O SEGUNDO TURNO E AS TAREFAS DA ESQUERDA SOCIALISTA

João Antônio de Paula, professor da FACE (Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG), do CEDEPLAR e presidente do PSOL de Minas Gerais.

1) Os mercados estão tranqüilos, aguardam sem temor o resultado do segundo turno. De fato, descobriram, nos últimos quatro anos, que não há o que temer do atual governo, como também sabemos que uma eventual vitória tucana não lhes prejudicará.

2) Este fato, a indiferença dos mercados pelo resultado do segundo turno, não significa, como disse Francisco de Oliveira, “a morte” da política definitivamente “colonizada” pela economia, senão que a adesão – “servidão voluntária” – de Lula, seu partido e seu governo, à ordem neoliberal, adesão que significa abandono tanto de bandeiras históricas, quanto de referências teóricas e programáticas, quanto, decisivamente, o abandono dos compromissos com a transformação social brasileira do ponto de vista dos trabalhadores e do povo pobre do país.

3) É preciso insistir, mais uma vez, que a adesão de Lula e seu governo ao neoliberalismo, para além das implicações éticas deste virtual transformismo político e ideológico, tem o decisivo agravante de prolongar as crônicas mazelas da economia e da sociedade brasileira submetidas às imposições do capitalismo dependente.

4) É um dos pontos inafastáveis da interpretação do Brasil, que a esquerda brasileira vem construindo, desde os anos 1950, a tese de que não haverá efetivo desenvolvimento econômico e social do país, senão mediante a superação do caráter dependente do capitalismo brasileiro, o qual significa, estruturalmente, tanto a permanência de iníquos padrões de desigualdade de renda e riqueza, quanto o aprofundamento da dependência externa da economia, quanto a recorrente necessidade de mobilização de instrumentos de “contra-revolução política” como condição da preservação dos interesses do capital.

5) A retomada destas idéias hoje, processo coletivo e complexo, tem que começar por reconhecer que esta tarefa, a superação do caráter dependente da nossa economia, raiz do quadro de precariedades, que marca nossa vida material, cabe aos trabalhadores brasileiros, que são, de fato e objetivamente, os sujeitos efetivamente comprometidos e beneficiários, juntamente com o povo pobre do país, de uma radical transformação econômica e social mediante a distribuição da renda, riqueza, poder e informação.

6) É de se notar, que se são os trabalhadores, que, não só, têm interesses objetivos na superação do quadro de dependência de nossa economia, quanto são eles que mobilizarão as energias sociais capazes de realizarem tal intento, então, os limites, a amplitude e profundidade das transformações que serão realizadas, dependerão da consistência e coerência do programa, de sua capacidade de mobilizar, convencer e construir.

7) Para dizer com todas as letras: a adesão ao neoliberalismo é, não só, uma traição aos interesses dos trabalhadores e do povo pobre do país, quanto uma trágica e farsesca reiteração das trágicas conseqüências do capitalismo dependente no Brasil.

8) A história do capitalismo dependente brasileiro, no século XX, mostrou, durante certo tempo, cerca de 50 anos, que o simples dinamismo econômico, o crescimento da economia a uma média anual de 7%, não tem o condão de superar o caráter subdesenvolvido, dependente, periférico da economia. Os últimos 25 anos da economia brasileira têm sido de baixíssimo crescimento econômico e igual permanência do caráter dependente da economia. É a reiterada constatação destes fatos que reafirmam a necessidade de se afastar as ilusões quanto à transações, acomodações, conciliações, tão típicas das estratégias de domínio das classes dominantes brasileiras, e, na prática, confirmadoras das crônicas debilidades da nossa economia e da nossa sociedade.

9) Assim, não há porque se surpreender com o pífio desempenho da economia brasileira durante o governo Lula. Ao fim e ao cabo, o crescimento da economia durante o atual governo será praticamente o mesmo dos oito anos do governo FHC, o que é trágico mas não surpreendente. As mesmas políticas, os mesmos procedimentos, a mesma cúmplice submissão aos interesses do grande capital financeiro não podem gerar senão os mesmos resultados. Acrescente-se que o desempenho da economia brasileira foi significativamente pior do que o dos chamados países emergentes e pior que a média da economia mundial.

10) Também digno de registro é o fato de que os últimos 4 anos têm sido anos de quadro econômico internacional benigno, situação de que a economia brasileira não se beneficiou pela armadilha representada pela adesão neoliberal do governo Lula.

11) Enquanto o Brasil permanece como o campeão mundial das taxas de juros, 10% em termos reais em 2006, os outros países emergentes têm taxas de juros em média de 2%, sendo esta a mais perfeita caracterização da economia brasileira nesses tempos neoliberais: a permanente e crescente transferência da riqueza nacional para alimentar a altíssima lucratividade do grande capital financeiro.

