Eduardo Almeida

O Haiti está explodindo novamente. Desde 10 de janeiro, grandes mobilizações exigem a renúncia do governo Moïse.

Esse governo já nasceu como produto de uma fraude eleitoral, com sua posse questionada pelo povo haitiano em 2016.  Moïse  se manteve no poder, apoiado pelo governo Trump e em uma feroz repressão.

Agora, no fim de seu mandato, muito mais questionado que no início do governo, quer ter um ano a mais. O povo rebelde haitiano diz não.

A luta do povo haitiano importa aos trabalhadores do mundo porque o proletariado é internacional, em sua luta contra a dominação imperialista. Uma vitória contra Moïse, seria uma derrota do imperialismo. Mas, não é só por isso. Existem outras respostas a essa pergunta.

Uma história incrível… e esquecida

O Haiti tem uma história revolucionária que é um exemplo para todo o povo dos países colonizados, e em particular o povo negro.

Em sua luta pela independência, conquistada em 1804, os escravos, liderados por Toussaint L’Ouverture, derrotaram os exércitos de Napoleão, da Espanha e Inglaterra, as potências imperiais da época. Trata-se de um feito militar semelhante à vitória do Exército Vermelho da revolução russa sobre os exércitos imperialistas.

Foi uma incrível revolução, que teve como sujeito social os escravos, parte um processo internacional desigual e combinado. Na definição de CLR James, esses escravos, concentrados nas grandes fazendas produtoras de açúcar, eram o mais próximo setor social do moderno proletariado, mas com relações de produção pré-capitalistas.

A luta pela libertação dos escravos e do domínio colonial avançou acompanhando os passos da revolução francesa.  Seus líderes eram encantados com os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mas, com o refluxo pós-revolução na França, que possibilitou a reação e a coroação de Napoleão, ele decidiu retomar o controle do Haiti (naquele momento Ilhas Dominicanas). O exército de Napoleão invadiu a ilha, mas acabou derrotado pelos escravos insurretos.

Foi a única vitória desse calibre dos escravos na história, e a primeira vitória anticolonial da América Latina.

Mas o capitalismo colonial não podia deixar que essa vitória contaminasse a América. Menos ainda quando o escravismo era parte importante de seus planos de exploração, 60 anos antes de sua abolição nos EUA e mais de 80 antes no Brasil. O bloqueio econômico asfixiou o Haiti, que foi obrigado a pagar uma brutal dívida. Isso fez a ilha retroceder de um país independente a uma semicolonia.

O imperialismo emergente norte americano invadiu a ilha em 1915, permanecendo lá por vinte anos. Depois apoiou a ditadura duvalierista (Papa Doc, e depois seu filho Baby Doc), uma das mais sanguinárias de toda a história, que destruiu a economia haitiana.

A história revolucionária do Haiti foi esquecida, para se impor a imagem da ditadura duvalierista e da miséria do povo haitiano.

Uma vitória no Haiti atual servirá para reviver essa memória revolucionária, e alimentará o imaginário da vanguarda em todo o mundo. Em particular para os trabalhadores negros, voltará a se incorporar em uma tradição de lutas riquíssima, que inclui Zumbi, Dandara e outras.

O imperialismo não conseguiu até hoje estabilizar o estado haitiano

Os governos haitianos, desde a derrubada de Duvalier (1986) terminaram seus mandatos com gigantescas crises e questionamento popular. Nem o imperialismo, nem a burguesia haitiana conseguiram estabilizar um estado, e as crises se sucedem.

A democracia burguesa é, como sabemos, uma ditadura do capital, um jogo de cartas marcadas, no qual as distintas frações burguesas sempre ganham. Mas existe em geral um jogo eleitoral, com distintos níveis de participação popular. No Haiti, existem eleições, mas não existe democracia burguesa, nem mesmo a limitada democracia de outros países. É tudo uma farsa grotesca, submetida a dominação imperialista e a uma repressão violenta.

Antes, durante a última ocupação militar (2004- 2013) só podiam concorrer candidatos que não questionassem a ocupação. Os governos eleitos eram fantoches, o poder real passava pela embaixada dos EUA.  Com o final da ocupação, a situação segue a mesma. O imperialismo reorganizou a polícia haitiana, que cumpre o papel de repressão das Forças Armadas que nunca puderam ser reorganizadas. A embaixada norte americana segue dando as ordens. Os governos seguem sendo fantoches.

