O golpe de 1964 foi patrocinado por militares, empresários, políticos e pelos Estados Unidos para aplacar a grande efervescência das lutas que brotavam entre operários camponeses e soldados.

O maior problema quando se discute a ditadura militar no Brasil (1964-1985) é o total desconhecimento que a grande massa da população brasileira tem daquele período. Toda a verdade sobre a ditadura, da tortura, assassinatos de opositores à corrupção das grandes obras faraônicas, foi para debaixo do tapete. Toda a história de rebeliões operárias, camponesas e de soldados que antecederam o golpe de 1964 caiu no mais completo esquecimento. Aliás, foram exatamente esses setores que foram alvos primeiros da repressão, como veremos adiante.

Na Argentina, Uruguai ou Chile, que também viveram sanguinárias ditaduras militares nos anos 1970, generais, ditadores e torturadores foram julgados e presos pelos seus crimes. Nesses países, esse período é visto com horror por toda população. E se algum presidente por lá fizer as declarações de Jair Bolsonaro, elogiando torturadores ou determinando que as Forças Armadas façam celebrações na data do golpe militar, provocaria um escândalo que poderia resultar até em um impeachment.

No Brasil, infelizmente, a história é diferente. Por aqui as elites pactuaram para ocultar os crimes daquele período. A Lei de Anistia promulgada em 1979 por João Baptista Figueiredo, o último general que ocupou o poder, anistiou todo e qualquer cidadão que pudesse ser considerado criminoso no período militar, incluindo aí oficiais e torturadores.

Ao lado disso, nenhum governo que se seguiu ao processo de redemocratização, mesmo os do PT, atuou para abrir os arquivos da ditadura. O resultado é que os crimes daquele período não foram expiados, a barbárie não veio ao conhecimento do grande público e as Forças Armadas e sua cúpula saíram incólumes em meio a tantos crimes e sangue. Se sabemos da responsabilidade dos presidentes/generais por todo o horror daquele regime é graças a abertura dos arquivos do governo norte-americano.

Uma das versões mais usadas por os defensores da ditadura é o argumento de que o golpe foi necessário para acabar com uma suposta “ameaça comunista” e de que a tortura foi empregada num contexto de guerra contra grupos guerrilheiros que tentavam “impor uma ditadura vermelha”. É o que Bolsonaro e Mourão dizem sempre. Ambos jogam com a ignorância do povo sobre aquele período.

Golpe serviu para derrotar lutas na cidade e no campo
O golpe (iniciado em  31 de março, mas consumado em 1° de abril de 1964) foi patrocinado por militares, empresários, políticos de oposição à João Goulart, o Jango, e pelos Estados Unidos. O motivo era aplacar a grande efervescência das lutas que brotavam entre operários, camponeses e soldados.

Mobilização das Ligas Camponesas em 1963.

Naquele momento, a classe operária lutava e na maioria das vezes conseguia arrancar dos patrões aumentos salariais e direitos. Entre 1961 e 1964 quadruplicou o número de greves econômicas nos serviços e na indústria. Os grevistas chegaram a 5,6 milhões, caracterizando o maior ascenso grevista da história do país até então. Em outubro de 1963 ocorreu uma grande greve, conhecida como a greve dos 700 mil, resultado da unificação de diversas campanhas salariais de diversos setores operários.

Trabalhadores do porto de santos aprisionados no navio Raul Soares dias depois do golpe.

No campo, as Ligas Camponesas organizavam os trabalhadores rurais em sindicatos, sobretudo no Nordeste. Forçavam os coronéis e grandes proprietários de terras a respeitar os direitos trabalhistas e conquistavam a reforma agrária com a sua luta.

A luta dos soldados e sargentos
É muito comum a versão de que o golpe foi um movimento de todos os militares contra o suposto avanço do comunismo. Nada mais falso. Nas Forças Armadas, muitos solados e oficiais de baixa patente apoiavam as lutas operárias e camponesas. Também começavam a participar da vida política do país, algo que era (e ainda é) exclusivo apenas aos grandes comandantes.

Revolta dos marinheiros no Rio de Janeiro.

Em 1962, os sargentos do então estado da Guanabara, São Paulo e Rio Grande do Sul indicaram candidatos próprios para concorrer à Câmara Federal, às Assembleias Legislativas e às Câmaras de Vereadores. Alguns foram eleitos, mas a Constituição da época (como a de hoje) impediu que eles pudessem assumir seus mandatos. Revoltados, soldados e sargentos se tomaram vários prédios, rádios e instalações militares. Prenderam até um ministro do STF na ocasião. O levante ficou conhecido como a “Revolta dos Sargentos” e foi sufocada um dia depois.

Outra revolta militar eclodiu em 1964, dias antes do golpe. A Revolta dos Marinheiros começou depois que o alto-comando da Marinha expediu mandatos de prisão para os marinheiros que participavam de um encontro da sua associação. Os militares se amotinaram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro e exigiram o reconhecimento de sua associação, a melhoria da alimentação e que nenhuma medida punitiva fosse tomada contra os que ali estavam. Para ironia da história, o velho marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, estava no sindicato realizando uma palestra para os marinheiros. Fuzileiros navais foram enviados para reprimir a revolta, mas se juntam aos amotinados.

