O que há de comum entre o documento do ministro da fazenda do governo lula e as receitas do novo Consenso de Washington para uma nova ‘geração’ de reformas

Todos os ativistas que queiram discutir seriamente o futuro do governo Lula devem ler o documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, lançado pelo ministro da Economia, Antônio Palocci. Ali estão um diagnóstico e uma estratégia para a economia brasileira para, no mínimo, até o final do governo Lula.

Não se trata simplesmente de um documento do ministro, mas do governo Lula. É público que Palocci não dá um passo sem o completo respaldo de Lula. E é por isso que tudo o que está escrito no documento vem sendo implementado elo governo.
Maria da Conceição Tavares, uma economista de grande prestígio que apóia incondicionalmente o governo, reagiu violentamente contra partes do documento de Palocci. Afirmou que Marcos Lisboa – um dos assessores do ministro que escreveu o texto – é da direção de um instituto (IETS) que recebeu U$ 250 mil do Banco Mundial para escrever propostas que “o Consenso de Washington quer que a gente aplique”. Segundo ela, a proposta de “focalização” dos serviços sociais, contida no texto, seria apenas a maneira de arrebentar Saúde, Educação e Previdência pública.
Este documento de Palocci, escrito por funcionários pagos pelo Banco Mundial, é uma aplicação direta do que está sendo chamado de Consenso de Washington II.

O primeiro Consenso de Washington foi escrito em 1990, quando foi sistematizada uma série de reformas a ser impostas em países submetidos ao imperialismo: privatizações, abertura dos mercados, flexibilização dos direitos trabalhistas, rigor fiscal, etc. Sua aplicação gerou um enorme retrocesso em todos os países, levando a crises gigantescas como na Argentina, assim como ataques brutais ao nível de vida, como no Brasil. Os planos Collor e Real são apenas aplicações deste “consenso”.

Após tantos desastres, John Williamson, autor do primeiro Consenso, e outros economistas (sempre financiados pelo FMI e Banco Mundial) voltam a propor uma nova receita. Para eles, as reformas não foram as responsáveis pelo desastre que se abateu. O problema é que “as reformas não foram aplicadas até o fim”. Propõem agora uma “segunda geração de reformas”, que está sendo chamada de Consenso de Washington II.

É necessário que se leia o documento de Palocci para ver para onde vai o governo Lula, mas também o texto de Williamson. O documento do ministro é uma tradução para o português do Consenso de Washington II.

O diagnóstico

Segundo Palocci, os problemas da economia brasileira não teriam origem na dominação imposta pelo capital estrangeiro, com o estrangulamento da dívida externa e interna, o que até então sempre foi dito pela esquerda e inclusive por todos os economistas do PT. O problema central da economia seria o déficit fiscal e a ausência de uma política clara pelos governos para atingir os superávits primários necessários, ou seja, para que sobre dinheiro depois de contabilizadas as receitas e os gastos do governo, sem contar gastos com o pagamento dos juros e parcelas das dívidas.

O FMI exige (e os governos brasileiros cumprem) que o governo dê lucro (superávit), arrecadando mais do que gasta, para poder pagar mais aos banqueiros credores. Para isso é preciso cortar gastos de saúde, educação, etc. O governo FHC garantiu altos superávits em seu governo (chegando a 3,9% em 2002) e Lula está aplicando um acordo com o FMI que assegura um superávit ainda maior, de 4,25% em 2003.

O que Palocci diz em seu documento, como no trecho a seguir, é que FHC errou ao não aplicar com mais força ainda as recomendações do FMI.

“A política de estabilização no período que se seguiu ao Plano Real, ancorada em políticas monetária e cambial, e com pouca atenção a metas fiscais, foi em parte responsável pela crise de 1999. Entre 1994 e 1998, a taxa média de crescimento dos gastos primários reais do governo foi de aproximadamente 5%, bem superior à taxa média de crescimento real do PIB observada no mesmo período, de 3,2%.

