Bowie durante turnê de Diamond Dogs em 1974
Foto: Terry O'Neil

David Bowie morre de câncer aos 69 anos deixando novo disco

“E eu acho que minha nave espacial sabe para onde ir / Diga pra minha mulher que eu a amo muito, ela sabe.” Os versos de “Space Oddity” poderiam muito bem ser a despedida de Bowie. Pareceu planejado: fez 69 anos na sexta-feira, 8, lançou mais um disco, Blackstar, incrivelmente novo, e morreu. Uma boa despedida para quem surpreendeu a vida inteira.
 
Controverso, e gostemos ou não, é inegável que Bowie é um dos artistas mais importantes do século 20 e desse início de século 21. Ele revolucionou a música – inclusive subvertendo sua própria obra –, mas não foi só isso. Foi um vanguardista do design, ator, produtor  e mestre das performances.
 
O garoto do quarto
David Robert Jones nasceu em 8 de janeiro de 1947 em Londres. Era o período pós-guerra. Nos subúrbios da Grã-Bretanha, crescia a classe média. Ao contrário da associação que fazemos hoje de subúrbio com periferia carente, a região suburbana desse período representava um novo mercado para a especulação imobiliária. Mansões vitorianas se viam de frente a fileiras de casas destinadas a trabalhadores ferroviários. Foi numa destas últimas que Bowie cresceu. O pai trabalhava numa instituição de caridade para menores, e a mãe era garçonete.
 
Naquela época, espalhava-se pelo mundo o modo de vida americano. Na Grã-Bretanha, foi assimilado com rapidez. Era uma severa imposição de costumes, de hábitos de consumo e culturais que Bowie rejeitou. Essa recusa o levaria a certo isolamento. Era visto como esquisito por outros garotos.
 
“Eu queria ser um artista fantástico, ver as cores, ouvir a música, mas tudo o que eles queriam era me por para baixo. Eu cresci me sentindo desestimulado e pensando: ‘eles não vão me derrotar’. Eu tinha de fugir para o meu quarto”, disse certa vez a Kevin Can, autor do livro Any Day Now. E, segundo ele mesmo, carregou o quarto para o resto da vida.
 
Foi lá, naquele quarto de subúrbio, que sua imaginação percorreu os mais diversos mundos. Não sabemos o que se passava em sua cabeça, mas, certamente, era um turbilhão, confirmado pelo resultado em suas obras. Foi onde começou a trabalhar, a criar, a tocar sax.
 
O homem das estrelas
Após abandonar um emprego numa agência de publicidade – de onde levou uma ampla experiência em marketing que o ajudaria a vender seu trabalho – lançou “Liza Jane” (1964), seu primeiro single, faixa do disco David Bowie, um dos seus 26 álbuns. Passou, então, a dedicar-se exclusiva e profundamente à música, “instilando em mim uma ideia de experimentalismo, de verdadeiro modernismo”. Porém, depois de “Liza Janes”, ele ainda teria cinco árduos anos pela frente tocando em cafés e com trabalhos incertos. Foi só em 1969 que estourou com “Space Oddity”. 
 
Este tempo permitiu a Bowie tomar contato com pensadores teatro, como Stanilavski, Artaud e Brooke. Em 1967, conheceu Lindsay Kemp, dançarino e ator, que o ensinaria a “liberar o corpo”, nas palavras de Kemp. Ali, Bowie teve contato com vários elementos que se refletiriam em seu trabalho para o resto de sua vida: a maquiagem, o figurino, a performance de palco e toda a expressão cênica.
 
“Space Oddity” era faixa do disco David Bowie, que só foi rebatizado com o nome da música em 1972. Surgiu no clima da corrida espacial e de novas descobertas científicas “Controle em terra para major Tom [‘Ground control to Major Tom’] / Tome suas pílulas de proteínas e coloque seu capacete”. O álbum foi produzido em parceria com Tony Visconti, com quem esteve até seu último disco, Blackstar, lançado no início de 2016.
 
Em 1970, veio The Man Who Sold the World, com todas as canções escritas e compostas por Bowie. Este álbum teve quatro lançamentos entre 1970 e 1972: o original, nos Estados Unidos; em 1971, no Reino Unido; também em 1971 na Alemanha; e em 1972 teve seu lançamento mundial. Na capa da edição mundial, segunda versão da primeira, na verdade, começava a surgir Ziggy Stardust, seu mais famoso personagem.
 
