Leia a entrevista exclusiva com James Petras

O professor e sociólogo James Petras foi uma das principais presenças no primeiro dia do Congresso Nacional de Trabalhadores. Antes de se apresentar à abertura solene, Petras concedeu uma entrevista exclusiva à Ciranda de informações do Conat, formada por jornalistas sindicais e de esquerda presentes na cobertura do evento, onde falou sobre a importância histórica da Conlutas, o governo Lula, as recentes mobilizações, entre outros temas.

Petras pertence a uma geração de intelectuais marxistas norte-americanos que, apesar da passagem dos anos, mantém-se no campo da esquerda. Apesar da idade avançada, Petras mostrou uma invejável vitalidade, não perdendo sequer uma oportunidade de conversar com os trabalhadores de diferentes regiões do país ou mesmo intervir energicamente nos debates do Conat.

É possível reconhecê-lo à distância. A inconfundível boina compõe, junto aos óculos escuros e o bigode, uma figura que nos remete a uma personalidade emblemática. Num tempo em que a dissimulação e o desencanto vicejam absolutos no plano das idéias, a honestidade intelectual e a inconteste esperança na classe trabalhadora de Petras constituem um verdadeiro alento à luta social.

Quais são suas expectativas para o Congresso Nacional de Trabalhadores? Você acha que ele expressa historicamente um processo de reorganização do movimento de massas?

Petras: Esta é uma fundação histórica porque está criando um pólo de organização para se opor ao “neo-coronelismo” neoliberal, frente à decadência de outros referenciais como a CUT, a UNE e demais organizações que apóiam Lula. Após a dispersão de forças e as lutas eleitorais já se passou a um universo superior. Com a massificação da Conlutas, me parece que agora as forças críticas e dissidentes têm já um ponto de referência para enfrentar o governo Lula. Creio que isso é muito importante pois, num primeiro momento desse governo, as forças opositoras não tinham capacidade de organizar uma resistência frontal, com conseqüências favoráveis – com alguma exceção aqui ou acolá –, mas acho que agora temos desde a base uma oposição social e um espaço para abrir uma discussão sobre uma oposição política. Isso poderia avançar na luta e preencher um grande vazio entre a direita, com Lula e os partidos do Congresso, e a grande massa, que exige reivindicações e lutas sociais.

Eu quero enfatizar isso. Entre a esquerda revolucionária aqui presente, que é muito conseqüente mas pequena, e a direita governamental, há uma massa de 70% da população que reivindica mudanças, não necessariamente revolucionárias. Perderam sua referência, mas tampouco estão dispostos a ir para a esquerda revolucionária. E, nesse espaço, é importante o papel que cumpre a Conlutas.

Como você avalia a degeneração do governo Lula e do PT?

Petras – É um processo. Em primeiro lugar, remonta a toda a trajetória do PT a partir do final dos anos 80, uma orientação eleitoral-institucional. Com os avanços eleitorais, ocupando cargos no governo, aprofundou as alianças com partidos burgueses e começam a negociar com os setores econômicos dominantes. Frente a isso, mantém-se pendurado entre seu apoio popular, dos trabalhadores urbanos e rurais, e as negociações que articulam com os partidos e frações burguesas.

Esse processo de tentar equilibrar essas duas coisas tem como resultado políticas social-democratas com um discurso radical. Esta correlação de forças se quebrou na preparação da campanha de 2002. Já era evidente que o PT era tão somente um partido da pequena burguesia, financiado pelos banqueiros. Para mim não foi nenhuma surpresa o que aconteceu após 2002.

A partir de 2002 o governo rompe esse arranjo social-democrata e passa a fazer uma política liberal pró-imperialista, descartando muitos setores da pequena burguesia, empregados, pequenos empresários e, mais que nada o campo, os sem-terras. Teve particularmente um abandono do setor público, de funcionários públicos.

