Redação

A pressão de movimentos sociais e até de celebridades obrigaram o Congresso Nacional a recuar da votação da Medida Provisória 910 sobre regularização fundiária, que perdeu sua validade no dia 19 de maio. A “MP da grilagem”, como ficou conhecida a medida apresentada por Bolsonaro, representava um enorme golpe nas populações camponesas e indígenas e deixava milhares de hectares de terras públicas à mercê de latifundiários e grileiros de terras.

O recuo do Congresso, porém, foi uma manobra. Dois dias depois, a MP foi substituída por um Projeto Lei apresentado pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade) que manteve a essência da medida anterior. O Projeto de Lei (PL) 2633 abre as terras públicas ao mercado privado e, segundo organizações indigenistas e ambientais, contribui para o aumento da violência contra as populações tradicionais, em especial na Amazônia, onde a maioria das terras públicas estão em poder de usufruto por parte das populações tradicionais, dos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros etc. Vejamos algumas das medidas propostas.

  • O projeto propõe a anistia a quem invadiu e desmatou terra pública até dezembro de 2018 (para a Amazônia) e maio de 2014 (para o restante do país) de forma ilegal.
  • Para a regularização, o projeto dispensa vistoria nos imóveis rurais de até 15 módulos fiscais. Ela poderá ser feira apenas com a declaração do suposto proprietário. Um dos instrumentos para isso é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), no qual proprietários fizeram a própria declaração dos seus imóveis para fins de regularização ambiental. É evidente que muitas dessas autodeclarações se sobrepuseram a terras públicas e terras indígenas. Para se ter uma ideia, a autodeclaração do CAR excedeu em 27,7% o tamanho territorial real do Brasil.
  • Concede título a quem já é proprietário de terras desde que a soma das áreas, incluindo a invadida, não ultrapasse 2.500 hectares. Ou seja, vai passar a terra pública a quem já é proprietário de diversos imóveis, o que só vai beneficiar grileiros.
  • Permite que áreas invadidas com até 1.650 hectares possam ser tituladas sem necessidade de vistoria. Essa proposta coloca em risco pequenos posseiros, que podem ver suas terras tituladas em nome de grandes grileiros.
  • Facilita a titulação de áreas que tiveram desmatamento ilegal. Para isso, basta assinar o Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), sem precisar de qualquer plano de recuperação ambiental.

DESMATAMENTO RECORDE
Amazônia: latifúndio não faz quarentena

O debate sobre o PL entra em pauta justamente quando os alertas de desmatamento na Floresta Amazônica bateram o recorde para o primeiro trimestre de 2020. Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2020, foram emitidos alertas para 796,08 quilômetros quadrados da Amazônia, um aumento de 51,45% em relação ao mesmo período de 2019, quando houve alerta para 525,63 quilômetros quadrados.

Não é comum um desmatamento dessa magnitude na Amazônia nesta época, pois os primeiros três meses do ano marcam o período de chuvas, o que dificulta relativamente a ação dos desmatadores. Mesmo assim, a destruição da floresta aumentou, estimulada pelas políticas de Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Recentemente, Salles fez uma “limpa” no Ibama e no ICMBio, afastando agentes que estavam na linha de frente do combate ao desmatamento em terras indígenas.

Além disso, uma aprovação do PL vai tornar mais grave a situação dos povos indígenas frente à pandemia, já que vai estimular mais e maiores invasões aos territórios indígenas. Serão centenas ou milhares de grileiro e latifundiários esperando pela próxima absolvição do Estado. Não por acaso, os números de mortes de lideranças indígenas em 2019 é o maior em pelo menos 11 anos segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A grande maioria das florestas amazônicas é terra devoluta. Por lá, o mecanismo de criação da propriedade privada da terra pode ser descrito assim: primeiro, ocorre o roubo dessas terras, seguido pelo desmatamento e, em seguida, pelas queimadas que começam nos meses seguintes, período de seca na região; depois, é só esperar o governo reconhecer a sua titulação, como agora o Congresso e Bolsonaro estão fazendo.

Pelo que os dados mostram, as queimadas de 2020 serão ainda maiores que as que vimos no ano passado. É provável que a fumaça escura que pairou sobre o Centro-Sul do Brasil em agosto de 2019 se torne ainda mais espessa e rotineira nos meses de julho e agosto. Serão as cinzas da floresta, convertidas em fuligem, caindo sobre as nossas cidades.