12) Para a esquerda brasileira, para os que se colocam do ponto de vista dos trabalhadores não há que pairar dúvidas quanto a necessidade de efetiva e radical ruptura com as políticas neoliberais como condição essencial e indescartável para a superação das crônicas mazelas da economia brasileira. Isto é, que a continuidade da política neoliberal significa a perpetuação atualizada da perversa forma de desenvolvimento capitalista no Brasil e seu cortejo de males: a super-exploração do trabalho; a concentração da renda e da riqueza; a manutenção de padrões de vida, para milhões de brasileiros, que ferem a dignidade humana.

13) Trata-se, neste sentido, de repelir absolutamente as políticas neoliberais como as manifestações contemporâneas dos velhos mecanismos de imposição do capitalismo dependente no Brasil. Assim, por via de conseqüência, é o caso de reafirmar nossa permanente denúncia do neoliberalismo tucano quanto repelir também o neoliberalismo do neopetismo, porque, no essencial, partilham a mesma adesão ao que é, estrutural e necessariamente, anti-democrático, anti-nacional e anti-popular.

14) Quatro anos de governo petista; de uma frente política que inclui não só conhecidos representantes da venalidade e da corrupção, mas também notórios representantes de inimigos da classe dos trabalhadores, e um balanço final de suas políticas só pode concluir por sua estreita caracterização como um governo especificamente neoliberal em suas políticas centrais, cabendo ao que poder-se-ia chamar de aspectos não-neoliberais do governo lugar totalmente secundário no conjunto das políticas, incapazes de, ao mesmo, nuançar a decisiva marca neoliberal que o caracteriza.

15) A tão propalada ação social do governo e suas políticas assistencialistas inscrevem-se no marco geral das políticas da ideologia neoliberal: aos pobres a distribuição de assistência, quanto o que, de fato, lhes é devido são direitos: o direito ao trabalho; o direito à terra; o direito à educação de boa qualidade; o direito à saúde; o direito à habitação.

16) As crônicas mazelas da economia brasileira, os 26 anos de crescimento medíocre, os 16 anos de políticas neoliberais agravaram muito o quadro social brasileiro. Há visíveis sinais de esgarçamento do tecido social ameaçado, sobretudo, pelos efeitos deletérios da brutal desigualdade social, pela corrupção generalizada, pela disseminação da impunidade, pela crescente desmoralização dos governos e dos outros poderes do Estado.

17) Enfrentar este quadro, efetivamente, do ponto de vista dos trabalhadores significa adotar três grandes linhas de providências: I) romper, radicalmente, com a “macroeconomia do Consenso de Washington”, com a macroeconomia neoliberal e construir uma macroeconomia do desenvolvimento e da superação do capitalismo dependente; II) promover, efetivamente, a “distribuição primária da renda” implicando isto tanto na Reforma Agrária, tal como defendida pelos movimentos que lutam pela terra, quanto em medidas que universalizem a educação pública de boa qualidade, que permitam a apropriação de novas tecnologias, que promovam o desenvolvimento sustentável; III) democratizar, efetivamente, o Estado mediante tanto políticas que imponham progressividade tributária, que façam justiça fiscal, quanto políticas que promovam efetivo controle da sociedade sobre o Estado em suas diversas esferas e níveis de governo.

18) Ao contrário disso, o governo petista acomodou-se à ordem neoliberal e tem praticado políticas que, no fundamental, reforçam a dominação burguesa nesta fase de globalização globalitária. Em vez de assegurar direitos, de criar empregos, de distribuir renda e riqueza, o governo: retira direitos (a Reforma da Previdência), ameaça com novas retiradas de direitos (a Reforma da Previdência II, a Reforma Sindical, a Reforma Trabalhista); procrastina e mediocriza a Reforma Agrária; contribui com sua política de juros, com a manutenção dos superávits fiscais, para a manutenção do desemprego e para o crescimento econômico irrisório.

19) O problema do programa bolsa-família, e assemelhados, não é sua existência. Eles refletem, no essencial, a penúria a que estão reduzidos amplos contingentes da população como conseqüência da “lógica perversa” do capitalismo neoliberal ainda mais agravada pelas características do capitalismo periférico. Os que têm fome devem ser alimentados, todos, mesmo os neoliberais, talvez nem todos, concordam com isto. Contudo, o problema é, para nós, para os que se colocam do ponto de vista dos trabalhadores, como evitar que se tenha que recorrer, sistematicamente, como políticas correntes, a estas formas de políticas compensatórias? A resposta é clara: rompendo, derrotando os mecanismos que produzem a miséria, o desemprego, a concentração da renda e da riqueza, derrotando, enfim, o capitalismo dependente em sua fase neoliberal.