As medidas adotadas a partir de 1999 permitiram ao país evitar uma crise mais profunda, mas não resolveram o problema criado entre 1994 e 1998. O ajuste fiscal, o câmbio flutuante e as metas de inflação foram insuficientes para reverter a herança deixada pela dívida acumulada anteriormente”.

Ou seja, o grande problema do governo FHC não foi o plano neoliberal e sua submissão ao FMI, mas não ter conseguido um superávit fiscal maior. Palocci não deixa dúvidas:

“A importância do ajuste fiscal de longo prazo não pode ser subestimada. Caso o governo brasileiro tivesse realizado um superávit primário de 3,5% do PIB ao ano durante os últimos oito anos, a relação dívida/PIB hoje seria a metade da observada, mantidas todas as demais condições, inclusive as políticas cambial e monetária adotadas durante o período 1995-1998”.

Exatamente de acordo ao figurino do novo Consenso de Washington, o problema da economia, segundo Palocci, é que não se implementaram as reformas até o fim, não se impôs um superávit primário maior.

A estratégia

Coerente com este diagnóstico, o documento define o eixo do plano econômico do governo Lula:

“O novo governo tem como primeiro compromisso da política econômica a resolução dos graves problemas fiscais que caracterizam nossa história econômica, ou seja, a promoção de um ajuste definitivo das contas públicas… Essa mudança exige o ajuste sustentável das contas públicas, com gestão mais eficiente dos recursos disponíveis, assim como reformas estruturais que assegurem o equilíbrio de longo prazo do orçamento público e permitam a retomada do investimento do governo em infra-estrutura e expansão dos gastos sociais”.

O “primeiro compromisso” do governo é, coincidentemente, a primeira medida recomendada pelo novo Consenso de Washington. Para “prevenir crises”, a idéia é conseguir superávits altíssimos, maiores que na “primeira geração de reformas”, para garantir o pagamento da dívida aos bancos.

Coerente com este plano, a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2004 prevê o mesmo superávit fiscal de 4,25%. Para 2005 e 2006 o superávit previsto é o mesmo. Aqui se fala claro: não existe “transição” ou “Plano B”. Esta é a proposta para todo o governo Lula.

Alguns inocentes podem ter ficado animados com o que o governo falou da possibilidade de redução da meta de superávit, caso o PIB seja menor. No entanto esta é uma proposta do Consenso de Washington. No texto de Williamson se pode ler: “conseguir superávits no orçamento nas épocas da prosperidade para reduzir a dívida a níveis prudentes e abrir espaço para déficits estabilizadores… em épocas más”. (p. 7). Guido Mantega, ministro do Planejamento, deixou claro que, caso isso ocorra, este superávit não seria menor do que 3,75% (maior que em praticamente o de todo o governo FHC).

Uma ideologia a serviço dos banqueiros

Segundo o governo, a longo prazo, com o problema fiscal resolvido, se poderia voltar ao crescimento econômico e a investir mais nas questões sociais. Esta não é realmente uma novidade do governo Lula. Não só este governo assume as propostas de FHC como também sua ideologia.

Toda esta história é conhecida: “primeiro pôr em ordem o problema fiscal para depois poder crescer”. Isso justifica a reforma da Previdência, o corte dos gastos em Educação e Saúde, o arrocho do funcionalismo, a paralisia nos investimentos. Ou seja, coloca todo o país girando ao redor de pagar a dívida aos banqueiros externos e internos.

Os fatos desmontam esta ideologia. O aumento do déficit público não tem a ver com “gastos excessivos”, ou com o “rombo da Previdência” mas com o pagamento da própria dívida. Descontado o absurdo montante destinado ao pagamento das dívidas, sobrou dinheiro nas contas do governo FHC em praticamente todos os anos. A dívida interna foi feita para atrair capitais para seguir pagando a dívida externa. Tanto a interna quanto a externa são dívidas essencialmente com grandes bancos nacionais e internacionais. A dívida cresce para seguir pagando a dívida.

