Restos de pneus queimados na Rue Espagnole, principal rua de Ouanaminthe

Otávio Calegari, militante do PSTU, está no Haiti desde o dia 31 de dezembro e agora se encontra em Ouanaminthe, cidade haitiana de cerca de 100 mil habitantes, uma das mais importantes do país por ser uma das fronteiras do Haiti com a República DominicanHá alguns dias um verdadeiro levante popular teve início em Ouanaminthe. Tudo se passou em um bairro da cidade chamado Gaia, sem dúvida um dos mais pobres. Assim como os outros bairros de Ouanaminthe, Gaia também não possui eletricidade. Tampouco possui água encanada ou saneamento básico. A população vive como se pode viver. As ruas de Gaia são todas de terra. A chuva, quando vem, transforma o bairro em um lamaçal, inundando parte das casas. As casas são feitas, em grande parte, de madeira e calhas. Algumas, as mais luxuosas, são feitas de tijolos. Gaia também é o último bairro de Ouanaminthe antes da CODEVI, Zona Franca Industrial, que produz roupas e sapatos para marcas como Levi’s, Timberland, American Eagle, dentre outras, pagando 25 dólares por semana aos operários e operárias. Em Gaia também moram muitos trabalhadores da Zona Franca, assim como milhares de outras pessoas.

O início do conflito
No último domingo, 12 de fevereiro, após uma confusão entre dois vizinhos, a Polícia Nacional Haitiana (PNH) foi acionada para resolver a briga. A PNH não é bem vista pela população de Gaia, que a toma mais como inimiga do que protetora, devido ao histórico de violentas intervenções policiais no bairro. A inevitável reação de parte dos moradores à presença da polícia foi de hostilidade. Ao chegarem ao local, um policial e 2 soldados da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), segundo relato dos moradores, investiram contra os jovens que os hostilizavam. Após um tumulto e algumas pedras e garrafas arremessadas, o policial atirou. O resultado: um rapaz de 28 anos, casado e com quatro filhos, foi morto. Ele era conhecido como Ti Loulou (pequeno Loulou). Os policiais e os soldados imediatamente foram embora. Os moradores, indignados, começaram a telefonar para as autoridades para contar o que tinha se passado. Muitos juízes foram contatados, mas nenhum deles compareceu ao local. O corpo de Ti Loulou ficou mais de 2 horas no chão até que um juiz aparecesse.

Na segunda-feira a reação dos moradores começou. Já às 6h da manhã duas barricadas foram feitas na Rue de la Liberté, principal rua que dá acesso à Zona Franca. Os mais de 6 mil operários não puderam passar. Não houve trabalho na Zona Franca. Durante o dia vários conflitos aconteceram em diversos locais da cidade. Os jovens de Gaia apedrejaram a sede da polícia e também alguns dos lugares mais movimentados da cidade, chamando a atenção para sua indignação. Eles exigem indenização à família de Ti Loulou e a punição dos policiais envolvidos.

A situação se agravou após uma declaração polêmica do Comissário da Polícia Nacional em Ouanaminthe, desqualificando as autoridades haitianas e dizendo que ali era ele quem mandava. Os conflitos continuam até o momento em que esse texto era escrito, quarta-feira (15) à noite, e tendem a se agravar se nada for feito.

Relatos
Nesse dia 15 pela manhã o principal mercado de Ouanaminthe praticamente não funcionou. Os comerciantes foram intimados, pela fúria dos jovens de Gaia, a não iniciarem suas atividades.

Após o almoço consegui ter acesso aos líderes da revolta e ao pai do jovem assassinado. Seus relatos são tristes e enfurecidos. O pai relata como seu filho perdeu sua vida voltando para a casa após trabalhar o dia todo em uma construção. “Ele não tinha nada quando morreu, não tinha pedras, não tinha garrafas, por que o mataram?” , diz ele, indignado. O pai reclamou também da atuação da polícia e da MINUSTAH. Segundo ele, a polícia haitiana tem dois problemas fundamentais, a prática cotidiana de assassinar pessoas e o envolvimento com o tráfico de drogas.

Tanto o pai como todos os outros que estavam em volta enquanto eu fazia a entrevista disseram que o policial que matou Ti Loulou tinha envolvimento com o tráfico. “A MINUSTAH também só aparece para atirar nas pessoas. Jogam gás [lacrimogênio], que deixa as crianças sufocadas. A Minustah não faz nada sério no país. Com o dinheiro que é gasto com um soldado da Minustah poderia se pagar 5 policiais haitianos. Eles só ficam andando de carro, não fazem nada. ” Frito, pai de Ti Loulouse, diz que só vai enterrar seu filho quando houver reparação e punição.