20) Em 2006 o governo distribuirá 8 bilhões de reais para o Programa Bolsa-Família, no mesmo ano, com o pagamento de juros do serviço das dívidas públicas, o governo transferirá para o setor financeiro 140 bilhões! Eis, numericamente posto, o sentido do governo Lula, um governo que mantém os pobres pobres e os ricos cada vez mais ricos. A questão que se coloca aqui, como sempre foi para a esquerda, é que não haverá a efetiva superação da pobreza, a efetiva emancipação plena do conjunto da sociedade, a incorporação de toda a sociedade aos melhores frutos do desenvolvimento societário, senão mediante a distribuição da renda e da riqueza, senão mediante a universalização de direitos sociais básicos o que é incompatível com a preservação do capitalismo dependente.

21) O que é decisivo aqui é reconhecer que no Brasil a superação do capitalismo dependente será tarefa dos trabalhadores brasileiros, posto que sobejamente demonstrada a inépcia e a pusilanimidade das classes dominantes brasileiras. Se é assim, então não há porque não fazer da luta pela superação do capitalismo dependente momento da luta geral pela construção do socialismo como liberdade e igualdade.

22) Para a esquerda socialista a luta pelos objetivos maiores, não se descola do aqui e do agora. Também nesta conjuntura, no contexto da eleição em segundo turno, é preciso buscar posição que seja um instrumento efetivo da luta dos trabalhadores. Neste contexto, a posição capaz de sintetizar os interesses da luta pela transformação social brasileira, do ponto de vista dos trabalhadores, é o repúdio tanto à candidatura tucana, quanto à candidatura do PT.

23) A tragédia ética, política e ideológica do PT motivou a criação, em 2004, do PSOL. Depois de uma longa e penosa campanha conseguiu-se constituir, legalmente, o Partido para que ele pudesse concorrer às eleições de 2006. Com este gesto, os que criaram o PSOL buscaram mostrar que nem todos os que participaram da experiência do PT renderam-se ao neoliberalismo. De fato, os mais de seis milhões de votos que Heloísa Helena teve nas eleições confirmam, sobretudo levando em conta as dificuldades materiais e o pouco tempo que se teve para a organização do Partido, as amplas possibilidades das lutas pela transformação social do Brasil do ponto de vista dos trabalhadores.

24) O PSOL é um partido novo, que não reivindica ser o marco zero da história da esquerda brasileira. Mais que isto, o PSOL reconhece e homenageia a existência de outros partidos e movimentos, que têm se dedicado, com valor, à luta pela transformação social brasileira. Agora mesmo nas eleições construímos uma frente eleitoral com o PCB, PCR e o PSTU, que queremos que se mantenha e se fortaleça como instrumento de luta dos trabalhadores e do povo pobre, na luta por sua plena emancipação.

25) Neste momento, mais que repudiar as duas candidaturas, Lula e Alkmin, é decisivo que se avance na construção de um Programa, que sintetizando as aspirações e dinâmica das lutas sociais seja a referência política e organizativa da transformação social brasileira do ponto de vista nacional, democrático, popular, sustentável e socialista.

26) De fato, os dois programas econômicos, o do PT e o do PSDB, são, basicamente, iguais, como similares são os instrumentos e as políticas que serão mobilizados. Nos dois casos, cogita-se no corte de despesas, numa nova Reforma da Previdência, ao mesmo tempo que permanece a mesma dependência e vulnerabilidade externa e a mesma submissão ao grande capital financeiro e às escorchantes taxas de juros, que continuarão muito acima das taxas praticadas em outros países.

27) Para dizer com clareza as políticas do primeiro governo Lula, foram, básica e centralmente, neoliberais, anti-democráticas, anti-nacionais e anti-populares, por isso mesmo, continuarão a sê-lo num segundo governo tanto quanto é possível afirmar-se pelo que tem sido dito e feito. Por outro lado, os aspectos positivos, se, de fato, há algum que se destaque para além do medíocre, não alteram o quadro geral, que é lamentável. A alardeada vitória do governo Lula que teria retirado 20% da população da pobreza extrema, também foi alcançada pelo primeiro governo FHC em função da queda da inflação. O que importa aqui, de fato, do ponto de vista dos trabalhadores e do povo pobre do País, é impedir que a máquina da produção da pobreza e da miséria continue atuando e produzindo mais pobreza.

28) Repudiar Lula e Alkmin no segundo turno e organizar as lutas sociais tanto para barrar as novas investidas neoliberais, que serão tentadas, vença quem vencer, e construir a unidade política e programática para a transformação social brasileira do ponto de vista do socialismo e da liberdade, eis as grandes tarefas que se colocam para a esquerda socialista brasileira.

Belo Horizonte, 15 de outubro de 2006.