Luciana Candido

No dia 28 de agosto de 1979, o então o último presidente da ditadura João Batista Figueiredo assinou a Lei da Anistia. Ficava, assim, “concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes”.

A lei foi resultado da mobilização social que pressionou uma ditadura já capenga, que enfrentava grandes manifestações estudantis. Em seguida, a classe trabalhadora voltou à cena com as greves operárias país afora.

O regime militar que promulgou a lei estava ciente de que a abertura era inevitável. Assim, os militares garantiram a impunidade para si. O “a todos quantos” incluía também os militares e o perdão para torturadores, estupradores e assassinos. Ao longo dos anos, a luta pela revisão da lei não parou.

É preciso revisar a lei e punir militares
Na semana passada, José Genoino, que participou dos governos do PT e foi assessor do Ministério da Defesa na gestão de Nelson Jobim durante o governo Lula, disse à Folha de S.Paulo que o melhor para o país foi não ter revisado a Lei da Anistia. Na mesma semana, um vídeo de Nelson Jobim de 2014 voltou a circular na internet. Nele, Jobim conta como atuou para impedir a revisão da Lei de anistia e diz que Genoino havia “trabalhado brutalmente no sentido de apaziguar os entendimentos”.

A posição de Genoino é uma vergonha, ainda mais para quem foi guerrilheiro e lutou contra a ditadura. O argumento dessa gente é nojento. Defendem que a lei foi um acordo reconhecido pelas instituições democráticas que deve ser respeitado. Pedir a revisão para punir os militares seria revanchismo. Vejamos.

“Lá pelas quatro horas da madrugada, Chael [Charles Schreider] saíram da sala onde se encontravam, visivelmente ensanguentados, inclusive no pênis, na orelha, ostentando cortes nas cabeças; (…) ouvia os gritos de Chael dizendo não saber de nada; (…) era uma sexta-feira, tendo Chael morrido no sábado.”

“Molharam seu corpo, aplicando consequentemente choques elétricos em todo o seu corpo, inclusive na vagina. (…) se achava grávida, semelhantes sevícias lhe provocaram aborto.”

Esses relatos foram extraídos do projeto Brasil: Nunca Mais, coordenado por D. Paulo Evaristo Arns. As pessoas que causaram esse sofrimento nunca foram punidas.

O argumento legal perde todo o valor diante desses depoimentos, inclusive porque estamos falando de uma lei que foi promulgada ainda no regime de exceção. É preciso revisar a Lei da Anistia, julgar e punir todos os agentes do Estado envolvidos. Não podemos esquecer os crimes cometidos pelos militares para que não se repitam jamais.

CONSEQUÊNCIAS
A realidade cobra a conta

Entre as ditaduras da América Latina, o Brasil é o único país que não puniu os torturadores. A Argentina, por exemplo, é considerada um modelo nesse tema. É por isso que hoje o discurso de Bolsonaro pega muito mal até entre os eleitores de Mauricio Macri, político argentino apoiado pelo presidente brasileiro.

O Brasil também é o único país do continente que ainda mantém uma polícia militar, uma das mais violentas do mundo, resquício da ditadura. A prática da tortura ainda existe nas periferias e atinge de forma mais bruta a população pobre e negra.

As grandes empresas que financiaram o regime militar não foram punidas. Trabalhadores foram demitidos, passaram fome, tiveram de mudar de estado. Quanto às empresas, continuam superexplorando e perseguindo.

Bolsonaro, uma sequela da ditadura

Este debate se torna especialmente necessário nos dias de hoje. A todo instante, Bolsonaro reafirma seu orgulho de ter sido parte de um regime criminoso. Ele presta homenagens ao general Carlos Alberto Brilhante Ustra, um monstro, único militar reconhecido como torturador, que morreu antes de ser punido.

Em julho, declarou publicamente que sabia como o pai de Fernando Santa Cruz, presidente da OAB, havia sido morto no período militar. Em seguida, colocou militares favoráveis à ditadura na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos.

Durante a campanha, falou que ia varrer os comunistas. No Nordeste, recentemente, disse que vai “varrer turma vermelha”. A turma vermelha pode ser qualquer um que ele achar que se opõe a ele.

Bolsonaro é uma pessoa desprezível. Com uma mão, tenta meter medo nos trabalhadores e nos pobres, permite o massacre de indígenas e de quilombolas; com a outra, privatiza tudo e entrega nossas riquezas ao imperialismo. A verdade é que ele é cruel com os de baixo, mas é submisso aos ricos e poderosos.

Nada disso pode ser visto com naturalidade – e não seria se o Estado brasileiro tivesse acertado as contas com a sua história. A luta por verdade, memória e reparação está na pauta do dia, e a justiça só será feita com a punição aos que cometeram crimes bárbaros contra os que hoje exigem reparação.