Giuliana Sgrena
Il Manifesto

Depois de um mês sequestrada pela resistência iraquiana, a jornalista italiana Giuliana Sgrena foi libertada na sexta-feira, 4 de março. No momento era levada até o aeroporto de Bagdá, o carro em que viajava tornou-se alvo de militares norte-americanos, e foi atingido por centenas de tiros. Giuliana foi atingida, e sobreviveu graças a um agente italiano, que usou seu corpo como escudo. O site do PSTU reproduz a seguir o depoimento da jornalista ao jornal em que trabalha, o Il Manifesto, no domingo, 6, sobre o período de cativeiro e o momento em que foi atingida. O texto foi traduzido da versão em espanhol, publicada no site Rebelion.org

Ainda estou confusa. A sexta-feira foi o dia mais dramático de minha vida. Havia passado muitos dias sequestrada. Havia falado pouco antes com meus sequestradores, que há dias diziam que iam me libertar. Vivia horas de espera. Falavam de coisas das quais somente depois entendi a importância. Falavam de problemas “relacionados com as transferências”.

Havia aprendido a entender se corriam maus ou bons ventos pelas atitudes de meus dois “sentinelas”, os dois personagens que me vigiavam todos os dias. Um em particular, que era atencioso com todos os meus pedidos, estava inacreditavelmente decidido. Para entender o que estava acontecendo realmente, o provoquei, perguntando se estava contente porque eu iria embora ou porque eu iria ficar. Fiquei surpresa e contente quando, era a primeira vez que isso acontecia, me disse “só sei que você vai, mas não sei quando”. Como prova de que algo novo estava acontecendo, em um certo momento entraram os dois no meu quarto como que para me confortar e brincaram: “Em boa hora – me disseram – você vai para Roma”. Para Roma, disseram assim.

Tive uma estranha sensação. Porque essa palavra me evocou imediatamente a libertação, mas também projetou dentro de mim um vazio. Entendi que era o momento mais difícil de todo o seqüestro e que, se tudo o que havia vivido até aquele momento era “certo”, agora abria-se um abismo de incertezas, uma mais pesada do que a outra. Troquei de roupa. Eles voltaram: “Venha conosco e não dê sinais de tua presença, senão os americanos podem intervir”. Era a confirmação que não quis escutar. Era o momento mais feliz, e ao mesmo tempo, o mais perigoso. Se encontrassemos com alguém, é bom dizer com algum militar americano, haveria um tiroteio, meus sequestradores estavam preparados e responderian. Tive de ficar com os olhos tampados. Já estava me acostumando a uma cegueira momentânea. Sobre o que estava se passando lá fora, só sabia que havia chovido em Bagdá. O carro ia com segurança por uma zona de pântanos. Havia um motorista mais os dois sequestradores de sempre. Inmediatamente ouvi algo que preferia não ter escutado. Um helicóptero que sobrevoava a baixa altitude justamente na zona onde havíamos parado. “Fique tranquila, virão te buscar… Dentro de dez minutos virão te buscar”. Haviam falado todo o tempo em árabe, um pouco em francês e muito em inglês macarrônico. Desta vez também falavam assim.

Depois desceram. Fiquei nessa condição, imóvel e cega. Tinha algodão nos olhos, cobertos com óculos escuros. Estava quieta. Pensei… Quê faço? Começo a contar os segundos desde este instante até a nova situação, a da liberdade? Mal comecei a contar mentalmente, uma voz amiga me chegou aos ouvidos: “Giuliana, Giuliana, sou eu, Nicola, não se preocupe, falei com Gabriele Polo, fique tranquila, está livre”.
Comecei a tirar a venda de algodão e os óculos escuros. Senti um alívio, não pelo que estava ocorrendo e que não entendia, mas pelas palavras do tal “Nicola”. Falava, falava, era impossível de conter, una avalanche de frases amigas, de brincadeiras. Senti finalmente ua consolação quase física, calorosa, que havia esquecido há tempos.

O carro continuava seu caminho, atravessando um túnel cheio de poças, e quase derrapando para desviar delas. Inacreditavelmente, todos rimos. Era libertador. Dar voltas em uma estrada cheia de água em Bagdá podendo sofrer um acidente de carro depois de tudo o que havia passado era algo inacreditável. Então, Nicola Calipari sentou-se ao meu lado. O motorista havia avisado duas vezes à embaixada e à Itália que estávamos indo até o aeroporto, que eu sabia que estava supercontrolado pelas tropas americanas, falta menos de um quilômetro, me disseram… quando… Me lembro apenas do fogo. Neste momento, uma chuva de fogo e projéteis caiu sobre nós, calando de vez as vozes divertidas de poucos minutos atrás.

O motorista começou a gritar que éramos italianos, “somos italianos, somos italianos…”. Nicola Calipari jogou-se sobre mim para me proteger, e, então, pude sentir o seu último suspiro, e ele morria sobre mim. Senti uma dor dísica, mas não sabia porque. Mas uma forte lembrança fulgurante me saltou a mente, voltaram imediatamente em minha cabeça as palavras que me disseram os sequestradores. Eles diziam que fariam de tudo para libertar-me, mas eu teria de estar atenta “porque há os americanos, que no querem que você volte”. Quando me disseram isso, considerei aquelas palavras como superficiais e ideológicas. Naquela hora, para mim, corriam o risco tornarem-se a mais amarga das verdades.