As eleições são disputadas entre frações da burguesia que implementam o plano colonial norte americano. Além disso, brigam ferozmente pelas verbas do estado- inclusive a do “apoio humanitário”- em uma gigantesca rede de corrupção.

As eleições servem para canalizar temporariamente a insatisfação popular. Os governos eleitos rapidamente se desgastam. Mas se mantém no poder com uma brutal repressão, antes das tropas de ocupação, e agora da polícia reorganizada.

Em 2006, depois do início da ocupação militar, ocorreram as primeiras eleições, nas quais foi eleito René Préval.  Mas Préval era o candidato de Aristides, o governo de frente popular derrubado pela ocupação militar.

A embaixada norte-americana não aceitou o resultado e impôs uma fraude, garantindo um segundo turno com candidatos aceitáveis pelo imperialismo. Uma rebelião popular impediu a manobra e garantiu a posse de Préval. Mas, por trás dessa vitória veio uma derrota. Préval se vendeu ao imperialismo e aplicou exatamente o mesmo plano exigido pela embaixada gringa. Privatizou as estatais que tinham sobrado e assinou a Lei Hope, completando a transformação da Ilha praticamente em uma colônia dos EUA.

No final de seu governo, completamente desgastado, Préval tentou impor seu candidato Jude Célestin com uma fraude semelhante a que tentaram contra ele.  Uma nova rebelião popular impediu a fraude em 2011.  Se aproveitando da crise, a OEA (com apoio da embaixada dos EUA e do Brasil), impôs um segundo turno com um candidato preferido pelo imperialismo, Michel Martelly.  Era um artista, um cantor,  que ganhou as eleições, com uma campanha contra “os políticos”, “contra a corrução”.

Martelly, na verdade, sempre esteve ligado à ultradireita norte-americana. Foi a volta do duvalierismo ao Haiti. Ele próprio foi um tonton macoute (milicia paramilitar da ditadura de Duvalier), antes de ser artista. Fez um governo de terror permanente contra a população. Entre outros absurdos, trouxe de volta Baby Doc, que retornou ao Haiti, indicou vários ministros e influenciou diretamente o governo até sua morte em 2014.

Mais uma vez o filme se repetiu. Martelly acabou seu governo sem nenhum apoio popular, usando as tropas da Minustah para reprimir o povo. No final tentou outra fraude eleitoral, para impor seu candidato Jovenel Moïse como seu sucessor, no final de 2015.

Outra vez, o povo haitiano se levantou, com uma rebelião popular em janeiro de 2016. A fraude foi impedida, e se abriu um vazio de governo. Houve um ano inteiro de crise política,  e repressão violenta da Minustah. Afinal, a OEA e as embaixadas dos EUA e do Brasil impuseram novas eleições fraudadas para que ganhasse de novo o mesmo Moïse, que assumiu em 2017.

O povo haitiano foi derrotado. Mas os índices de abstenção foram gigantescos, entre 80 a 85%, indicando o desgaste do novo governo.

É preciso combater a imagem

A imagem mundial do Haiti é de um país miserável, que tem de ser “ajudado” para escapar da pobreza. É verdade que se trata do país mais pobre da América Latina, com 70% de desemprego e de uma miséria extremada.

O que mídia internacional não divulga é que essa pobreza não é uma consequência “natural”, do subdesenvolvimento do país. É um produto de um plano consciente do imperialismo.

Existe no país uma plataforma de produção têxtil, de tecnologia relativamente baixa, para produzir calças, camisas e camisetas de marcas famosas como Levis, Lee, Wrangler, GAP. Os salários no Haití são a metade do que se paga na China. Ali se produz jeans para o mercado dos EUA, a menos de mil kilômetros das costas norte-americanas.

Os haitianos têm de aceitar essa miséria pelo enorme exército industrial de reserva, com a massa de desempregados no país.

Essas zonas francas, foram inauguradas no governo Aristide,  e se estenderam pelo país durante a ocupação militar da Minustah.  São fábricas multinacionais produzindo para o mercado norteamericano, sem taxas alfandegárias e sem qualquer limite trabalhista legal.