Tudo isso foi tremendamente assustador para a burguesia e o imperialismo norte-americano. A ruptura na cadeia de comando nas Forças Armadas foi a gota d’água para o golpe. 

Após o golpe, os militares suspenderem as eleições e cassaram mandatos dos políticos de oposição. Mesmo os políticos que apoiaram o levante, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo, tiveram seus direitos políticos cassados . A ditadura duraria 21 anos.

Primeiros alvos da repressão militar
O primeiro alvo do golpe foram os trabalhadores pobres que estavam lutando por seus direitos. A ditadura acabou com as liberdades democráticas, como o direito de greve, fechou sindicatos, impôs a censura, prisões, tortura e morte para os seus opositores.

Um exemplo foi a repressão que se abateu na baixada santista. Após o golpe os combativos sindicatos dos trabalhadores do porto de Santos sofreram intervenção e suas combativas lideranças foram aprisionadas e torturadas num navio prisão da marinha. Detalhe: os sindicalistas ficaram confinados por mais de um mês nos porões inundados da embarcação.

Em pouco tempo, as conquistas históricas da categoria foram dizimadas. Todos os direitos conquistados pela categoria foram revogados. Até mesmo um acordo sobre pagamento de horas extras de 1937 foi extinto. Como resultado, a Companhia Docas, que administrava o porto, obteve um aumento extraordinário dos lucros, enquanto os trabalhadores do porto trabalhavam de cuecas, seminus, sem direitos e em silêncio.

No campo, líderes das Ligas Camponesas foram caçados e assassinados por militares e jagunços. Nas Forças Armadas, soldados e suboficiais foram presos. Levantamento da Comissão da Verdade mostra que mais de 6.591 oficiais, suboficiais e soldados foram presos, torturados ou expulsos das Forças Amaradas. Um verdadeiro expurgo para eliminar aqueles que estavam ao lado das lutas do povo.

Repressão e morte
A cúpula das Forças Armadas e Bolsonaro afirmam que poucos morreram em decorrência da repressão da ditadura. Tal versão já foi até defendida pelo jornal Folha de S.Paulo que apelidou o regime militar de “ditabranda”. Nada mais falso. Essa versão tenta apenas diminuir ou relativizar a crueldade e o caráter criminoso do que aconteceu naquele período. Seu objetivo é esconder e mascarar responsabilidades e a lógica que embalou o golpe.

Os mortos e desaparecidos na ditadura vão muito mais além do que 500 ou 600 pessoas reconhecidas oficialmente. Só no campo brasileiro, 1.196 camponeses foram assassinados pela ditadura, segundo um levantamento de 2012 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e reiterado no relatório final da Comissão Camponesa da Verdade em 2014.

A ditadura promoveu um genocídio contra as populações indígenas, especialmente na Amazônia. Segundo a Comissão da Verdade, durante a ditadura ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Entre os índios mortos estão, 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT). Esse extermínio generalizado foi produto da expansão capitalista para a Amazônia promovido pela ditadura, marcada pelo avanço da pecuária, pela abertura de estradas como a Transamazônica e de novas jazidas minerais como Carajás (PA).

Contudo, todos esses números podem ser ainda maiores. Afinal, os arquivos da ditadura não foram abertos e muito pouco sabemos sobre o que se passou nos rincões do Brasil naquele período.

Guerrilha e ditadura
Como se pode ver a ditadura não enfrentou só pequenos grupos guerrilheiros, como dizem os espertalhões de Bolsonaro e cia. A guerrilha só surgiu em 1969, após o decreto do Ato Institucional 5 (AI-5), no governo do general Costa e Silva (1967-69). Dalí por diante foi revelada a face mais truculenta do regime. O Congresso foi fechado; direitos civis e políticos, inclusive o habeas corpus, foram suspensos. Centenas de lideranças sociais e políticos foram presas por esquadrões da repressão e torturadas.

Em resposta, uma parte da esquerda foi para a luta armada. Apesar de consideramos este método de luta equivocado, pois resultou no extermínio de centenas de valorosos lutadores, esses guerrilheiros devem ser tratados como heróis. Sua luta foi pela derrubada do odioso regime de morte e repressão. E entregaram suas vidas a uma luta absolutamente desigual, onde o aparato repressivo do Estado era infinitamente superior aos pequenos e mal armados grupos de guerrilha.

Passar a história a limpo
Ao não se passar a história a limpo, a extrema direita levantou a cabeça para defender a ditadura militar. Mais do que nunca é preciso abrir todos os arquivos da ditadura, revogar a Lei de Anistia e exigir punição exemplar para agentes do Estado que cometem crimes como prisões arbitrárias e torturas. Isso tem a ver com garantir o presente e o futuro, pois a investigação e punição intimidaria qualquer funcionário do Estado a cometer crimes e arbitrariedade e faria a população repudiar qualquer regime de exceção. Punir os repressores do passado é fundamental para lutar contra os repressores de hoje e de amanhã, uma necessidade para defender as organizações operárias e populares.