A nova configuração de poder é um governo de direita, mas com respaldo operário. Não é algo raro. Na Inglaterra temos a história dos chamados “trabalhistas vermelhos” (“red tories”). Na Alemanha, os democratas-cristãos controlam setores importantes dos trabalhadores católicos. Na Itália, o mesmo. Então, falar de partido dos trabalhadores passa a equivaler a falar de um partido burguês. Não se define nenhuma direção, porque a política assistencialista é comum a governos da direita. Há muitos anos democratas-cristãos mantêm toda uma clientela no sul da Itália: na Sicília, Calábria e todos os lugares agrários no Sul.

Nisso, discordo um pouco do PSTU quando caracteriza este governo como de frente popular. Não é frente popular. Não é por ter apoio operário que se pode dizê-lo um governo de frente popular. É um governo burguês e pró-imperialista, em composição, em financiamento e em trajetória. Neste sentido, creio que vá aprofundar ainda mais a política direitista após as eleições. Depois do setor público, agora vai atacar o setor privado: na previdência, em salários, em programas sociais. Pense na imagem de como se corta um salame. Primeiro o setor público, depois outro setor e outro e mais outro.

Neste contexto, penso que devemos classificar o governo como uma grande vitória do imperialismo, cooptando as principais organizações de massas e reconvertendo-as em braços para aprofundar as privatizações e fortalecer o setor financeiro e exportador. Então, estamos nessa situação com o governo Lula: a reconversão de um partido de esquerda, social-democrata, em um governo da direita dura.

A Conlutas propõe uma crítica à estrutura sindical brasileira e, ao contrário das estruturas sindicais tradicionais, congrega sem-terras, sem-tetos, desempregados, aposentados etc. Compõe um pouco do que é a classe trabalhadora hoje em dia. Como você vê a possibilidade de uma alternativa propriamente política?

Petras – Primeiro, há uma enorme massa de trabalhadores em pequenas empresas, de menos de 20 operários, que serão severamente golpeados com a nova lei trabalhista de Lula [Super-Simples], de excluir todos os benefícios desse setor da pequena burguesia empresarial, “liberá-los” de todas essas obrigações. Isso vai afetar uma massa que ocupa quase 50% da mão-de-obra do país. Apesar de que isso não conta tanto no PIB.

A tarefa da Conlutas é organizar essa grande massa. Temos muita experiência de grande capacidade de luta desse setor [informais] agora nos EUA. Este é o setor mais combativo e avançado que chamam apenas de latino-americanos, mas que não são só latino-americanos, mas operários e imigrantes que estão excluídos dos sindicatos, excluídos da política, mas estão agora na vanguarda de grandes marchas, boicotes, greves etc. Na França, o grande setor da juventude sem emprego está encabeçando muitos dos mais contundentes combates. E ocorre o mesmo na Itália, ao Sul, com os desempregados se mobilizando, os piqueteiros na Argentina também etc. Porém, o que falta é organizar todos esse setores, no Brasil. Dizem que é difícil, são dispersos, vão se organizar em outros lugares. Creio que são apenas desculpas…

Segundo: estender aos setores metalúrgicos, sindicatos que estão em lutas internas, contestatórias. Eu creio que a grande oportunidade quando Lula começa a atacar a Previdência do setor privado é lutar contra os mega-pelegos deste setor.

Terceiro: aprofundar a consciência de classe em conjunto e, principalmente, no setor público, para que tenha uma visão mais de classe e menos corporativa. Formar escolas de classe para uma formação sindical e classista. E não são exatamente a mesma coisa. São essas as perspectivas com a ampliação da luta. Construindo e fortalecendo o bloco social pode-se abrir, nesse contexto, uma discussão política. É prematuro agora lançar palavras-de-ordem político-práticas, frente ao grande desafio da organização da luta e mobilização de massas. Há o risco de se cair no debate de pequenos setores, sem ter uma base social envolvida na mobilização.