Ou seja, a miséria haitiana produz riquezas para as multinacionais. A “ajuda” imperialista na verdade é para perpetuar a miséria haitiana e gerar lucros para as multinacionais.

A outra imagem do país está associada à violência. Seria preciso “ajudar” os haitianos para acabar com a violência criminosa. Essa é mais uma mentira, uma ideologia a serviço da dominação imperialista.

A violência urbana no país é muito menor que no restante dos países latino-americanos. Em todas minhas visitas ao país, andei abertamente nas favelas haitianas com equipamento fotográfico sem qualquer problema, o que não faria em outros países.

As explosões populares, violentas ou não, são expressões da combinação de uma profunda revolta popular com a incapacidade da burguesia de estabilizar um estado democrático burguês ou bonapartista desde a derrubada da ditadura de Duvalier.

A “ajuda” imperialista nesse caso foram as três invasões e ocupações militares impostas ao país (1915, 1994 e 2004).

A última das ocupações foi através da Minustah. Depois que soldados dos EUA e da França depuseram o governo Aristides (que tinha sido eleito), era preciso legalizar a ocupação do país. O governo Bush, que já tinha bastante problemas em 2004 com a crise na ocupação do Iraque, pediu ajuda diretamente a Lula para que tropas brasileiras “comandassem” as forças da ONU de ocupação do Haiti. Lula prontamente respondeu sim, em uma das maiores traições de seu governo.

Assim, alguns meses depois da invasão militar, chegaram ao Haiti as tropas da Minustah (Missão das  Nações Unidas para a Estabilização do Haití), liderada por oficiais  brasileiros e composta por soldados da Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, e outros países. Assim, uma invasão imperialista se disfarçou de “missão humanitária” da ONU, con apoio de Lula, Evo Morales, Bachelet, Tabaré Vázquez.

Uma vez, dando uma palestra em uma universidade em Porto Príncipe, eu falei aos alunos que a propaganda do governo brasileiro sobre a Minustah era que se tratava de uma missão “humanitária”. A resposta foi uma gargalhada irônica de todos. Depois da palestra foram me mostrar um cartaz no pátio da universidade, feito por eles. Com letras tortas, feitas com os cartuchos de gás lacrimogênio lançados contra eles na última invasão da universidade pelas tropas brasileiras, estava escrito: “Fora Minustah”.

Essa ocupação militar esteve no país de 2004 a 2017. Não se conhece nenhum avanço na assistência medica, em obras sanitárias ou na educação do povo haitiano nesse período por obra da Minustah.  Essas tropas não cumpriram nenhum papel quando era mais necessária uma real ajuda humanitária, no terremoto de 2010.

Mas a Minustah reprimiu as greves, o movimento estudantil e popular, estuprou mulheres e meninos. Tudo para garantir a aplicação do plano Hope do governo dos EUA, com a implantação das zonas francas.  Essa é a “ajuda” imperialista para “acabar com a violência”.

Uma vitória agora contra Moïse, vai significar uma derrota de um projeto imperialista de grande importância. Eles querem determinar um novo patamar de exploração para os trabalhadores de todo o mundo, com características de barbárie.

A crise atual

Como dizíamos , o governo Moïse  já começou questionado e segue cada vez mais até hoje. A discussão sobre a duração de seu mandato tem origem na crise de sua posse.

A eleição foi em 2015 e o novo governo deveria assumir em fevereiro de 2016 para um mandato de cinco anos. Com a fraude e a crise, Moïse só conseguiu assumir em fevereiro de 2017. Por isso, ele defende que seu governo só termina em 2022, apesar de ter sido “eleito” para um mandato que deveria terminar em fevereiro de 2021. A Corte Suprema do Haiti, assim como a maioria absoluta do povo haitiano, entendem que o mandato de Moïse  terminou agora.

Moïse  teve de enfrentar grandes mobilizações contra o governo desde sua posse. Já assumiu o governo pressionado por mobilizações em defesa do aumento do salário mínimo em 2017. Em julho de 2018, ocorreu uma rebelião popular contra o aumento de 40 a 50% nos preços dos combustíveis, determinado pelo FMI. O movimento rapidamente se transformou em uma luta para derrubar Moïse , incluindo dois dias de greve geral.

