Perpetuando desaparecimentos: desaparecendo com a história

“Querer o esquecimento é a maneira
mais aguda de se recordar”

Gaston Bachelar

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ vem, publicamente, repudiar a decisão do governo federal de recorrer à Justiça no intuito de impedir que as Forças Armadas sejam obrigadas a abrir seus arquivos e fornecer informações sobre suas ações durante a Guerrilha do Araguaia.

Em 27 de agosto do corrente ano, o Advogado Geral da União, Dr. Álvaro Ribeiro da Costa, apresentou ao Tribunal Regional Federal de Brasília a apelação parcial contra a sentença da Juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal, assinada em 20 de junho do presente ano, que, dentre outras medidas, condenou a União a:

– quebra de sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia;

– informe onde estão sepultados os restos mortais dos mortos na Guerrilha do Araguaia, bem como proceder ao traslado das ossadas e o sepultamento destas em local a ser indicado pelos autores, fornecendo-lhes, ainda, as informações necessárias à lavratura das certidões de óbitos;

– apresentar todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha, incluído-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos dos guerrilheiros mortos, aos procedimentos de identificação dos guerrilheiros, as informações relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informações relativos à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas;

– proceder à rigorosa investigação, no prazo de 60 dias, no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhado das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia, devendo para tanto intimar a prestar depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independentes dos cargos ocupados à época (…).

No recurso, o governo federal nega o direito dos familiares e de toda a sociedade brasileira às informações sobre esse período da nossa história, limitando-se a acatar a determinação de localizar os restos mortais dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia – o que já consta da Lei 9.140/95, que, no entanto, atribuiu aos familiares os ônus das provas.

Com o argumento de que na petição inicial do processo contra a União não foram pedidos esclarecimentos sobre os aludidos fatos, o governo federal recorreu pedindo a anulação da sentença, a fim de invalidar a parte da decisão que determina depoimentos dos militares e a liberação de documentos das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia.

Cumpre lembrar que, em 19 de fevereiro de 1982, quando 22 familiares de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, em plena ditadura militar, ajuizaram uma ação contra a União, sabiam que, naquele momento, não havia reais possibilidades de solicitar esclarecimentos sobre as ações militares ocorridas durante a Guerrilha do Araguaia. Portanto, requereram esclarecimentos que permitissem a localização das sepulturas de seus familiares, certos de que tal medida somente seria efetivada com o conhecimento dos fatos ocorridos durante a chamada Guerrilha do Araguaia.

Em 1989, o Juiz Vicente Leal Araújo prolatou uma sentença em que julgava extinto o referido processo sem julgamento do mérito, com o fundamento de tais fatos nunca haviam acontecido, sendo “fantasias” dos familiares. Cumpre lembrar que, o acontecimento Guerrilha do Araguaia, foi ao longo dos anos 70, 80 e 90 peremptoriamente negados pelas Forças Armadas.

Assim, ao analisar essa ação do ponto de vista estritamente técnico, decorridos 21 anos de tramitação na Justiça, o governo federal usa um artifício para tentar encobrir o que de fato ocorre: a total falta de vontade política de esclarecer, de fato, os crimes de lesa-humanidade que foram cometidos pelas Forças Armadas na Guerrilha do Araguaia. Se assim não fosse, por que tanta resistência em contar essa história?

Tal procedimento, que consideramos abominável, acoberta todos aqueles que foram responsáveis por um dos mais cruéis episódios da nossa história recente. No momento atual, em que outros países latino-americanos, que também passaram por ditaduras sanguinárias, revogam “leis de anistia”, elaboradas pelos responsáveis pelas mortes, desaparecimentos e torturas de opositores políticos, para se auto-anistiarem, o Brasil caminha na contra-mão da história.

Cabe lembrar que o Presidente Lula, em recente visita ao Peru, em 25 de agosto de 2003, manifestou seu apoio à luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos peruanos pelo direito à verdade e à justiça. Ou seja, dois dias antes do governo federal recorrer para anular a sentença que representaria uma grande conquista dessa mesma luta em nosso país.

Consideramos um retrocesso na luta pelos direitos humanos, e para a construção de uma sociedade justa, plural e solidária, a decisão política do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva de recorrer da sentença da Juíza Solange Salgado.

O governo federal, além de perpetuar o sofrimento dos familiares e o desconhecimento da sociedade, mais uma vez perdeu a oportunidade de resolver definitivamente a questão dos desaparecidos políticos no Araguaia, contribuindo para fortalecer a impunidade em nosso país.

Solicitamos que mensagens de repúdio sejam encaminhadas à Presidência da República do Brasil.

Palácio do Planalto

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Pela Vida, pela Paz, Tortura Nunca Mais!

Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2003