Vamos falar um pouco da situação internacional. Aqui, na imprensa burguesa – e em alguns círculos socialistas também –, houve um grande impacto em torno ao anúncio da medida de nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia. Como você vê tudo isso? Um editorialista da Folha de S. Paulo chegou a dizer que se tratava da primeira medida de esquerda desde a queda do Muro de Berlim.

Petras – É muito positivo, porque reflete a grande pressão das massas. Há pesquisas que indicam que entre 80 e 90% dos bolivianos exigem a nacionalização. Frente a isso, temos um presidente, Evo Morales, que depende dessa massa para negociar com as multinacionais e conseguir melhores benefícios e contratos, com co-participação numa economia mista, porque Evo é um social-democrata. Precisa da massa para pressionar a burguesia por concessões.

As grandes empresas não deram bola a Evo: não levam a sério um índio, um demagogo, um populista, um indígena. Criaram uma situação impossível para ele. Evo precisa, então, “mostrar” a eles que tem força e que está disposto ao enfrentamento. Por um lado, lança a famosa nacionalização, mas junto com uma série de exigências que objetivam abertamente as negociações. Ou seja, são duas coisas. Inclusive a imprensa imperialista – o Financial Times, Wall Street Journal etc. – diz abertamente que esses atos são o alicerce para negociarem contratos. Agora, muito depende de se as empresas repensam sua intransigência e começam a negociar seriamente uma maior co-participação. Senão, vão forçar Evo a tomar medidas que ele não quer tomar. E, subseqüentemente, avançar sobre a nacionalização.

Enquanto isso, aqui, a imprensa burguesa está infectando o povo com um chauvinismo que poderia chegar, inclusive, a uma aliança política, econômica e quase militar contra a Bolívia. Uma tríplice aliança – norte-americana, brasileira e argentina – contra a Bolívia. Esse é o problema de todos os países imperialistas e sub-imperialistas: infectar a massa com o chauvinismo. Nós [os norte-americanos] sabemos há muitos anos a mesma coisa que vocês vivenciam agora. Há que se desenvolver uma política que explique que a empresa estatal não é pública, é privada. Acionistas, lucros, estrutura organizativa… A Petrobras deve privilegiar o funcionamento interno, investindo no país, expandindo serviços à população e, portanto, deve sacrificar o lucro para manter as taxas de gás a preços populares. Porque eles vão utilizar o argumento de que os impostos sobem lá, e se trata de manter o “valor-de-uso” [para justificar o chauvinismo].

Em todo o caso, a importância não reside em que se trata de um gesto de Evo, mas sim que mostra que a nacionalização está na ordem do dia, e não a privatização. Assim se mostra que há alternativas de organização econômica que não passam necessariamente pela privatização. Isso é o que mais preocupa Lula e, em menor medida, Kirchner. Volta o fenômeno da nacionalização como forma de fortalecer a economia doméstica. A globalização não é sobredeterminante sobre a política econômica, que é somente uma opção imperialista e não-necessária para o desenvolvimento histórico. Volta-se novamente a se enfrentar a disjuntiva: nacionalização versus privatização. Com isso não temos nenhum problema: apoiar incondicional e politicamente a nacionalização e, ao mesmo tempo, alertando sobre a posição centrista de Evo Morales – de montar essa grande mobilização em face à necessidade de conseguir concessões. E nós devemos apoiar a luta das massas, incondicionalmente.

Como você vê a situação atual da França e a luta contra a precarização do emprego no país?

Petras – A França mostra outra vez, 8% da mão-de-obra está sindicalizada. Mas todas as empresas que tenham mais ou menos 5% de sindicalizados chamam assembléias populares para discutir e decidir democraticamente. A vanguarda sindicalizada convoca democraticamente todos os operários a discutir os contratos precarizados que não só prejudicam os jovens mas, também, todos os trabalhadores, porque podem ser submetidos à terceirização. Hoje prejudicam aos jovens. Amanhã, aos operários mesmos. Esse conhecimento formou a famosa aliança juventude-estudantes-operários.

