Em 22 de fevereiro de 1958, Gianfrancesco Guarnieri e o Teatro Arena encenaram pela primeira vez “Eles não usam black-tie”, um dos marcos do teatro brasileiro moderno. Misturando os vários conflitos que explodem durante uma greve com reflexões sobre tudo aquilo que, para o bem ou para o mal, nos faz humanos – como o amor, a traição, o medo, a amizade, a solidariedade, o ódio, a resignação e a rebeldia, por exemplo –, a peça de Guarnieri marcou época, também, por ter apontado novos rumos para a forma de se fazer teatro no Brasil.

Hoje, mais conhecido por sua versão cinematográfica – dirigida por Leon Hírzman e protagonizada pelo próprio Guarnieri ao lado de uma comovente Fernanda Montenegro –, o texto encenado pelo Arena tinha em seu elenco original um time de jovens atores que, depois, ocupariam primeiríssimo plano no cenário artístico nacional, como Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio, Lélia Abramo, Eugênio Kusnet, Miriam Mehler, além do próprio Guarnieri.

Na época, “Black Tie” foi uma das primeiras peças a colocar o trabalhador no centro dos palcos brasileiros. Rebelava-se, assim, contra textos e encenações centrados na burguesia, geralmente retratada em textos leves e cômicos, não só distantes da realidade brasileira, mas construídos sob medida para servir como veículo para propagandear o modo de vida da classe dominante do Brasil.

O proletariado em cena
O texto era, desde o título, uma provocação à elite e seu estilo de vida. Enfrentando uma quase falência, o Teatro Arena batizou seu espetáculo numa sarcástica referência ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), freqüentado pela nata da burguesia e da classe média, em suas emborboletadas gravatas.

A narrativa, contudo, estava longe de qualquer tipo de comédia. A história gira em torno dos conflitos vividos pelo jovem operário Tião. Ele vive na favela com seus pais e fura uma greve pensando ser esta a melhor forma de garantir um futuro para o filho que sua namorada espera.

Mergulhando nas conseqüências políticas e pessoais da decisão de Tião, o texto coloca em cena um drama centrado nos embates com seu pai, um dos líderes grevista, e sua própria namorada, ambos contrários à atitude do fura-greve. Um drama que, ao contrário do mundo fantasioso representado pela burguesia, não pode, sempre, encontrar um final feliz.

A escolha do elenco foi fundamental não só para transformar a peça num espetáculo inesquecível para quem o viu, mas também para dar a ela um tom ainda mais político. Eugênio Kusnet, apoiado no seu conhecimento do método Stanislavki – baseado no desenvolvimento de técnicas que permitam ao ator interpretar seus personagens com realismo e profundidade – deu vida ao velho Otávio; Lélia Abramo, um das precursoras do trotskismo no Brasil, interpretou a mãe Romana; Miriam Mehler foi a namorada Maria e o sensacional Guarnieri encarnou Tião.

Dirigida com eficiência por José Renato, um dos fundadores do Teatro de Arena, a peça ainda contou com veia sarcástica de Adoniran Barbosa, que compôs “Nois não usa os bleque tais” e outras canções para a trilha.

Arena: marco de uma época
O sucesso da peça reergueu o Arena, que nos anos seguintes levou aos palcos uma série de outros espetáculos centrados na realidade nacional, dando seqüência a uma trajetória iniciada em 1951 e que ganhou impulso em 1956, com a fusão com o Teatro Paulista dos Estudantes e a contratação de Augusto Boal para lecionar o método de Stanislavski.

O primeiro resultado desta nova fase foi “Juno e o Pavão” (1957), que trata da luta do IRA (Exército Republicano Irlandês). O projeto seguinte, justamente “Black-tie”, marcou a busca por formas e atuações mais “nacionais”, algo bastante sintonizado com o discurso nacionalista que marcou o pensamento de parte da esquerda do período.
Um discurso que, marcado pela situação política do continente, principalmente pelo impacto provocado pela Revolução Cubana, pontuou encenações, baseadas em originais escritos pelos integrantes da companhia, como “Chapetuba Futebol Clube”, de Oduvaldo Vianna Filho (direção de Boal, 1959), “Revolução na América do Sul”, de Boal (direção de José Renato, 1960) e “O Testamento do Cangaceiro”, de Francisco de Assis (direção de Boal, 1961).

“Black-tie” foi um divisor de águas em vários sentidos. Inclusive para o grupo. Após o espetáculo Oduvaldo Vianna Filho e Milton Gonçalves abandonaram o grupo para fundar, em 1961, o Centro Popular de Cultura (CPC), destinado à agitação política e ligado à então combativa União Nacional dos Estudantes, UNE.

Enquanto isso, o Arena dedicou-se à nacionalização de “clássicos” em produções fortemente marcadas pela obra de Bertold Brecht, como “Os Fuzis da Senhora Carrar”, do próprio Brecht, e “A Mandrágora”, de Maquiavel.

Até o seu fechamento, em 1972, sufocado pela perseguição da ditadura, o Arena levou aos palcos espetáculos que promoveram verdadeiras revoluções estéticas – como o conceito de “sistema coringa”, em que todos os atores se revezam nos papéis e as bases do “teatro do oprimido” – com destaque para “Arena Conta Zumbi” (1965), que transformava a luta dos quilombolas metáfora para a luta revolucionária.

Que caíam as “black-ties”
A retomada cinematográfica de “Black-tie” por Leon Hirszman (um dos fundadores do CPC), em 1981, não foi mera coincidência. Transposto para o ABC Paulista, em plena agitação grevista no final dos anos 1970, filme e peça refletem as semelhanças existentes nos diferentes contextos históricos em que foram produzidos.

Por estas e outras, lembrar o cinqüentenário do texto de Guarnieri é fundamental nos dias de hoje. Num momento em que o teatro – como todo o resto da produção artística – naufraga na mediocridade neoliberal, contaminando os palcos com um “teatrão” comercial impregnado por montagens da “Broadway” e espetáculos “globais” que visam mais o tilintar das moedas do que o som de aplausos, “Eles não usam black-tie” é testemunho ainda vivo e vibrante daquilo que a arte talvez tenha de mais belo: a capacidade de nos fazer sonhar ao mesmo tempo em que cutuca nossa mente, fazendo-nos confrontar com a realidade.

Uma capacidade que – tanto a peça como o filme parecem demonstrar – explode com mais força e brilho em momentos nos quais a realidade em crise incendeia a criatividade de artistas que tenham a mínima sensibilidade para traduzir o mundo que os cerca em arte.

Uma possibilidade que, felizmente, está sempre aberta, não só pela própria dinâmica da luta de classes, como também pelo fato que, apesar de tudo, ainda há muita gente por aí que se recusa a usar “black-tie”, nos palcos e fora deles.

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