A despenalização do aborto no Uruguai que acaba de ser sancionada pelo Senado daquele país representa uma grande conquista para as mulheres uruguaias, mas também para todas as mulheres trabalhadoras e pobres do conjunto da América Latina. Porque em nosso continente o aborto é legal apenas em Cuba (desde 1965) e na Cidade do México (desde 2007), e a recente despenalização no Uruguai pode servir de impulso para a campanha de legalização do abordo reivindicado e tão emergencial no conjunto da América Latina. Com certeza, essa conquista vai fortalecer a luta em todo o continente para que a legislação mude e as mulheres não sejam mais penalizadas judicialmente quando desejam interromper a gravidez. Dessa forma, o procedimento poderá ser feito num hospital público, com atendimento médico adequado, evitando que milhões de mulheres morram ou fiquem com seqüelas graves em todos os nossos países.

No continente latino-americano isso será uma vitória muito grande porque em geral as mulheres que mais precisam do aborto são as mais pobres e as trabalhadoras, que não podem ter filhos porque não têm condições materiais de vida suficientes para sustentá-los, e precisam fazer um aborto com toda garantia de que sairão dele vivas. O que é raro no Brasil, por exemplo, onde quase 200 mil mulheres, se não morrem, ficam com problemas de saúde muito graves em conseqüência de abortos clandestinos.

Dilma Roussef, que é do PT, partido cujo programa incluía a bandeira da legalização do aborto, precisa mudar de atitude e em vez de enterrar essa bandeira como mais uma promessa a esquecer, tem que como mínimo acompanhar o que fizeram governos como José Mujica no Uruguai, e empenhar sua força política para que essa bandeira tão importante para as mulheres há tantos anos seja por fim aprovada aqui também, no Brasil. Vai acabar com uma mortandade imensa que só ocorre nos países com legislação mais retrógrada porque nos países adiantados, como Europa e Estados Unidos, as leis foram modernizadas, fruto de muita luta das mulheres e homens, e isso já não acontece há tempos. Na URSS o primeiro ato da revolução socialista de outubro de 1917 foi justamente acabar com essas leis reacionárias impostas pela burguesia, e legalizar o aborto e o divórcio.

Como foi o caso uruguaio
Agora no Uruguai toda mulher maior de idade tem o direito de interromper a gestação nas primeiras doze semanas. Só não há limite para o aborto nos casos de violência sexual, risco de vida para a mãe ou má-formação fetal greve.

O projeto deverá ser discutido, em fevereiro, na Câmara dos Deputados, mas sua aprovação aí também é dada como certa porque a Frente Ampla tem a maioria dos votos. E o presidente da república José Mujica já manifestou apoio ao projeto aprovado no Senado e prometeu promulgar a lei, caso ela seja aprovada pela Câmara.

Segundo dados não-oficiais, no Uruguai são realizados 44 abortos por cada grupo de mil mulheres. No entanto, aí o aborto nunca chegou a ser um problema tão grave e dramático como nos outros países latino-americanos porque sempre as mulheres lutaram muito e fizeram conquistas. Desde 2004, por exemplo, existe lá um programa de assistência médica que fornece orientações às mulheres que planejam abortar. Mesmo que o aborto ainda fosse, nessa época, considerado crime, e o ex-presidente Tabaré Vasquez ser contra, muitas mulheres puderam fazer o aborto em condições seguras graças a esse programa. Apesar desse programa, chamado “Normas e Guias Clínicas para a Atenção Pré e Pós Aborto”, só ser aplicado em um hospital, o Pereyra Rossell, ele teve um resultado positivo porque esse é o principal hospital público de Montevidéu, a capital do Uruguai, e responsável por 20% dos partos no país. Assim, qualquer mulher que queira interromper a gravidez, pelo motivo que for, pode procurar um médico nesse hospital para obter todo tipo de orientação sobre qual o método mais seguro de realizar o aborto. A maioria das mulheres que recorre ao programa (80%) opta por interromper a gestação, optando por tomar o remédio misoprostol, aconselhadas pelos médicos. O programa também dá atenção elas no período pós-aborto, para não ter hemorragia ou outro tipo de complicação.