Já os jovens exigem também a saída do Comissário de Polícia. Segundo eles Ouanaminthe piorou muito desde que esse Comissário veio para cá, após o terremoto de Porto Príncipe. Segundo os jovens, o Comissário também tem envolvimento com o tráfico de drogas. “Enquanto não houver reparação pelo assassinato de Ti Loulou nós não vamos parar. Vamos fechar as escolas, vamos fechar o mercado, vamos fechar a fronteira e vamos colocar fogo em Ouanaminthe. As autoridades haitianas não servem para nada.”

Separei-me do grupo e após meia hora cruzei, na rua principal da cidade, com 2 tanques blindados da Minustah e 3 caminhões de soldados, todos uruguaios. Pela tarde houve confronto entre os jovens e a Minustah na entrada de Ouanaminthe, após os manifestantes terem-na bloqueado. Os manifestantes foram dispersos pelas bombas de gás lacrimogênio.

A noite de hoje também foi movimentada. Voltando para casa por volta das 20h, nas ruas escuras da cidade, eu e um amigo vimos o comércio fechando e pessoas correndo. Garrafas voavam na escuridão.

A profundidade do problema
Esta não é a primeira vez que a PNH e a MINUSTAH entram em conflito com moradores de Gaia. O bairro é considerado “problemático” pelas autoridades. Segundo o que se comenta na cidade, muitos dos partidários armados do ex-presidente Aristide, deposto em 2004, conhecidos como “chimères”, vieram para Ouanaminthe após a ocupação militar da ONU.

Desde a entrada das tropas da ONU no país uma verdadeira guerra foi desencadeada nos bairros mais pobres de Porto Príncipe contra as gangues pró-Aristide. Os massacres cometidos pela MINUSTAH, liderados pelos soldados brasileiros, são amplamente conhecidos, apesar do silêncio que reina na mídia brasileira. A violência das tropas de ocupação aparece até em romances haitianos publicados no estrangeiro, como é o caso do livro autobiográfico de Edwidge Danticat, “Adeus, Haiti”, já publicado em português.

A invasão da ONU está deixando atrás de si um rastro de centenas de mortos e nenhuma resolução aos principais problemas do país. Apesar dos mais de 4 bilhões de dólares gastos com a Missão, que conta com rádios, enormes infraestruturas, blindados, aviões, armas letais e não letais e mais de 12 mil membros, entre civis e militares, muito pouco ou quase nada foi feito para melhorar as condições de vida da população.

O bairro de Gaia é só mais uma manifestação dos problemas estruturais que possui a sociedade haitiana, problemas reproduzidos e agravados com a ocupação militar estrangeira. Apenas os mais ingênuos podem acreditar que a MINUSTAH é uma Missão de Paz. O discurso da “paz” e da “democracia” é utilizado pelo imperialismo há décadas para justificar o saque de países e o massacre de populações para servir a seus interesses políticos e econômicos.

Os planos dos Estados Unidos (e de seus sócios menores: França, Canadá, e poderíamos dizer, Brasil) para o Haiti não são segredo. Estão escritos em vários documentos da USAID (Agência para o Desenvolvimento Internacional, braço do governo norte-americano) e da própria Comissão Temporária para Reconstrução do Haiti, sob o comando de Bill Clinton. A destruição da agricultura camponesa haitiana e a entrada cada vez maior de produtos norte-americanos fazem parte desses planos e já vêm sendo postas em execução há décadas. Essa combinação de destruição e invasão de produtos estrangeiros faz com que os camponeses haitianos, sem possibilidades de continuar no campo, migrem para as cidades em busca de emprego, engrossando o exército de reserva aos grandes parques industriais de exportação. O projeto norte-americano ao Haiti pode ser facilmente resumido em três eixos: 1) destruição da agricultura tradicional; 2) invasão de produtos norte-americanos e estrangeiros e 3) implementação de grandes parques industriais de montagem com mão-de-obra barata, as “maquiladoras”. Para se manter um país numa situação tão miserável, por um lado, e tão lucrativa aos interesses estrangeiros, por outro, é preciso de muitos soldados, e esse é o motivo da permanência cada vez maior da Missão da ONU no país.

Infelizmente as explosões de rebeldia e violência não vão parar enquanto a miséria for perpetuada. O caráter espontâneo das revoltas, no entanto, dificilmente consegue causar mais do que pânico em parte da população, que poderia ser aliada. A falta de organização e preparação das lutas faz com que estas sejam facilmente desmanteladas pelo aparelho repressivo de alta tecnologia empregado pelas tropas de ocupação. Uma organização disciplinada e organizada nunca foi tão fundamental para a resistência à ocupação militar e para uma segunda libertação do Haiti.