No dia 1º de setembro de 1969, em plena ditadura militar, entrava no ar o Jornal Nacional que ao longo dos seus 35 anos especializou-se em maquiar a realidade, especialmente quando os fatos ameaçavam os poderososPara entender o Jornal Nacional é preciso conhecer um pouco da história da Rede Globo. Em 1957, Roberto Marinho obteve sua primeira concessão de TV graças ao seu apoio ao presidente Juscelino Kubitscheck. No início dos anos 1960, quando empresas norte-americanas de comunicação perceberam a necessidade de ampliar seus negócios nos países periféricos, a jovem emissora começou a dar passos decisivos para garantir seu futuro sucesso. Em 1962, Roberto Marinho assinou um duvidoso contrato de colaboração com o grupo Time-Life, que lhe rendeu US$ 6 milhões em caixa.

Após apoiar o golpe militar em 1964, a Globo foi devidamente recompensada e a parceria com a Time-Life foi desfeita, fazendo com que Marinho assumisse o controle total da Rede, enquanto as poucas outras emissoras definhavam, afetadas por crises econômicas.

Neste momento, a ditadura desenvolvia um sistema nacional de telecomunicação, a partir do Ministério das Telecomunicações, cujo objetivo era “defender a segurança nacional” e desenvolver a “integração do país”. Programa esse, aliás, inspirado no Estado Novo, principalmente na famosa Rádio Nacional, amplamente utilizada pela ditadura Vargas.

Foi neste contexto que o Jornal Nacional entrou no ar como primeiro telejornal a atingir a maioria das capitais. Com a criação de inúmeras retransmissoras regionais, a TV Globo estendeu sua transmissão para praticamente todo o território brasileiro com um claro projeto: buscar transformar um povo heterogêneo, com profundas diferenças culturais e disperso em um enorme território, em “um só”, através da transmissão de notícias do regime e de sua ideologia em uma linguagem clara e mais acessível à população.

Colaboração com a ditadura

O Jornal Nacional se tornou um importante instrumento da ditadura para divulgar seus comunicados oficiais, ignorando a tortura, a censura, a corrupção e toda a selvageria do regime. O sanguinário general Médici declarou, certa vez, que se sentia feliz “porque no noticiário da TV Globo o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz. É como tomar um calmante após um dia de trabalho”.

O Jornal Nacional desenvolveu com maestria a capacidade de ocultar ou relatar com superficialidade os fatos mais importantes do país. Nem mesmo os jornalistas foram poupados. Quando o chefe de jornalismo da TV Cultura, Wladimir Herzog, foi preso e assassinado pela ditadura, a notícia de sua morte foi solenemente ignorada pela Globo. Também ficou célebre a história de um dos comícios da campanha das Diretas-Já, que foi anunciado como parte da comemoração do aniversário de São Paulo. Depois, o vice-presidente de operação da época, José Bonifácio Sobrinho, o Boni, “explicou” que a emissora atendeu aos pedidos dos militares para conter o entusiasmo da campanha das Diretas-Já.

Outro escândalo foi a tentativa de manipulação das eleições para o governo do Rio de Janeiro, em 1982, quando a Globo tentou dar como fato consumado a fraude da Proconsult e evitar a vitória de Leonel Brizola.

Durante os anos da ditadura, Roberto Marinho tornou-se um dos homens mais poderosos do país. Com o fim do regime, seu império continuou a crescer, mantendo o Jornal Nacional como o principal porta-voz das classes dominantes do país. Foi assim nas eleições presidenciais de 1989, quando a TV Globo não hesitou em favorecer Collor, manipulando a edição do debate televisivo entre ele e Lula.

À sombra do poder

Ao longo dos anos 1990, o Jornal Nacional passou por mudanças, lentas, graduais e um tanto superficiais. Depois de décadas, nos anos 1990, uma mulher assumiu a famosa bancada e foi necessário esperar a virada do século para ver um negro (esporadicamente) no comando do JN.

Do ponto de vista jornalístico, também ocorreram poucas mudanças. Os apresentadores que consagraram o jornal, como Cid Moreira, eram apenas reprodutores de uma pauta previamente decidida por diretores. O atual apresentador, William Bonner, também acumula o cargo de editor-chefe do jornal, assumindo responsabilidade pela pauta.

No entanto, as mudanças foram apenas de forma, para melhor se adaptar às inovações no telejornalismo e não perder espaço para outras emissoras. A superficialidade, as manipulações e a defesa dos interesses dos poderosos continuaram a todo vapor.

Ao longo de toda a década passada o Jornal Nacional foi um entusiasta dos planos neoliberais, das privatizações e dos ataques aos direitos dos trabalhadores. Mobilizações e lutas populares, quando não são substituídos por notícias fúteis, como o nascimento de filhos de celebridades, são pautados de maneira pejorativa ou “assustadora”, tentando colocar a sociedade contra os movimentos.

A Globo e o Jornal Nacional sempre caminharam à sombra do poder. Não seria diferente com Lula, que optou por governar para os ricos e poderosos. Antes da eleições, uma reunião com o alto comando da emissora selou o caminho para a garantia da vitória do PT. Depois, foram só demonstrações de apoio, começando com uma entrevista exclusiva logo após a vitória.

Um apoio que tem preço. A Globo possui uma grande dívida em dólares (cerca de R$ 6 bilhões) e será uma das maiores beneficiadas nas negociações com o BNDES, que pretende dar uma “ajudazinha” às empresas de comunicação em crise.

Falsificando a história

Tantas mentiras e manipulações não passam impunes. O “império” dos Marinho ficou marcado pela imagem de quem representa os poderosos, foi cúmplice da ditadura e rei da manipulação (uma história parcialmente contada no documentário Muito além do Cidadão Kane, produzido pela BBC de Londres, cuja distribuição no Brasil até hoje é vetada pelos Marinho). Como conseqüência, já foi alvo de campanhas populares, a ponto de seus profissionais muitas vezes serem expulsos de manifestações (ao som da palavra-de-ordem O povo não é bobo, fora Rede Globo!).

De alguns anos pra cá, o grupo tem investido para tentar mudar esta imagem e garantir sua liderança. As comemorações dos 35 anos do Jornal Nacional são parte desta empreitada, com inúmeros anúncios na programação e o lançamento de um livro institucional.

O livro traz a versão da empresa para a cobertura das Diretas-Já e para a edição dos debates de 1989. Em relação ao comício da Sé, o livro acompanha Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo, que em artigo no jornal O Globo, aposta na falta de memória coletiva e sustenta que a emissora noticiou o comício pelas Diretas. No caso da edição do debate entre Lula e Collor, o discurso oficial é igualmente ridículo. Admite que houve sim uma edição favorável a Collor, mas resgata a edição do Jornal Hoje, que teria sido favorável a Lula, para sustentar sua defesa.

O nome do livro da Globo, A notícia faz história, não poderia ser mais adequado. Os trabalhadores, que vêm lutando por gerações, sabem que, ao contrário, é a história que faz a notícia. Só não sabem como é que ela será (ou se será…) noticiada pelo Jornal Nacional.

* com Gustavo Sixel

Post author Gustavo Sixel
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