Acampamentos precários para o povo, enquanto shopping é construído para empresários
Foto: Le Nouvelliste

Milhões de dólares que entram no país são usados para aprofundar as desigualdades sociais, indo parar nas mãos de ONGs internacionais e grandes empresários

Hoje, 12 de janeiro de 2014, completam-se quatro anos do terremoto que atingiu o Haiti, destruindo sua capital e cidades ao redor e deixando um saldo de mais de 200 mil mortos, 300 mil feridos e 1,5 milhão de desabrigados. Em junho deste ano, completam-se dez anos da ocupação militar da ONU, liderada pelo Brasil, no Haiti.

Em primeiro lugar, gostaríamos de prestar nossa solidariedade a todas as famílias de haitianos e haitianas que perderam parentes, amigos ou conhecidos no dia 12 de janeiro de 2010. Sabemos que, em meio à luta cotidiana daqueles que sobreviveram, uma grande dor permanecerá em cada canto do país pelos seus milhares de mortos e desaparecidos.

Desde o primeiro aniversário do terremoto escrevemos textos que retratavam a quase inexistente reconstrução do Haiti após a grande comoção mundial gerada pelo sofrimento e dor do povo haitiano. No ano passado, começamos a perceber, ao lado de haitianos e haitianas, quão sorrateira estava sendo a chamada reconstrução em andamento. Os milhões de dólares que entraram no país desde 2010 estavam sendo utilizados para aprofundar ainda mais as desigualdades sociais já existentes, indo parar nas mãos de donos de ONGs internacionais e grandes empresários.

A construção de um enorme shopping em Pétionville, distrito de Porto Príncipe, em meio a uma cidade com mais de 500 mil desabrigados, foi o maior símbolo dessa reconstrução. Tudo para os estrangeiros, altos funcionários de Organizações Não-Governamentais, funcionários da ONU, empresários e políticos haitianos. Nada para o povo.

Esta situação, infelizmente, não se alterou de lá pra cá. O que vem se alterando, no entanto, é a temperatura do país, que aumentou, com conflitos abertos de diversos setores sociais com o governo de Martelly e das tropas da ONU.

“A reconstrução do Haiti contém os germes de seu fracasso”
O economista haitiano Eddy Labossière, recentemente, concedeu uma entrevista ao jornal haitiano Le Nouvelliste, em que concluiu que “a reconstrução do Haiti contém os germes de seu fracasso”.

Segundo o economista, a estimativa é que apenas 1% dos recursos que foram enviados à reconstrução passaram pelo governo haitiano. A maior parte dos recursos é controlada por ONGs e instituições internacionais, como fundos norte-americanos e alemães, ou pela ONU.

Uma reportagem do New York Times de dezembro de 2012 aponta que cerca de 7,5 bilhões de dólares foram doados ao Haiti desde 2010, mas não se sabe efetivamente quanto desse montante foi utilizado na reconstrução do país, dada a incapacidade das instituições que administram tais fundos em aplicar o dinheiro. Segundo a reportagem, mais da metade do dinheiro havia sido aplicado em medidas emergenciais que têm um alto custo, mas não trazem resultados a longo prazo, como a compra de água, alimentos ou barracas de acampamento.

Poucos milhões foram investidos em novas casas e na produção de alimentos. Outra parte importante dos recursos foi aplicada em programas que já existiam antes do terremoto, como a construção de estradas ou programas de prevenção ao HIV. Até a construção de um parque industrial no norte do país, região não afetada pelo terremoto, recebeu dinheiro da “ajuda internacional”.

O funcionamento da chamada cooperação internacional, conjunto de instituições que atualmente controla o Haiti, e a ajuda internacional a este país, têm uma lógica perversa. Isso porque:

1) A “cooperação internacional” custa caro. Em nenhum momento os “cooperantes internacionais” deixaram de ter um alto padrão de vida, se comparado à situação da população haitiana, para auxiliar na reconstrução do país. O abastecimento da cooperação internacional com comida, água, energia elétrica, hotéis luxuosos ou aluguel de grandes mansões em um país com infraestrutura tão precária consome parte relevante dos recursos enviados ao país.