No entanto, o esquema repressivo armado com a polícia -substituta da Minustah- se revelou eficiente. Moïse  recuou no aumento dos combustíveis e conseguiu se manter no poder.

Em janeiro de 2019, novas mobilizações surgiram contra o governo, depois que se revelou um escândalo de corrupção envolvendo Moïse no roubo de 3,8 bilhões de dólares de empréstimos da Petrocaribe da Venezuela. As lutas foram evoluindo até se transformarem em levantes insurrecionais entre setembro e dezembro, com barricadas nas ruas, greves, enfrentamentos com a polícia.  Segundo Batay Ouvriére, mais de 250 pessoas morreram pela repressão da polícia.

Moïse suspendeu o parlamento em janeiro de 2020, e desde então governa por decretos. Trata-se um governo e um regime bonapartista, que agora quer prorrogar seu mandato. Não existe nenhuma garantia de que em 2022 deixe o governo. Pode querer simplesmente evitar novas eleições e se perpetuar no poder.

Durante todo seu governo, Moïse  teve apoio irrestrito de Trump. Os que acreditam em Biden, vão ter mais uma desilusão. O porta-voz do Departamento de Estado do novo governo dos EUA, Ned Price, concordou com o argumento de Moïse de que ele tem mais um ano pela frente, sendo apoiado pela OEA, e pelo Core Group (que inclui os governos dos Estados Unidos, Canadá, França, Espanha e Alemanha).

As mobilizações exigindo o fim do governo Moïse começaram em janeiro, e já duram mais de um mês. E tendem a se ampliar.

Para justificar a repressão, Moïse  armou uma farsa, denunciando uma “tentativa de golpe contra ele”. `Prendeu 23 pessoas, incluindo o juiz da Corte Suprema Yvickel Dabrézil, que era apoiado pela oposição para converter-se em presidente interino se Moïse deixasse o poder, até convocar novas eleições. Não houve golpe, nem mesmo um auto-golpe. Foi só uma farsa para legitimar a repressão.

Mas até agora Moïse  não conseguiu sufocar as mobilizações. O Haiti começa a se levantar de novo.

E agora?

O mundo está sacudido por uma pandemia e a recessão econômica, que gera tendências à polarização da luta de classes, a agudos enfrentamentos entre revolução e contra revolução. O ascenso e a crise no Haiti são partes dessa realidade mundial.

Para onde vai o Haiti? Moïse  vai conseguir esmagar mais uma vez o levante, como conseguiu em julho de 2018 e novembro de 2019?  Ou o país vai explodir de vez e derrubar esse governo sanguinário?

Moïse tem a seu favor a polícia reorganizada no país e o apoio do imperialismo. Os EUA já mostraram que podem, em menos de um dia, invadir de novo o país, caso a situação saia do controle. A polícia haitiana é só a primeira face da repressão. Por isso, a Minustah já não era mais necessária, depois de reorganizar a polícia. Mesmo assim, o Haiti rebelde já demonstrou que pode enfrentar invasões imperialistas.

A oposição burguesa quer a saída de Moïse, e novas eleições. Existem inúmeras direções burguesas “democráticas” e reformistas, muitas ainda ligadas a Aristides, outras a igreja. Querem, como todas esse tipo de direções, parar aí nas eleições.

Caso Moise seja derrubado, seria uma enorme vitória. Mas a luta do povo haitiano não pode terminar aí. É preciso avançar para romper com a dominação imperialista, rumo a uma revolução socialista. Se não a miséria do povo haitiano será mantida.

Seja para a derrubada de Moïse , seja para a continuidade do processo revolucionário, é muito importante que o proletariado têxtil tome a frente das lutas. Ainda que minoritário socialmente, esse proletariado assumiu uma importância econômica enorme nas últimas décadas. Também tem um peso político por suas greves e participações nas mobilizações contra Moïse.

Da mesma forma, é muito importante a construção de uma direção revolucionária. Existem direções combativas e independentes como Batay Ouvriye, com peso no proletariado têxtil em todo o país.

Se Moïse for derrotado, pode se abrir uma dinâmica revolucionária no Haiti de grande importância. Não só para o país, mas para toda a América Latina, que está vivendo uma situação social também explosiva, pelas consequências da  pandemia e da recessão mundial. Essa é a resposta mais importante a nossa pergunta inicial.