A solução proposta também não é nova. FHC afirmou o mesmo há anos: “vamos aumentar o superávit primário para equilibrar as contas”. Os fatos demonstraram o contrário: mesmo cortando os gastos sociais para dar mais dinheiro aos bancos, a dívida seguiu crescendo. Durante todo o governo FHC, a dívida interna pulou de R$ 118 bilhões para R$ 687 bi.

Mas, argumenta Palocci, o governo FHC errou ao não manter um superávit primário de 3,5%. Vejamos então o ano de 2002, em que FHC aumentou a taxa de superávit para 3,9%. Neste ano, a dívida interna passou de R$ 624,1 bilhões para R$ 687,3 bi.
Ou seja, o “momento” de “voltar a crescer”, “investir no social”, nunca chegará. Aliás, o objetivo real não é este, mas o de criar uma ideologia para que ano após ano se justifique o aumento da miséria do povo brasileiro para enriquecer mais ainda os banqueiros. Sempre existe a possibilidade de, como agora, chegar um novo governo e dizer que “o problema é que o corte foi menor do que o necessário. Agora vamos chegar ao paraíso, bastando afundar mais ainda no inferno pelos próximos anos”.

Incríveis “coincidências”

A coincidência do restante do documento de Palocci com o do Consenso de Washington II é impressionante. O texto do Consenso afirma: “Isto envolverá um fortalecimento maior da estrutura fiscal, e isso pode ser promovido ao completar o processo de reforma da Previdência, que já se iniciou em vários países” (pg.8). O documento do governo Lula faz uma defesa apaixonada da reforma da Previdência com o mesmo conteúdo. Junto com isto, o governo faz uma campanha nacional em defesa da reforma, recorrendo a mentiras como o déficit da Previdência. Como a própria Maria da Conceição Tavares afirmou: “As estatísticas (da Previdência) apresentadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social foram falsificadas”.

O novo Consenso exige novas reformas, a partir de um “desenvolvimento institucional”, com a autonomia dos Bancos Centrais. O texto do governo defende :
“Os instrumentos para estimular a produtividade e a participação do Brasil no comércio exterior compreendem as reformas institucionais – principalmente aquelas voltadas para a redução do custo do capital e a eliminação da cumulatividade dos tributos…” (pg.10). Depois propõe explicitamente a autonomia do Banco Central. Esta “autonomia” se completa com a entrega da direção dos bancos a funcionários de grandes bancos norte-americanos, como o atual presidente do BC, Henrique Meirelles, funcionário do BankBoston.

No mesmo sentido, os documentos defendem uma reforma no sistema bancário. Segundo Palocci, esta é necessária para facilitar a exigência de pagamento dos que se endividam com os bancos, e isto seria a principal medida para baixar os juros: “A principal questão reside na dificuldade em executar as garantias concedidas em caso de não pagamento dos empréstimos… Por essa razão, justificam-se medidas que desestimulem a inadimplência e permitam a rápida execução das garantias, em caso de não pagamento”. (p.13)

O texto do novo Consenso relaciona a flexibilização das leis trabalhistas como uma reforma da “primeira geração”, em que se avançou muito menos do que o necessário. O governo Lula já anunciou este como o próximo passo, depois das reformas da Previdência e da tributária.

Nova perspectiva “social”

Existe uma polêmica bastante conhecida em outros países da América Latina e que agora chega ao Brasil com o documento de Palocci. De um lado estão aqueles que defendem o serviço público, como a Saúde, Educação e Previdência, como um direito de todos. Do outro lado estão o Banco Mundial, o FMI e seus defensores. Segundo Maria da Conceição Tavares, alguns deles pagos a preço de ouro, como Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica.

O novo Consenso de Washington e o documento do governo Lula dizem em uníssono que as políticas sociais devem estar “focalizadas” sobre os setores mais pobres. Aqui o que está em discussão é a sobrevivência ou não da Educação e Saúde públicas. Cortam as verbas para a educação e saúde, depois dizem “como faltam verbas, vamos acabar com o serviço público para todos e, em troca, fazemos uns programas sociais compensatórios para os mais miseráveis.”