2) Os “cooperantes internacionais” não auxiliam na formação e reconstrução do país pelos próprios haitianos, mas os substituem. Essa situação fica cada vez mais evidente. Em 2012, a saída de uma ONG que administrava banheiros químicos em Porto Príncipe gerou uma crise em um dos principais acampamentos de desabrigados no centro da cidade. Outro exemplo é a atual expectativa dos moradores de Jacmel, uma das principais cidades atingidas pelo terremoto, de como ficará a cidade após a saída dos médicos da ONG Médicos Sem Fronteiras, prevista para acontecer nos próximos meses.

3) A “cooperação internacional” é racista. A lógica das ONGs internacionais presentes no Haiti e dos governos que administram os fundos de “ajuda” é baseada na premissa de que os negros haitianos, assim como acontece nos países africanos, são incapazes de governar seu próprio país. É preciso a intervenção externa, de países “desenvolvidos” e “modernos” para dar um rumo certo para estas nações.

4) A “cooperação internacional” serve a determinados interesses. Os interesses que determinam as ações da “cooperação internacional” não são os interesses dos trabalhadores e do povo pobre haitiano, mas dos governos que estão por trás das instituições que administram a “ajuda”. Estas instituições são: governo dos Estados Unidos, governo da França, governo do Canadá, governo da Alemanha, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial e diversas ONGs, como Save the Children, Médicos Sem Fronteiras, Viva Rio etc. Tais instituições estão listadas no Plano de Reconstrução do Haiti elaborado após o terremoto e compõem o Comitê Temporário para Reconstrução do Haiti.

Os quatro elementos apontados acima, assim como outros, alguns dos quais vamos tratar a seguir, conformam um cenário onde a reconstrução do país se torna praticamente impossível. Atualmente, cerca de 150 mil haitianos e haitianas continuam vivendo embaixo de barracas, em péssimas condições de higiene e infraestrutura. Centenas de milhares de pessoas que já foram realojadas hoje vivem em casas construídas no improviso, sem a menor chance de se manterem em pé caso aconteça um novo terremoto no país, algo não descartável nas próximas décadas.

Um país ocupado por tropas estrangeiras
A situação descrita acima se passa num país ocupado por tropas estrangeiras. A ocupação militar da ONU no Haiti, chamada Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), é composta por inúmeros países, como Bolívia, Argentina, Chile, Equador, França, Canadá, Estados Unidos, Brasil dentre outros. A Minustah é comandada, do ponto de vista militar, pelo governo brasileiro, e do ponto de vista civil, pelo governo dos Estados Unidos. Este país é quem dá as cartas.

A Minustah não é uma Missão de Paz, como a mídia brasileira insiste em propagandear. Trata-se de uma Missão de Estabilização. Algumas perguntas devem ser respondidas para entendermos o papel de tal missão: do que se trata a atual estabilização? Com que interesses países como Estados Unidos e Brasil querem estabilizar o Haiti? A quem serve essa estabilização?

Recentemente, uma série de reportagens na mídia brasileira anunciava a volta das gangues nas periferias de Porto Príncipe, após mais de cinco anos de paz, mantida pelas tropas da ONU. As reportagens, no entanto, não questionavam por que a violência está voltando.

A violência no Haiti não é a mesma violência do Brasil. No Haiti, há surtos de violência que vêm da periferia em determinados momentos da vida política do país. Neste caso, a violência está diretamente associada às eleições locais e senatoriais que acontecerão ainda este mês, mas também têm como origem mais profunda a situação de extrema pobreza em que vive o país.

Para se ter uma ideia, um estudo da ONU intitulado “Estudo global sobre homicídio”, de 2011, mostra que o Haiti é um dos países menos violentos da América. A taxa de homicídio no Haiti estava, segundo dados de 2010, na marca de 6,9 assassinatos para 100 mil pessoas. Na Jamaica, país vizinho, a taxa é de 52,1. Em Porto Rico, protetorado dos Estados Unidos, a taxa é de 26,2, e, no Brasil, a taxa se encontra em 22,7 para cada 100 mil habitantes.