Os anos 1970 foram de intensa produção, gravando praticamente um disco por ano. Ainda em 1971, lançou Hunky Dory. Em 1972, Ziggy Stardust finalmente desce a terra em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Ziggy era um astro do rock bissexual alienígena e seria o alterego de Bowie.
 
Foi por essa época que Bowie se declarou gay em 1972. Em 1976, disse que era bissexual. Tornou-se também num ícone dos LGBTs, que o viram como uma forma de visibilidade. Infelizmente, Bowie decepcionaria seus fãs mais tarde, nos anos 1980, dizendo-se arrependido da declaração.
 
Em 1974, lançou Young Americans, com forte influência da black music. As músicas deste disco são polêmicas, com críticas bastante contundentes aos Estados Unidos, país onde, contraditoriamente, o álbum foi muito bem recebido. A música “Young Americans” Foi tema do filme Dogville, de Lars von Trier. E a única trilha do filme e rola nos créditos finais enquanto são mostradas imagens da miséria norte-americana.
 
Em 1977, Bowie lança Heroes, sendo acusado de jogar a guitarra para o espaço e assumir o pop eletrônico. “Heroes” se transformou em hino de uma geração. Foi também trilha do filme “Christiane F., 13 anos, Drogada e Prostituída”, adaptação do livro homônimo. A história se passa na Berlim da primeira metade dos anos 1970, a mesma Berlim que viria a se tornar a casa de Bowie entre 1976 e 1979. Essa mudança para a Alemanha trouxe mais uma transformação estética e musical para o artista.
 
Bowie continuou produzindo nos anos 1980 e 90, mas com menor intensidade. São dessa época hits como “Ashes to Ashes” (Scary Monsters… and Super Creeps, 1980), “Modern Love” e “Let’s Dance” (Let’s Dance, 1984) entre outros.
 
Em 1983, numa infeliz declaração à revista Rolling Stone, voltou atrás sobre sua sexualidade: “O maior erro que já cometi foi ter afirmado àquele jornalista que era bissexual. (…) Jesus, eu era tão jovem naquela época. Estava experimentando”. Não só decepcionou seus fãs como deu argumentos que pudessem justificar a homofobia.
 
Em 2002, impactado pelos ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas nos Estados Unidos, lança Heathen. Uma das canções, “Slow Burn”, apresenta uma cena que veríamos pelos anos que se seguiram a 2001: “Aqui nós viveremos / Nesta terrível cidade / Onde o preço por nossas vidas / Vai espremê-las como um punho cerrado / E as paredes terão olhos / E as portas terão ouvidos / Mas nós dançaremos no escuro / E eles brincarão com nossas vidas”.
 

Entre 2003 e 2013, após lançar Reality, Bowie se afastou da cena musical por problemas graves de saúde. Em 2013, voltou com The Next Day, muito bem recebido pela crítica e pelo público. 
 
Na última sexta-feira, 8, presenteou o público com Blackstar. Mal deu tempo de ouvir duas das sete faixas, disponibilizadas pelo músico, “Blackstar” e “Lazarus”. Bowie nos deixou dois dias depois. Nessas faixas, ele introduz elementos de jazz, hip-hop e música eletrônica, mostrando mais uma vez o camaleão que é.
 
Bowie foi criticado por ter assimilado a pop arte crescente daquele período. Talvez mais hoje do que na época. A verdade, porém, é que isso não o impediu de transgredir e subverter a cultura de massas então dominante. Toda sua obra é uma defesa da liberdade de expressão e do papel de artista, corroborando a ideia de “toda licença em arte”.
 
Só por chegar às vésperas dos 70 anos na ativa, experimentando, criando, se transformando e transgredindo, ele já merece respeito e admiração. Diferentemente de outros artistas que voltam anos depois requentando trabalhos antigos, Bowie voltou criando e transgredindo a própria obra. Mostrou que é um artista de seus varios tempos e que conseguiu ser genial ao refletir as muitas realidades que viveu.
 

 

SITE OFICIAL: www.davidbowie.com
 
+ NO CINEMA:
O Homem que Caiu na Terra
Labirinto 
Fome de Viver
 
+ NO TEATRO:
O Homem Elefante
Lazarus (trilha sonora)
 
+ DISCOGRAFIA:
1971: Hunky Dory
1973: Pin Ups
1976: Station to Station 
1977: Low
1978: Heroes
1979: Lodger
1984: Tonight
1995: Outside
1997: Earthling
1999: Hours… 
2002: Heathen
2003: Reality
2016: Blackstar