Doze de janeiro de 2010 ficará marcado como uma cicatriz na história haitiana. Para nós que estávamos no país neste período, muitas lembranças ficaramNão ficamos sequer um dia sem nos lembrar dos 35 segundos que sacudiram a capital haitiana, e de como era caminhar pela cidade nos dias seguintes. Fomos tomados pela tristeza das milhares de vidas perdidas e pela impotência diante de tanta tragédia e destruição.

Chegar ao Brasil seis dias após o terremoto foi muito difícil. Era como se a realidade estivesse lá, e não aqui. Nosso grupo de 9 brasileiros, felizmente, teve a oportunidade de voltar intacto, tivemos muita sorte. Até hoje, a cada nova notícia do país, sentimos um calafrio e nos transportamos imediatamente para nossas memórias. Infelizmente os milhões de haitianos sobreviventes não tiveram a mesma opção que tivemos, voltar para seus lares. Continuaram suas vidas da maneira como puderam, aprendendo a conviver com o forte cheiro dos corpos que se enfileiravam pelas calçadas e com condições subumanas de vida.

Lembro-me de que no dia seguinte ao terremoto ouvíamos aviões e helicópteros passando acima de nossas cabeças. Pelos nossos familiares e amigos no Brasil ouvíamos que a ajuda estava chegando. Todo o mundo estaria se mobilizando para enviar mantimentos e dinheiro ao Haiti. Já sabíamos, no entanto, desde aquele momento, que tudo não passava de um espetáculo televisivo, um big brother da desgraça. Fomos saber depois que os aviões que ouvíamos não eram carregados de alimentos ou medicamentos, mas de soldados e armas. Foi com indignação que ouvimos a notícia, no dia 14, que os Estados Unidos tinham ocupado o aeroporto de Porto Príncipe e estavam desembarcando 16 mil fuzileiros navais no país, treinados para matar, não para ajudar.

Não vimos sequer um carro da ONU andando pela cidade, que foi abastecida e continuou sua vida através das mãos dos próprios haitianos, deixando claro o fracasso total da missão “humanitária” das Nações Unidas.

Hoje, um ano após a tragédia, o resultado da ajuda internacional é patético. Dos 10 bilhões de dólares prometidos, até julho de 2010 apenas 2% desse dinheiro tinha chegado ao país, como nos revela a diplomata haitiana Leslie Voltaire. Porto Príncipe tem hoje mais de 800 mil pessoas desabrigadas, morando em lonas espalhadas por toda a cidade. Apenas 5% dos escombros foram retirados.

A cidade estaria praticamente igual aos dias posteriores ao terremoto, não fosse por alguns pequenos detalhes. Pétion-Ville, subdistrito de Porto Príncipe, onde habita a burguesia haitiana, bem como grande parte dos funcionários da Missão da ONU, nunca prosperou tanto. Vários restaurantes, lojas e até um shopping foram construídos após o terremoto. Os muros das grandes mansões aumentaram. Os ricos não querem ter suas vistas incomodadas pela miséria do povo. Abastecer a cooperação internacional de alimentos e artigos de luxo vem se tornando um ótimo negócio.

O Estado haitiano, já praticamente inexistente antes do terremoto, agora dá lugar às ONGs. Elas são mais de mil em território haitiano, vindas do mundo todo, e controlam praticamente todos os serviços da capital. São comandadas por grandes ou pequenos empresários, os senhores da pobreza, que nadam de braçada na miséria haitiana, sugando todo o dinheiro da “ajuda internacional” para seus bolsos.

Diante de tal cenário, em outubro do passado, o país foi assolado por uma epidemia de cólera. Até o momento são quase 4 mil mortos e mais de 188 mil infectados. A doença, que fora erradicada do país há mais de 50 anos, voltou com força total em 2010, desta vez trazida por soldados nepaleses da Minustah, o que gerou revolta em diversas cidades haitianas.

O governo norte-americano decide, as ONGs administram e as tropas garantem que tudo continuará como está. Esta situação seria facilmente mantida, não fosse com relação a um dos povos com maior tradição de luta do mundo, e que nos últimos meses têm se enfrentado em diversos momentos com as tropas instaladas no país. O povo haitiano parece estar levando ao pé da letra o aviso dado pelos estudantes de Porto Príncipe às tropas brasileiras em 2009: “Não nos pararão!”

Post author Otávio Calegari, de campinas (SP)
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