Na Colômbia, principal parceiro dos Estados Unidos na América do Sul, o índice é de 66 assassinatos para cada 100 mil habitantes! A criminalidade e a violência que perturbam a população haitiana, portanto, não são os principais motivos que levaram a ONU a invadir o Haiti.

O baixo índice de homicídios no Haiti não é uma benção das Nações Unidas, mas uma regra na história do país, onde a violência não está associada à repressão ao tráfico de drogas ou à necessidade das elites de eliminarem os mais pobres por sua cor e classe social, como no Brasil, na Colômbia, no México etc.

O Haiti viveu e está voltando a viver momentos de tensão que têm como pano de fundo a incapacidade dos sucessivos governos de resolver os problemas do país. Como a ONU poderia explicar que, após mais de dez anos presente no país, a violência volte a crescer? Alguma coisa não deu certo.

A ocupação militar do Haiti não tem como objetivo acabar com a criminalidade num país dominado pelo caos, mas garantir a estabilidade do país para que os negócios e lucros de investidores estrangeiros continuem se realizando com tranquilidade.

O Haiti se situa no quintal dos Estados Unidos, numa região extremamente controlada pelo imperialismo norte-americano. Grande parte dos países que se situam na região do Caribe serve como plataforma de exportação de produtos fabricados a partir da exploração de mão de obra barata. Este é o caso de Honduras, Nicarágua, Porto Rico, República Dominicana, Haiti e vários outros. Grandes empresas multinacionais se instalam nesses países para lucrar mais com o baixo custo da força de trabalho, resultado direto das más condições de vida dessas populações.

A instabilidade política e militar no Haiti pode causar inúmeras consequências para a região do Caribe e para o imperialismo norte-americano. Algumas destas consequências podem ser:

1)Aumento do fluxo de imigrantes do Haiti para os Estados Unidos e países vizinhos.

2) Retirada de investimentos estrangeiros no Haiti, o que causaria sérios prejuízos para as empresas já instaladas (como GAP, Tommy Hilfinger, Levi’s e outras) e afetaria as exportações para os Estados Unidos e outros países.

3) Aumento da instabilidade nos países vizinhos, que pertencem à área de controle econômico dos Estados Unidos, como República Dominicana, Porto Rico etc. Não podemos esquecer que o Haiti foi um “péssimo” exemplo para as colônias dos países imperialistas desde 1804, quando os negros escravizados se levantaram e acabaram com a dominação francesa colonial no país.

Para impedir uma maior instabilidade no Haiti, que poderia levar a uma guerra civil com complexas consequências, em fevereiro de 2004, tropas dos Estados Unidos e da França ocuparam o território haitiano e depuseram o então presidente, eleito democraticamente, Jean-Bertrand Aristide, enviando-o para a África do Sul. Alguns meses depois, foi criada a Minustah. O governo Lula, na época, buscando uma maior aproximação com o governo dos Estados Unidos e uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, aceitou liderar a Missão.

A Minustah tem hoje presentes no Haiti mais de 6.200 militares e 2.400 policiais. O Brasil já gastou R$ 2 bilhões com a Missão, e a ONU gasta, anualmente, 500 milhões de dólares. O grosso dessas enormes quantias foram gastos com estrutura militar, e não aplicados na saúde, educação, moradia ou na agricultura haitianas. A missão da ONU no Haiti é manter tudo como está, e para isso é preciso desarmar os pobres e pretos nas periferias das grandes cidades haitianas.

O exército brasileiro carrega em suas costas, desde 2004, inúmeras denúncias de estupros e massacres cometidos ao povo haitiano. Ao contrário do que dizem os generais e a mídia brasileira, o povo haitiano não tem nenhuma simpatia pelos fuzis e tanques de guerra que andam pelas ruas de seu país, pois sabem que estes só trazem opressão, e não a resolução de seus problemas.

Racismo e xenofobia para explorar mais
Para além de gangues armadas que voltaram a tomar alguns bairros das periferias de Porto Príncipe, dois conflitos importantes vem se passando hoje no Haiti.