O resto ainda não posso contar.

Este foi o dia mais dramático. Mas o mês em que estive sequestrada, provavelmente mudou para sempre minha existência. Um mês sozinha comigo mesma, prisioneira de minhas mais profundas convições. Cada hora foi uma comprovação impiedosa do meu trabalho. Algumas vezes me puxaram o cabelo, me perguntaram porque eu queria ir, me pediram que ficassse. Eram eles os ques me faziam pensar nessa prioridade que muitas vezes chegamos a deixar de lado. Insistiam na minha família. “Peça ajuda a teu marido”, diziam. E o fiz no primeiro vídeo, que acredito que todos devem ter visto. Minha vida mudou. Era o que dizia o engenheiro iraquiano Ra’ad Ali Abdulaziz, de Un ponte per, raptado com as duas Simones, “minha vida já não é a mesma”, dizia. Eu não o entendia. Agora sei o que queria dizer. Porque senti toda a dureza da verdade, e vi o quão difícil que é propô-la. E a fragilidade de quem a busca.

Nos primeiros dias de seqüestro não deixei cair uma só lágrima. Estava simplesmente furiosa. Dizia na cara dos meus sequestradores: “Mas como vocês sequestram justo a mim, que sou contra a guerra?”. Neste ponto, eles começavam um diálogo feroz. “Porque você vai à rua falar com as pessoas, não conseguiríamos sequestrar nunca um jornalista que está trancado em seu hotel. Além disso, o fato de dizer que está contra a guerra, poderia ser uma cobertura”. E eu rebatia, quase que provocando-os: “É fácil raptar uma mulher frágil como eu. Por que não experimentam com os militares americanos?”. Diziam que não adiantaria pedir ao governo italiano que retirasse suas tropas, seu interlocutor “político” no poderia ser o governo, mas sim o povo italiano que estava e está contra a guerra.

Foi um mês de idas e vindas, entre fortes esperanças e momentos de grande depressão. Como quando, no primeiro domingo depois da sexta-feira do seqüestro, na casa de Bagdá onde estava sequestrada e que tinha uma antena parabólica, me deixaram ver um telejornal da Euronews. Ali vi o meu rosto em uma fotografia gigante pendurada na sede da Prefeitura de Roma. E me senti encorajada. No entanto, depois, logo depois chegou a reivindicação da Jihad que anunciava minha execução caso a Itália não retirasse as suas tropas. Estava aterrorizada. Mas imediatamente me acalmaram, me garantindo que não eram eles, que era preciso desconfiar daquelas declarações, que eram “provocadores”. Resolvi perguntar a um que, pela cara, parecia o mais acessível, ainda que, como o outro, tivesse aspecto de soldado: “Diga-me a verdade, vocês querem me matar”. Mas, muitas vezes, abriam-se estranhas janelas de diálogos com eles. “Venha ver um filme na televisão”, me diziam, enquanto uma mulher wahabita, coberta dos pés a cabeça, circulava pela casa e me atendia.

`GiulianaOs sequestradores me pareceram um grupo muito religioso, pois rezavam seguidamente os versículos do Alcorão. Mas na sexta, no momento da minha libertação, o que parecia mais religioso de todos, um que se levantava às cinco da manhã para rezar, inacreditavelmente, me parabenizou com um forte aperto de mão – não é um comportamento comum para um fundamentalista islâmico -, e acrescentou: “se te comportas bem, vai embora agora mesmo”. Depois, um episódio quase divertido. Um dos dois vigias veio me ver estupefato porque a televisão mostrava fotos com o meu rosto colados em cidades européias e até na camiseta do jogador Totti. Ele, que tinha se declarado um torcedor doente pelo Roma, estava desconcertado pelo que fazia seu jogador favorito – sim, Totti – havia entrado em campo com uma camiseta em que estava escrito “Liberdade para Giuliana”.

Estava vivendo em um enclave no qual já não me restavam certezas. Fiquei muito debilitada. Equivoquei-me nas minhas certezas. Eu tinha sustentado que era preciso ir para escrever sobre aquela guerra suja. E me encontrava tendo de escolher entre estar no hotel esperando ou terminar sequestrada por culpa do meu trabalho. “Nós não queremos mais ninguém”, me diziam os sequestradores. Mas eu queria contar sobre o banho de sangue de Falujah pelas palavras dos refugiados. E naquela manhã, os próprios refugiados ou um de seus líderes, não me escutavam. Tinha diante de mim a prova cabal das análises sobre as mudanças na sociedade iraquiana provocadas pela guerra, e eles me jogavam na cara a sua verdade: “Não queremos nada. Por que não ficou em sua casa? Em que pode nos ajudar esta entrevista?”. O efeito colateral pior, o da guerra que mata a comunicação, caía em cima de mim. Em mim, que tinha arriscado tudo, desafiando o governo italiano, que não queria que os jornalistas fossem ao Iraque, e aos americanos, que não querem que nosso trabalho mostre no que o país se transformou com a guerra, apesar disso que eles chamam de eleições.

Agora me pergunto. É um fracasso o rechaço deles?

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    Leia o texto em espanhol, no site Rebelión.org

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