Na verdade, por trás disso está o interesse das empresas em completar a privatização da Saúde e Educação, com um golpe mortal no serviço público. Segundo Maria da Conceição Tavares: “O Chile e a Argentina tinham historicamente os melhores programas de Saúde e Educação e cobertura geral de políticas universais. Desmantelaram e obrigaram a fazer a focalização”.

A preparação para a ALCA

Na verdade, a “segunda geração das reformas” defendida no novo Consenso e no documento do governo Lula, é a preparação para a ALCA. Trata-se de iniciar já, como uma “iniciativa brasileira”, o que será discutido como parte das negociações da ALCA.

O texto do Consenso de Washington sugere que a ALCA pode ser a instituição que controle diretamente os governos nacionais, para assegurar que eles sigam esta cartilha. O documento de Palocci faz a defesa estratégica de “uma maior abertura da economia brasileira”. No dia 15, em viagem a Washington, o ministro foi bem mais claro, declarando ao jornal O Estado de São Paulo que a ALCA, que significará a completa subordinação do Brasil aos EUA, “será produtiva no longo prazo”.

A abertura completa de nossa economia as empresas norte-americanas vai falir milhares de empresas e duplicar ou triplicar o desemprego. As empresas estrangeiras de assistência médica e Educação terão os mesmos direitos de financiamento que um hospital ou uma universidade públicas, o que levará a falência em pouco tempo da Saúde e da Educação.

O que foi definido na última reunião dos governos que negociam a ALCA é que os dois presidentes que conduzirão todo o processo serão Bush e Lula. A ironia da história é que cabe a um presidente vindo da esquerda o papel mais entreguista de toda a nossa história.

Adeus às ilusões

O documento de Palocci deveria ser estudado em particular por aqueles que ainda tem ilusões ou esperanças no governo Lula.
Aqueles que acreditam que “as medidas duras atuais são necessárias pela herança de FHC”, e que “estamos em uma transição para um outro plano, não neoliberal”, podem ver que as medidas atuais são só o início. Vem aí a reforma trabalhista, o ataque geral a educação e saúde públicas. Poderão ver também que existe realmente uma transição, mas por dentro do neoliberalismo: a segunda geração de reformas é uma transição sim, mas para a ALCA.

Os que acreditam que pode existir um “Plano B” do governo, estão sendo obrigados a ver um plano a longo prazo, que abarca o conjunto do governo de Lula, com um superávit primário já definido até 2006. Hoje mesmo podem comprovar isso com o peso das reformas em discussão. Ninguém que se dispusesse a um “plano B” completamente diferente, se lançaria a fazer uma reforma da Previdência que ataca direitos históricos. Tampouco defenderia a autonomia do Banco Central, que depois impediria completamente o “Plano B”.

A social-democracia européia conseguiu o que o PT está se dispondo a fazer aqui. As reformas neoliberais foram impostas em boa parte da Europa na década de 80 por governos sociais-democratas. Os governos de direita não o conseguiriam, por não ter base suficiente entre os trabalhadores, como tinha, por exemplo, o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol). O PT está impondo medidas muito duras, que nem FHC conseguiu fazer.

As organizações majoritárias da esquerda petista falam: “apesar de tudo é preciso apoiar este governo, porque a sua derrota será a derrota de toda a esquerda”. Caso aceitarmos isso, teremos de aceitar as piores derrotas que os trabalhadores já sofreram no país desde a ditadura militar. Nós, ao contrário, achamos que é preciso que o movimento de massas derrote o governo, começando por seu projeto para a Previdência.

Para avançar neste sentido a esquerda petista, junto conosco, deveria exigir que Lula e o PT expulsassem já do governo os ministros da burguesia, e rompessem as negociações da ALCA e os acordos com o FMI.

Textos para leitura

‘Política Econômica e Reformas Estuturais’, de Antônio Palocci (.doc- 1.76mb)

‘Depois do Consenso de Washington’, de Williamson (.pdf – 231kb)

Post author Eduardo Almeida Neto,
da Direção Nacional do PSTU
Publication Date