O primeiro conflito é entre o governo dominicano e o governo haitiano. Em 25 de setembro de 2013, o Tribunal Constitucional da República Dominicana sancionou uma escandalosa sentença contra os descendentes de imigrantes haitianos no país. A Sentença 168 diz que toda pessoa nascida na República Dominicana que seja filha de pais em trânsito pelo país sem documentação legal, desde 1929, não têm direito à cidadania dominicana.

Tal sentença teve enorme repercussão. Governos de vários países e organismos internacionais se manifestaram contrários. O governo haitiano quase retirou seu embaixador de Santo Domingo, capital da República Dominicana.

A sentença deve afetar cerca de 250 mil dominicanos descendentes de haitianos, que perderão sua nacionalidade, tornando-se apátridas, já que também não são haitianos. Tal resolução do Tribunal Constitucional não é um fato isolado. Nos últimos anos, uma série de medidas vem sendo tomada contra haitianos ou descendentes de haitianos na República Dominicana.

Hoje, mais de 500 mil haitianos trabalham em território dominicano, servindo de mão de obra barata em plantações de cana, milho, na silvicultura, construção civil e outras ocupações. Quase a metade destes haitianos tem empregos temporários. Muitas vezes, passam meses trabalhando ilegalmente em colheitas na República Dominicana para depois serem enxotados de volta para o Haiti sem receberem seus salários. O conflito chegou ao ponto de cerca de 2 mil operários agrícolas haitianos que trabalham na República Dominicana serem barrados na fronteira entre os dois países após terem voltado ao Haiti para passar as festas de fim de ano com suas famílias.

As medidas do governo dominicano visam discriminar ainda mais os haitianos, retirando os poucos direitos que lhes são concedidos para deixar sua situação ainda pior. Com menos direitos e correndo mais riscos, os empresários têm mais poder para chantageá-los. A expulsão completa dos haitianos e de seus descendentes da República Dominicana é impensável, já que hoje estes servem de base para a economia do país, ocupando os postos de trabalho mais precários.

Lutar contra essa legislação racista e xenófoba é uma tarefa de todas as organizações democráticas e da esquerda em todos os países do continente americano.

As greves operárias
Desde o mês de dezembro do ano passado, milhares de operários das fábricas têxteis de Porto Príncipe vêm lutando pelo aumento do salário mínimo, que hoje é de 300 gourdes por dia, cerca de 7 dólares. As manifestações começaram no dia 10 de dezembro em frente ao Parlamento Haitiano e voltaram a acontecer no fim do mês, quando os operários pararam as fábricas por três dias.

A última manifestação, no dia 18 de dezembro, que passou pelo Parlamento, Palácio Nacional e terminou em frente ao Hotel onde estavam reunidos representantes das marcas Levi’s, Hanes e Gildan, acabou em selvagem repressão. Policiais encapuzados feriram e prenderam dezenas de operários.

Após os conflitos, as fábricas fecharam suas portas, antecipando as festas de fim ano, para que o fechamento não fosse caracterizado como lock-out, ou greve patronal. No dia 19 de dezembro, mais de 60 operários ligados aos sindicalistas do Batay Ouvriye foram demitidos por estas empresas. A luta continua, e os operários prometem novas mobilizações.

No Brasil, é preciso articular uma grande campanha pela retirada das tropas
Este ano será muito importante para os trabalhadores, trabalhadoras e para a juventude brasileira. Será o ano da Copa do Mundo e o primeiro ano após as manifestações que iniciaram um novo período de lutas na história de nosso país.

Ao lado da luta contra a Fifa, contra a criminalização dos movimentos sociais e da juventude negra, da luta por mais direitos aos trabalhadores e trabalhadoras, pelo fim da violência às mulheres, temos de levantar a bandeira do internacionalismo e dizer para todo o mundo: para nós brasileiros, basta de ocupação militar no Haiti, basta de opressão ao povo haitiano!

– Fora as tropas brasileiras e da ONU do Haiti!
– Pela soberania do povo haitiano!
– Todo apoio às greves operárias!

Atualizada em 13/1/2014 às 10h11