Uma Esquina; Ambos Mundos

O ponto de encontro das Ruas 23 e L poderia levar o nome do hotel que serviu de morada ao escritor Ernest Hemingway – Ambos Mundos. Localizada no centro comercial de Havana, a esquina pulsa o cotidiano de viajantes, estudantes estrangeiros e habaneros. A brisa do Atlântico, os sons que vêm das conversas de esquina e da rumba nos automóveis dos anos 50 montam um cenário de urbanidade densamente escrito e cantado por todos que se apaixonam por Havana. Mas na esquina pulsam também as enormes contradições por que passa Cuba hoje, como se fosse a síntese de dois mundos.

Peso cubano ou dólar? De um lado da esquina, o Hotel Habana Libre – construído em 1958 pelo poderoso grupo Hilton e que serviu de quartel-general nos primeiros dias da Revolução de 59 – serve hoje de hospedagem a quem puder pagar cerca de 150 dólares de diária e é administrado pelo poderoso grupo hoteleiro espanhol Sol-Meliá. Ao fechar o ano de 2000 o grupo empresarial de Gabriel Escarrer já dirigia instalações em Havana, Varadero, Cayo Largo, Ciego de Ávila, Holguín e Santiago de Cuba.

Ao finalizar 2000, quase metade da planta hoteleira de Cuba – 54 hotéis – se encontrava administrada por cadeias hoteleiras internacionais beneficiadas pelas facilidades de remessas de lucros através da Lei de Inversões Estrangeiras de 1995 . O Hotel Habana Libre e suas luxuosas acomodações se apresentam como a ponta de uma esquina e de um iceberg, cuja base é o processo de abertura ao capital estrangeiro acelerado nos anos 90.

Enquanto os EUA mantém o Bloqueio….
A União Européia lucra com investimentos em Cuba!

Miami abriga grande parte da direita cubano-americana, que desde a Revolução de 59 organiza sabotagens à Revolução. O bloqueio, iniciado sob o Governo Kennedy têm hoje uma versão mais refinada – a Lei Helms-Burton, de 1996, que pretende intimidar todo e qualquer investimento estrangeiro em Cuba.

Por detrás do inquestionável ataque à soberania do povo cubano, encontra-se também a disputa pelo mercado cubano, aberto nos anos 90. Além disso, apesar das ameaças e retaliações, o Canadá, país membro do NAFTA, realiza grandes investimentos e se constitui em porta de entrada para empresas norte-americanas que furam o bloqueio, assim como o México.

Não restam dúvidas que o Bloqueio deve ser repudiado. Mas enquanto isso, não podemos deixar de olhar para o outro lado do Oceano capitalista – a entrada de capitais pela União Européia, livremente remetidos ao exterior sob a forma de lucros.

Vejamos os dados do balanço anual de 2002, apresentado pela titular do Ministério para a Inversão Estrangeira e a Colaboração Econômica, Marta Lomas: Das 403 Associações Econômicas Internacionais, 56% provêem da União Européia. Entre os países com maior participação encontra-se a Espanha (105), Canadá (60) e Itália (57), respectivamente. Depois vem França (18), Reino Unido (14), México (14), China (12), Panamá (10), Alemanha (09) e Holanda (08). Totalizando quase 6 bilhões de dólares, os investimentos estrangeiros não se resumem ao setor de turismo. Empatando com as 77 associações no ramo de lazer, a indústria básica alcança a cifra de 76, enquanto a de construção, 47, a da indústria alimentícia 27, a produção agropecuária 22 e a indústria ligeira 17, entre outros setores da economia.

