A nova dirigente do FMI, Christine Lagarde

Em 5 de julho, Christine Lagarde, até então Ministra das Finanças da França, assumiu a Diretoria Geral do Fundo Monetário Internacional. Apesar de chegar à chefia do FMI no exato momento em que o órgão enfrenta uma de suas maiores crises, grande parte das manchetes que noticiou a eleição deu destaque para outra questão: Lagarde se tornou a primeira mulher a comandar o órgão, em seus quase 70 anos de história.

Não que faltassem outros assuntos relevantes no que se refere à troca no comando do famigerado fundo. Primeiro, é notório que o FMI está tendo, no mínimo, dificuldades em administrar a crise européia, como as ruas de Atenas e praças de Madrid têm escancarado há tempos.

Segundo, a seriedade e a credibilidade do FMI, já bastante questionáveis, foram profundamente abaladas pela vexatória saída do antecessor de Lagarde, o também francês Dominique Strauss-Kahn, que foi obrigado a trocar seu gabinete no FMI pela prisão domiciliar, depois de pelo menos duas acusações de assédio sexual e estupro (veja abaixo).

No Fundo, nada de novo
Por ser uma mulher, Christine Lagarde está sendo apresentada como uma “novidade”, um “símbolo de renovação” ou de uma “nova postura” do FMI. Mas, a verdade é que, naquilo que realmente importa para a gente que a elegeu, Lagarde é uma velha conhecida e, há muito, uma das arquitetas dos planos de exploração que estão sendo aplicadas na Europa.

Um olhar mais atento para a realidade também no mostra a relevância que os porta-vozes da classe dominante mundial têm dado ao gênero da nova dirigente do malfadado órgão. Embora não seja exatamente uma novidade na atual fase do capitalismo, na qual o apelo à parceria com indivíduos que tenham origem, ou representem, setores que fujam do perfil dominante tem sido descaradamente utilizada para lidar com crises ou mascarar a manutenção dos velhos esquemas de poder.

Não faltam exemplos. Basta lembrar a chegada de um negro à presidência dos Estados Unidos (que, ainda, colocou uma mulher como seu braço direito, na Secretaria de Estado) ou os vários países que, hoje, são comandados por mulheres, como o Brasil (Dilma Roussef), a Alemanha (Ângela Merkel) e a Argentina (Cristina Kirchner). Todos eles, ilusoriamente, apresentados e “vendidos” como exemplos de uma “nova postura” da classe dominante.

No caso de Lagarde, a imagem que, talvez, tenha melhor representado esta ilusão de que seu gênero será um fator significativo, ou uma mudança de postura, nos rumos do FMI, foi uma charge publicada na “Folha de S. Paulo” do dia 30 de junho, pouco depois da eleição de Lagarde, na qual a letra final da sigla, há muito odiada, foi substituída por um (sexista e fútil) símbolo da “feminilidade”: um batom.

Mas, a verdade, é que, assim como nos demais casos, o fato de Lagarde ser uma mulher está longe de representar a chegada de um representante de setores historicamente oprimidos ao poder.

Lagarde, Obama, Dilma ou Merkel são apenas “máscaras” para os mandatários de sempre. Gente para quem raça ou gênero só importam na medida em que possam ser utilizadas como forma de ganhar a simpatia das mesmas pessoas que eles querem explorar. Gente que, passando por cima da opressão que, eventualmente, possam ter vivenciado, se tornaram aliados e comparsas daqueles, há séculos têm estado no centro do poder: um punhado de endinheirados, invariavelmente, homens, brancos e heterossexuais.

E se isto é verdade em relação a um negro do partido democrata ou uma ex-guerrilheira eleita sob uma sigla operária, no caso de Lagarde há muito menos espaço para dúvidas. Afinal, estamos falando de alguém que tem uma longa e sólida folha-corrida de serviços prestados ao Capital.

Uma mulher aliada e parceira dos poderosos
Em 2007, Lagarde chegou ao Ministério da Economia, Finanças, Indústria e Emprego francês (sob o governo do presidente Nicolas Sarkozy e do primeiro-ministro François Fillon), já se arvorando de seu gênero, ao tornar-se a primeira mulher a exercer tal cargo em um país do G-08 (os “grandões” da economia mundial).

Antes disto, ela já tinha sido Ministra da Agricultura e Pescas (2007) e Ministra do Comércio Exterior (2005-2007). Sempre como membro da “União por um Movimento Popular”, o partido de direita presidido por Nicolas Sarkozy, um dos principais articuladores de sua indicação para o FMI.

Além disso, Christine Lagarde há muito transita pelos corredores do capital internacional, principalmente como advogada empresarial. Por anos, por exemplo, viveu nos Estados Unidos, trabalhando em um dos maiores escritórios de advocacia do mundo, onde foi uma eficiente defensora dos interesses patronais.

Todos estes serviços já tinham sido reconhecidos pelos poderosos a quem Lagarde pôs seus conhecimentos ao dispor. Em 2009, duas “bíblias” do Capital, a revista “Forbes” e o “The Washington Street Journal”, a colocaram no 17.º lugar da lista das mulheres mais poderosas do mundo e na 5.ª posição entre as executivas européias mais bem sucedidas.

Foram com estas credenciais que, no dia 28 de junho, Lagarde – com o apoio entusiasmado da União Européia, da China, da Rússia e dos EUA – foi eleita, por consenso, pelos 24 membros do conselho executivo FMI (que representam os 187 países que participam do Fundo).

O “consenso” demonstrado na eleição (fundamental para transmitir uma imagem de solidez, num momento de crise) foi obtido atropelando ambições alimentadas pelos países emergentes (o Brasil, inclusive) que sonhavam em quebrar a hegemonia que os países europeus mantém sobre o controle do FMI desde 1944 (assim como, no mesmo período, o Banco Mundial só foi dirigido por norte-americanos).

A abrupta e vergonhosa saída de Strauss-Kahn havia aguçado a ilusória esperança dos gerentes do imperialismo no Terceiro Mundo em emplacarem no cargo o diretor do Banco Central mexicano, Agustin Carstens. Um plano que não resistiu aos fortíssimos gritos de protesto que ecoaram em Atenas e, certamente, pesaram na escolha de Lagarde. Afinal, ela tem sido uma das principais defensoras dos planos de austeridade na União Européia.

Uma nova “dama de ferro”?
Desde que seu nome começou a ser cogitado para o cargo – na época em que o nome de Strauss-Kahn era dado como certo na sucessão presidencial francesa – a própria Lagarde também tem se esmerado em lembrar sua condição enquanto mulher, utilizando-se de forma vergonhosa de um discurso “pseudo-feminista” para defender seus interesses.

Por exemplo, em uma entrevista ao jornal britânico “The Independent”, em 7 de fevereiro, a então ministra das Finanças fez questão de se apresentar como uma alternativa ao poder exatamente por ser mulher.

Em meio a bobagens – como dizer que gostaria de ter mais tempo para apreciar as “belas flores” de sua terra natal e para cozinhar e fazer compotas para sua família – Lagarde, de acordo com o jornal, declarou que “a presença de mulheres nos altos-níveis de comando é essencial”, já que “homens, deixados sozinhos, sempre fazem bagunça” .

Se isto não bastasse, foi sobre esta impressionante ótica que, na mesma entrevista, Lagarde “analisou” a crise que ainda sacode a Europa: “o colapso financeiro de 2008, pelo menos em parte, foi provocado pela forma agressiva, ambiciosa e cheia de testosterona que vigora em salas recheadas de alta-tecnologia e dominadas por homens”.

É inegável que os privilégios concedidos pela sociedade aos homens, brancos e heterossexuais os aproximam de tal forma das instâncias de poder que, consequentemente, acirram suas tendências à disputa. Contudo, isto não só tem pouquíssimo a ver com a crise econômica mundial, como Lagarde está a anos-luz de distância de significar “algo diferente” em relação a esta história.

Até mesmo, porque, ao aliar-se permanentemente aos poderosos, Lagarde assimilou e reproduz o que há de pior do comportamento e ideologia do “macho-dominante”: o autoritarismo e os “punhos de ferro” utilizados para fazer o que for necessário para garantir a manutenção dos lucros e os privilégios da elite.

Exatamente por isso, soa ainda mais hipócrita que, na mesma entrevista, a diretora geral do FMI ainda tenha afirmado que, baseada em sua própria experiência, “mulheres tendem a ser mais inclusivas, a agregarem mais e se preocuparem mais em cuidar das coisas”.

Na biografia recente de Lagarde não faltam exemplos do quanto isto não tem nada a ver com suas posições e práticas. Em 2005, quando era Ministra do Comércio, a nova diretora do FMI fez coro com seu colega Sarkozy (então Ministro do Interior), acusando os jovens franceses que estavam se rebelando na periferia de vandalismo e crimes diversos.

Para se ter uma idéia do quanto Lagarde é sintonizada com o capital, em um perfil feito pela sessão francesa da agência internacional de notícias Associated Press (AP) foi destacado que “no sempre cauteloso capitalismo francês, Lagarde é conhecida como ávida defensora do ‘livre-mercado’, ao ponto de que, quando era ministra do Comércio, chegou a excursionar pelas escolar para ensinar as crianças a não temerem os efeitos da globalização”.

Posturas que, como lembra a materia, lhes garantiram os apelidos de “a Ministra dos Ricos” ou “l’Américain” (“a norte-americana”, alcunha geralmente associada ao próprio Sarkozy, devido sua submissão às ordens de Washington).

Evidentemente, como todos e todas envolvidos nos grandes esquemas do Capital, também não faltam falcatruas na biografia de Lagarde. A mais conhecida delas tem a ver com sua atuação, como Ministra das Finanças, na defesa de Bernard Tapie, um empresário (amigo íntimo de Sarkozy) que se embolsou cerca de US$ 500 milhões em maracutaias envolvendo a Adidas e o governo francês.

Já no que se refere à crise européia a receita de Lagarde é exatamente a mesma de seus antecessores e parceiros: “austeridade total”, o que, no dicionário do Neoliberalismo, significa cortes de verbas e direitos.

Algo que Lagarde fez questão de deixar claríssimo em sua posse. Ao ser questionada pelo canal francês TF1, minutos depois de sua nomeação, sobre a “questão grega”, ela não titubeou: “Se há uma mensagem que eu deva enviar hoje sobre a Grécia é que a oposição tem que apoiar o partido do governo, num espírito de unidade nacional” , na aplicação do plano de cortes de gastos e aumento de impostos, que, para ela, são pré-requisitos para novos acordos com o FMI.

Por estas e outras, também não faltou, na cobertura da mídia, quem fizesse comparações entre Lagarde e a famigerada Margareth Thatcher que ficou conhecida como a “dama de ferro”. Thatcher foi primeira-ministra britânica, entre 1979 e 1990, e transformou a Inglaterra em um lamentável “campo de testes” para os planos neoliberais, promovendo um ataque violento e generalizado contra as organizações sindicais e populares, para impor um plano que resultou em desemprego, corte de verbas e direitos.

É evidente que as esperanças daqueles que elegeram Lagarde é que ela cumpra exatamente este mesmo papel. Contudo, para além dos desejos dos poderosos, existe o clamor das ruas de Atenas, de Madrid e de tantos outros cantos da Europa e do mundo.

Vozes que estão longe de serem caladas e que, com certeza, terão que se enfrentar com Lagarde para garantir seus direitos e barrar os ataques que, agora, virão com a chancela de uma mulher.