditadura, Leminski forjou seus primeiros escritos com os mesmos ingredientes de outros ícones da contracultura nacional: os participantes do movimento tropicalista e, particularmente, Torquato Netto. Acrescentando a eles um ironia ferina, como fica evidente no haicai “ameixas / ame-as / ou deixe-as”, uma paródia escrachada do slogan “Brasil, ame-o, ou deixe-o”, que marcou os anos de chumbo, no início da década de 1970.

O já mencionado Catatau (no qual o autor trabalhou entre 1966 e 1974) é herdeiro direto dessa situação. Mas não o único. Na verdade, toda a obra do autor é marcada por uma espécie muito específica de subversão: o questionamento dos comportamentos, que subverte a linguagem, e, conseqüentemente, uma linguagem toda ela subvertida por uma certa rebeldia criativa contra a língua “culta”.

Seus livros, poemas e escritos são pontuados por palavras criadas a partir de outras línguas ou não, associações livres de idéias, textos que valorizam mais as belezas plásticas e poéticas do que os limites da gramática. Tudo isso sem que se distancie do mundo da erudição e do saber considerado “culto”, o que fez com que ele ganhasse o curioso “título” de “o bandido que sabia latim”.

Exemplo singular em nossa literatura, Leminski viveu seus últimos dias cercado por um certo amargor provocado tanto pela doença que se pronunciava irreversível, quanto pelos descaminhos que começavam a se anunciar no processo de democratização. Mas se é verdade que essa amargura transparece em sua escrita, também é fato que ela vem à tona com a mesma paixão poética que marcou a sua obra.

PARA CONHECER MAIS

Além dos livros citados no artigo, vale dar uma olhada nos seguintes títulos (muitos que serão relançados, em função do aniversário do autor):

• No campo da poesia, destaca-se Caprichos e relaxos (1983), que reúne alguns dos principais poemas feitos no início da década de 80, Distraídos venceremos (1987), marcado pelo período pós-ditadura e La vie en close (1991), publicado depois da morte do poeta.
• Entre os romances e demais escritos, os destaques ficam para Agora é que são elas, romance de 1984; o infanto-juvenil Guerra dentro da gente, de 1986, e uma série de ensaios teóricos sobre a linguagem poética.
• Leminski ainda consta como autor ou parceiro em dezenas de músicas gravadas por cantores tão diversos como Caetano Veloso (Verdura), Moraes Moreira (Baile no meu coração), Itamar Assumpção (Custa nada sonhar) e Arnaldo Antunes (Além alma).
• Sobre a vida do poeta, há o excelente Paulo Leminski: o bandido que sabia latim, de Toninho Vaz.

ALGUNS HAICAIS

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem

pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a Madagascar

pra que cara feia?
na vida
ninguém paga meia.

saudade do futuro que não houve
aquele que ia ser nobre e pobre
como é que tudo aquilo pôde
virar esse presente podre
e esse desespero em lata?

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