Lomas assinalou que em 2002, se autorizaram 24 negócios com 13 países, num montante de 100 milhões de dólares, sendo que os setores com maior participação nestas últimas transações foram os setores de construção e indústria básica .
Segundo a Lei de Inversões, as empresas de capital totalmente estrangeiro são beneficiadas com uma série de vantagens tanto sob o ponto de vista de liberdade de remessa de lucros, taxas aduaneiras e mesmo contratação de mão-de-obra.
Do outro lado da esquina … “A força de trabalho é o maior recurso do país”
Sorveteria Coppelia (que serviu de cenário ao premiado filme Morango e Chocolate, de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabio), Cine Yara e pequenas viviendas que oferecem lanches e refrescos à base de cana. Nos três espaços da outra esquina, os habaneros enfrentam filas para fazer com que seus salários não se transformem em completa ficção. A economia está dolarizada, mas os salários não. Um exemplo disso é o mecanismo salarial dos trabalhadores em turismo. A contabilidade dá o sentido exato da frase acima: o investidor paga em dólares ao governo, que por sua vez converte em peso cubano ao(à) trabalhador(a). Como a relação peso/dólar é de 26 por 01, a matemática não engana – 300 doláres=300 pesos cubanos= cerca de 12 dólares.
Essa apropriação pelo Estado tem se refletido em benefícios aos cubanos? “Cada um se vira como pode“. Assim dona O . expressa a angústia de milhões de cubanos que não vêem os dólares das inversões se reverterem em recuperação das condições de vida. Além dos problemas de abastecimento alimentar, agravados pelo descontrole dos preços inclusive nos mercados estatais (que representam apenas 34% de todas as modalidades de comércio de produtos agrícolas) , a saúde e a educação públicas – grandes triunfos da Revolução de 59 – se vêem ameaçados. Apesar do acesso universal à esses serviços, há um processo lento de sucateamento na base do atendimento ao mesmo tempo em que se sofisticam os centros de alta tecnologia, como na questão da medicina.

“Economia de Guerra” Socialista ou Restauração Capitalista? Um Debate Necessário

A Revolução de 59 despertou e mantém vivo sentimentos de solidariedade e admiração em todo o mundo. Não é à toa que uma das figuras mais popularmente expressas em souvenirs no Fórum Social Mundial é a de Che Guevara. No entanto, é necessário que a vanguarda lutadora e socialista discuta as medidas que o Governo de Fidel Castro tem implementado desde a crise do início dos 90. A economia se recupera, os balanços de investimentos são positivos mas o povo vai mal.

Muitos afirmam que não é possível outro caminho. Que a abertura tem sido a saída possível. Que podemos compará-la à N.E.P. ( Nova Política Econômica) implementada na crise da jovem URSS nos anos 20.

Porém, na gravíssima crise dos anos 20, o Governo dos bolcheviques mantinha o monopólio sobre o comércio exterior e utilizava a restrita abertura ao privado para fortalecer o estatal. Sabiam que o mercado é como um câncer numa economia que se pretende socialista. Mais do que isso, sabiam que não é possível o socialismo em um só país.

Por mais que Fidel afirme “Queremos o capital, não o capitalismo” , objetivamente o incentivo é irrestrito e delineado como uma política permanente. Não há socialismo que sobreviva com tal política.

Nessa Cuba de dois mundos – o do dólar e o do peso cubano – vence o mais forte, administrado pela cúpula do Estado cubano. Do elegante bairro de Miramar, distante dos cortiços de Cayo Hueso, se tece uma Cuba dividida que enfim se revela como um só mundo – o do capital.

Um Mundo Socialista é Possível

Neste momento, em que milhões de jovens e trabalhadores (as) do mundo inteiro protagonizam uma espetacular retomada de internacionalismo contra o domínio do Império Norte-Americano, a bandeira do Socialismo se torna mais viva que nunca. Das rebeliões no Oriente Médio, passando pelas jornadas contra a Guerra na Europa e EUA até os levantes das periferias na América Latina, a globalização da miséria e a guerra contra os pobres e oprimidos impõe saídas coletivas. É nesse marco que devemos pensar Cuba.

A saída para Cuba é a reversão do processo de restauração e a construção de uma alternativa socialista latino-americana. À heróica resistência do povo cubano aos ataques do imperialismo norte-americano deve se somar a Unidade dos Povos da América Latina contra a ALCA e toda forma de imperialismo.

Post author Ana Reis,
especial para o Opinião Socialista
Publication Date