Após a queda do muro de Berlim, inúmeras questões se recolocaram dentro do marxismo – a natureza dos Estados stalinistas, as mudanças havidas dentro da classe trabalhadora e até a própria necessidade e a viabilidade do socialismo para transformar o mundo. As respostas variaram de uma minoria que se aferra ao dogmatismo cego que nada respondia e perdia em credibilidade perante à vanguarda revolucionária até uma maioria que debandou e renegou da própria necessidade da revolução e do socialismo, da qual o PT e seu governo neoliberal são um representante destacado. Assistimos dentro da esquerda majoritária às mais extraordinárias e incríveis conversões, das quais o PT e seu governo neoliberal é somente um representante. O livro “As esquinas perigosas da História”, de Valério Arcary, publicado pela editora Xamã, tem vários méritos, talvez um dos maiores seja o de divulgar e atualizar de forma pedagógica os conceitos marxistas sobre as revoluções do século XX. O texto proporciona uma leitura fácil e agradável sobre os principais processos revolucionários do século passado, tanto sobre os vitoriosas, como as revoluções chinesa, cubana, indochinesa, quanto os processos revolucionários abortados. Destaca e explica muito claramente o porquê da excepcionalidade da Revolução Russa como a única revolução que teve o proletariado como sujeito social, a auto-organização democrática através dos sovietes como forma institucional e um partido conscientemente revolucionário e internacionalista na sua direção, o que explica ser até hoje um marco de referência entre os múltiplos processos do século XX.

Mas o livro vai muito além de uma popularização de conceitos: fiel à idéia de que os revolucionários devem tentar elaborar sobre a revolução, Valério passa em revista os processos revolucionários do século XX, procurando analisar e classificá-los de acordo com a forma desigual em que se combinaram os quatro aspectos de uma revolução: as tarefas colocadas para a sociedade específica, o sujeito social que encabeçou a revolução, os resultados alcançados e a direção política que esteve à frente de cada um dos processos revolucionários.

Ao contrário do senso comum que exclui o presente da História, o texto procura inserir os últimos anos dentro de uma periodização do que é considerado como a característica mais saliente da irrupção dos processos revolucionários, a sua irrupção em forma de ondas. Cinco teriam sido as ondas no século: 1)de 17 a 23 na Europa, a partir da revolução russa, 2) a onda entre 29 e 36, à raiz da crise de 29 e da ascensão do fascismo, 3) a onda revolucionária que se seguiu à II Guerra Mundial e que se prolongou nos países coloniais com a revolução chinesa e cubana, 4) os acontecimentos mundiais que se iniciaram com o maio de 68 e terminaram com as revoluções iraniana, nicaragüense e o ascenso que provocou a formação do Solidariedade na Polônia em 80-81 e 5) uma onda mais circunscrita que levou à destruição dos regimes stalinistas, mas que foi derrotada pela imposição da restauração capitalista. Nos últimos anos estaríamos vivendo uma nova onda, liderada pelas lutas na América Latina e pela situação cada vez mais instável determinada pela segunda Intifada e pela resistência à ocupação no Iraque.

Além da descrição e caracterização desses processos, o livro revisita as diferentes formas de análise dos processos revolucionários entre os clássicos do marxismo, dividindo-os entre aqueles que davam a primazia absoluta para os fatores objetivos da crise do sistema e aqueles que com Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky ofereceram uma opção que apontava que nas situações revolucionárias eram decisivos os chamados fatores subjetivos, ou seja, a existência e a disposição de luta das classes revolucionárias e a existência, força e habilidade de suas direções políticas, o que em última análise explica boa parte do caráter das revoluções do século XX, bem como o fracasso e/ou degeneração de outras tantas. Essa oposição entre as chamadas correntes objetivistas e as subjetivistas atravessou os debates internos ao movimento socialista e tem uma grande atualidade nos dias de hoje, em que a debandada do PT torna água a necessidade da construção de um novo partido revolucionário para a classe trabalhadora que retire as lições do passado e não repita os erros de estratégia e organização do ciclo petista.

Para caracterizar as revoluções do pós-guerra do século passado utiliza-se de uma analogia entre elas e a primeira fase da revolução russa, a revolução de fevereiro. Ao contrário da revolução de outubro, essas revoluções eram socialistas não pela consciência de seus protagonistas e dirigentes, mas pelo inimigo que enfrentavam e pelas tarefas que tinham que resolver. Às vezes, até o proletariado faltava como mola propulsora,e suas direções eram limitadas na compreensão e objetivos e faltavam ou estavam insuficientemente desenvolvidos os organismos democráticos da classe trabalhadora presentes em Outubro. Com base nessa diferença precisa-se o conceito de crise revolucionária: Valério explica que há duas condições específicas para que possam eclodir revoluções como a de outubro: a crise do Estado capitalista precisa ter atingido uma dimensão suficientemente grave e global e as massas têm que ter decidido tomar o destino em suas mãos de forma resoluta, o que se manifesta na generalização dos organismos de tipo soviético. Assim precisa o arsenal teórico para que os processos revolucionários sejam reconhecidos e diferenciados quanto ao seu tipo.

Além disso, somos colocados frente a uma série de problemas teóricos para os quais o livro oferece algumas pistas importantes e nos convida à reflexão: como evoluiu a consciência das classes dominantes a partir da revolução de outubro e sua influência na maior dificuldade de uma revolução como a de outubro triunfe, como evoluíram e evoluirão as formas partido e movimento dentro da organização da classe trabalhadora e seus aliados, a defasagem entre as formas massivas de mobilizações e os níveis de organização que permanecem moleculares, por que nos últimos 30 anos não houve mais revoluções de tipo fevereiro que tenham expropriado a burguesia, o porquê da existência de revoluções de fevereiro recorrentes como um padrão nas últimas décadas, o porquê da ausência do protagonismo proletário com suas organizações ao estilo soviético e como evoluirá o atual período de “reformismo sem reformas”, em que os partidos reformistas não mais têm a possibilidade de ofereceram pequenas melhorias às massas como no passado.

Enfim, é um livro que pode ser visto como uma atualização das teses marxistas e trotskistas, mas que, ao mesmo tempo, procura encarar os fenômenos e polêmicas mais recentes no campo da esquerda e que atravessam as discussões sobre o caráter das revoluções atuais, dos sujeitos sociais e sobre a vigência do modelo derivado das revoluções do século XX, em particular o da revolução de outubro.

Waldo Mermelstein foi um dos fundadores, em 1974, do grupo trotkista Liga Operária, que deu origem à Convergência Socialista, principal corrente fundadora do PSTU.

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  • Resenha de Gilberto Maringoni sobre o livro `As Esquinas Perigosas da História`

  • As Esquinas Perigosas da História.
    Situações revolucionárias em perspectiva marxista
    de Valério Arcary
    242 páginas. 2004.
    Editora Xamã
    R$ 27

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