Temos que entender uma coisa. A burguesia e a imprensa de esquerda enfatizam o termo “estudantes”, mas os mais prejudicados são os jovens operários, secundaristas, etc. Esse é o setor mais explorado, com mais taxas de desemprego. Então, esses são os que jogam um importante papel vinculando seus pais empregados aos estudantes que estão preocupados com o emprego no mercado de trabalho. E creio que a dinâmica é parte da história e tradição do sindicalismo combativo na França, onde a hegemonia ideológica existente remete-se ao “obreirismo”, ou pelo menos ao social-protecionismo. Tudo isso influi para que seja inaceitável a política abertamente neoliberal. Não há na França, à diferença da Inglaterra, hegemonia liberal entre os trabalhadores. O que é hegemônico lá é o Estado de bem-estar social e – apesar dos ataques – segue sendo assim, uma referência.

Finalmente, como você enxerga a revolta dos trabalhadores imigrantes nos Estados Unidos e que relação pode ser feita com a situação internacional?

Há uma dialética que traz o antagonismo entre os trabalhadores da América Latina e a dominação imperialista para o interior do próprio império. A política neoliberal exigiu-lhes a imigração forçada – desemprego crônico, falência da assistência social, arrocho salarial etc. –, buscando melhores condições, contraditoriamente, no ventre da própria besta – lugar de origem de sua miséria.

Cerca de 5 milhões de imigrantes saíram às ruas entre 26 de março e o 1º de maio deste ano. Em mais de 50 anos de história, a AFL-CIO [confederação sindical norte-americana] sequer alcançou uma ínfima fração dos trabalhadores mobilizados. São uma força social que concentra uma experiência histórica de guerrilhas urbanas, combates anti-ditatoriais e lutas de massas contra o neoliberalismo – em especial do México, América Central e Caribe –, além de toda uma memória coletiva de super-exploração, discriminação e racismo; que se enfrenta hoje nos EUA à imposição de um futuro que não é mais do que um lastro de prisões, expulsões, demissões. Este passado é um legado importantíssimo em seu horizonte de lutas, assim como em seus métodos de ação, que pode ter sido dissimulado em função das condições aterradoras – mas de forma alguma foi esquecido.

O novo movimento social de trabalhadores imigrantes constitui uma luta política com independência de classe – uma nova etapa da luta de classes nas Américas Central e do Norte, depois de 50 anos de refluxo e sucessivas derrotas – dirigida contra governos municipais, estaduais e, em especial, o Estado. Tem como objetivo imediato a derrubada de uma legislação anti-imigrantes que busca ilegalizar suas existências e o direito mesmo à reprodução social, através de expulsões massivas e ameaças de detenção, além de expressar um arranjo de classe historicamente distinto do operariado tradicional do século XX. A ação direta é uma resposta contundente contra a falência histórica dos métodos legalistas e burocráticos de organizações “pró-latinos”, de composição social predominantemente pequeno-burguesa.

Mas há muito o adensamento das raízes sociais – forma de solidariedade de classe desconhecida nos EUA desde os anos 30 – implantado no centro imperialista sobrepôs esta situação; as decisões do Congresso apenas catalizaram este processo, libertado de suas amarras após superar a hierarquia sindical. Tudo isso de forma absolutamente independente do “abraço-de-urso” do Partido Democrata dos EUA, e com uma crescente ascendência sobre o movimento estudantil além de uma acertada articulação entre enfoque de raça e política de classe. Porém, a contra-ofensiva capitalista – e neofascista – não tardou em se manifestar: prisões em massa, cercamento de bairros, registros policiais domiciliares.

LEIA TAMBÉM

  • “América Central chega à América do Norte: a dialética do movimento social de trabalhadores imigrantes“, artigo de Petras, publicado no Rebelion.org (em espanhol)
  • Entrevista concedida ao jornal Opinião Socialista, em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial