Capa do disco de 1959
Reprodução

Lançado recentemente no Brasil, Kind of Blue – o livro é um belíssimo tributo à magia de um dos discos mais importantes do jazz e, conseqüentemente, da música. Ashley Kahn, o autor desta obra suculenta, é um trabalhador e estudioso apaixonado do jazz já de longa data e isto empresta um calor de proximidade que elevou o livro a um status de quase culto, acessível também aos amantes de jazz menos iniciados. Culto mais do que merecido, diga-se de passagem.

Afinal, os adjetivos parecem faltar quando falamos do álbum de jazz mais vendido de todos os tempos, o álbum que “tem o poder de silenciar tudo”. Trata-se de uma obra totalmente original, no meio de um mundo rodeado de gênios e referências que, forçosamente, exercem seu enorme poder de atração. Isso não significa que Miles Davis negasse essas referências, pelo contrário. Mal saído da adolescência, ele já se arriscava a tocar ao lado do gigante do jazz Charlie Parker, um dos seus ídolos confessos, que morreu muito jovem, consumido pelas drogas.

Miles Davis, o compositor-músico-intérprete, era um homem diferente, para dizer o mínimo. Era um tanto incomum, no meio dos anos 50, para um negro da estatura de Miles, adotar uma postura intransigente, sem concessões e colocar seu nome em pé de igualdade com outros ícones como Nat King Cole, Sugar Ray Robinson e Sidney Poitier. Sua perspectiva de vida e seu desdém pela autoridade que cerceia a liberdade do povo poderiam tê-lo impedido de alçar os vôos estonteantes que ele realizou, mas seu talento e seu inconfundível estilo cool fizeram dele uma lenda. Avesso ao estereótipo, sempre bem vestido, elegante, culto e dono de si, Miles suscitava o melhor não só nos jazzistas, mas em toda a classe artística, como em Bob Dylan.

Ainda reconhecido como o ápice do moderno quatro décadas após sua gravação, Kind of Blue foi o álbum que inaugurou uma era, não apenas no jazz. Sua introdução etérea com baixo e piano é reconhecida universalmente.

Kind of Blue entrou para história como a obra-prima do jazz modal. Modal (ou sua locução sinônima “por escala”) quer dizer toda música ou todo sistema diatônico que obedece a um padrão de uma nota “tônica” central, ou seja, modal como quando só tocamos as teclas brancas do piano. Evidentemente, esse caminho nos leva rumo à simplicidade da música, e nisso cria-se uma estrutura de improviso que não exige vasto conhecimento de acordes e harmonias. Contudo, cria-se, por outro lado, uma maior responsabilidade da parte do músico que, sem uma progressão de acordes definida, tem de inventar na hora seu próprio padrão melódico. Vale dizer que Davis nunca deu as costas completamente à melodia e ao ritmo, com seu timbre e seu fraseado incrível, ao contrário do que se veria logo depois, com os “seguidores” ensinando a meninada a improvisar antes mesmo de ter um domínio razoável dos seus instrumentos.

A aura mítica que cerca Kind of Blue possui diversas histórias interessantes, e o livro está recheado delas, para nossa satisfação. Algumas são totalmente verdadeiras, outras nem tanto. Para começar, temos o famoso sexteto de Miles Davis: Bill Evans, John Coltrane, Cannonball Adderley, Paul Chambers, Jimmy Cobb e Winton Kelly. Ponto pacífico, manter um grupo como este por dois meses era quase um milagre, tendo em vista o calibre dos artistas envolvidos. Todos eles tiveram carreiras brilhantes, e, assim como Miles não ficou à sombra de Charlie Parker, não se podia esperar que John Coltrane, outro gênio, ficasse, por sua vez, na cola de Miles Davis. Coltrane seguiu seu caminho para se tornar, ele próprio, um ícone do jazz. Contudo, eles se reuniram e até excursionaram por vários meses, sob a batuta genial de Miles.

Já com relação a Bill Evans, um pianista branco admirado por Miles, mas visto com ressalvas no meio predominantemente negro do jazz, basta dizer que foi a relação entre eles que criou a faísca da qual resultou Kind of Blue. Aos ouvidos deles dois, Evans e Miles, o jazz e a música clássica eram duas nascentes desembocando no mesmo rio. Evans era um profundo conhecedor de Beethoven, Bach, Rachmaninoff, dentre tantos outros. O toque de Evans ao piano fez o álbum se revelar, um toque suave e profundo que, sem fugir do espectro do jazz, deu a ele vida e força para além das suas fronteiras conhecidas.

Uma lenda que cerca Kind of Blue diz que o álbum foi todo produzido de uma só vez, em um take único e sem cortes. O autor mostra que a história não foi bem assim. Para garantir um rendimento mínimo dos seus artistas exclusivos, os contratos-padrão das gravadoras exigiam pelo menos dois álbuns por ano. Mas, como muitos artistas ficavam atribulados fazendo shows ao redor do mundo, a Columbia, gravadora de Miles naquele período, estabeleceu como prática reservar faixas extras de uma sessão para usar em outra, caso faltasse material. No fim – numa coincidência que refletiu a unidade do clima e da ambientação do álbum -, as duas sessões de Kind of Blue produziram exatamente o necessário para o disco, nem mais nem menos.

Um destaque especial, num álbum de pérolas, fica por conta da faixa “So What”, não por acaso a mais tocada e copiada de todo o disco ao longo dos anos. Ela é tida por muitos como a faixa-título de Kind of Blue, com um memorável tema de abertura. “So What” quer dizer, literalmente, “E daí?”, que, dizem as boas e as más línguas, era a frase preferida do espírito indomável de Miles.

O próprio título, Kind of Blue, é um trocadilho engajado em referência especificamente a uma cantora gospel do Arkansas conhecida de Miles e, em um plano mais geral, à maioria dos negros norte-americanos que tem uma vida “blue” (triste). Assim “kind of blue” significaria algo como “meio triste”. Pois é, Miles, infelizmente ainda tem muita gente vivendo esta mesma vida “blue” até hoje.

Para terminar, cito um fato inusitado, quando analisado em perspectiva. Boa parte da fama de Miles Davis, e do álbum Kind of Blue em particular, se deve à televisão. À televisão da época, bem explicado, que, livre da segregação estilística das lojas e das rádios, rompeu fronteiras estabelecidas e deu a oportunidade do trompetista atingir uma imensa parcela que talvez nunca tivesse considerado passar os olhos pela seção de jazz. Com total liberdade artística, e sem dizer uma palavra sequer, o programa “The Sound of Miles Davis” foi uma das raríssimas aparições de Miles na telinha e teve o mesmo efeito que a participação de Elvis no “The Ed Sullivan Show” alguns anos antes, ou seja, ambos foram catapultados ao estrelato praticamente da noite para o dia. Infelizmente, mais uma vez, esse papel da TV de divulgador livre e isento da verdadeira cultura parece-nos hoje uma curiosa história antiga, se é que jamais aconteceu no Brasil.

O que é muito real, eterno mesmo, é o impacto e o prazer de ouvir Kind of Blue.

O DISCO:
Kind of Blue
Miles Davis
EUA, 1959
Faixas:
So What (9´25″)
Freddie Freeloader (9´49″)
Blue in Green (5´38″)
All Blues (11´46″)
Flamenco Sketches (9´26″)
Flamenco Sketches (Alternate Take) (9´32″)

O LIVRO
Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis
Ashley Kahn
Editora Barracuda, 2007