Esse programa, apesar de suas limitações, salvou muitas vidas, porque na época em que foi criado, em 2004, o aborto era responsável por 48% das mortes ocorridas no hospital. Desde então, nenhum morte foi registrada por esse motivo. Agora, com a despenalização do aborto, esse programa deverá ser estendido a toda a rede hospitalar e as mulheres que assim o desejarem poderão fazer o aborto no próprio hospital e com o mesmo médico que as atende.

Por que é importante legalizar o aborto?
A legalização do aborto, ou despenalização (quando a lei não prevê pena alguma para a mulher que fizer aborto) é muito importante porque assim muitas mulheres passam a ter o direito de escolha, ou seja, querer ou não prosseguir com a gravidez até o nascimento da criança. As que quiserem, podem ter o filho; as que não quiserem, podem interromper a gravidez. Neste mundo confuso em que vivemos, com tantos problemas sociais, muitas mulheres acabam mudando de idéia e resolvem não mais ter o filho. Outras são estupradas; o estupro é uma chaga nacional; não passa um cada dia sem que uma mulher seja violentada no Brasil. Muitos desses estupros acabam em gravidez. Essa mulher que foi violentada tem de ter o direito a não ter o bebê se assim não quiser ou não tiver condições materiais de vida para tanto.

Ter um filho é algo muito importante na vida de uma mulher, e é necessário que ela tenha condições de criá-lo com todo o conforto, dar-lhe alimentação e saúde, um lar compatível e uma educação de qualidade. Se nada disso existe, podemos classificar como uma grande aventura o nascimento de uma criança. Infelizmente, essa é a realidade da grande maioria das mulheres em nosso país.

Muitas mulheres são religiosas e por isso acreditam que a vida já existe no feto. Sendo assim, são contra o aborto e acham que as mulheres jamais podem interromper uma gravidez porque estarão cometendo um crime. Não compartilhamos dessa opinião, mas se essas mulheres têm o direito de pensar assim, as outras, que não pensam dessa forma, também devem ter o direito de pensar livremente e agir conforme suas convicções. Nem todas as mulheres são religiosas, mas todas devem estar abertas a aceitar a diversidade de opinião.

Como diz a uruguaia Mônica Xavier, uma senadora socialista, integrante da Frente Ampla, partido governista, “não podemos nos arrogar o direito de dizer que quem leva a gravidez até o fim e tem o filho está bem, enquanto quem não faz isso, por qualquer motivo que seja, está mal” (O Estado de S. Paulo, 29/12/11).

Ela tem razão. Porque o direito de decidir sobre seu próprio corpo, sobre sua própria vida, deve ser de todos e não apenas daqueles que são contra o aborto. Ainda mais quando sabemos que quem mais precisa da garantia desse direito são as mulheres pobres, que estão num beco sem saída: não têm dinheiro para criar os filhos, não tiveram educação sexual para saber planificar minimamente sua vida afetiva, não têm dinheiro para pagar médico, advogado, hospital, nada. O Estado tem de encarregar-se de resolver esses problemas sociais, já que não garante pleno emprego para todas as mulheres e homens, salários dignos, moradias e outras condições básicas que permitam a uma mulher pobre o direito à maternidade e a uma família de trabalhadores o direito criar seus filhos dignamente.

Aqueles que condenam o aborto porque “vai contra a maternidade” devem saber que a melhor forma de apoiar a maternidade é justamente apoiando o direito ao aborto, assim como a melhor forma de apoiar a família é apoiar o direito ao divórcio e à liberdade dos homens e mulheres à separação. A maternidade forçada é um problema que a mulher vai carregar para o resto da vida como uma pressão contra a união familiar, assim como a união forçada, o casamento “para o resto da vida” quando vai contra o desejo do casal, é uma união frágil, permanentemente ameaçada de desagregação.

O que “vai contra a maternidade” é justamente a pobreza e a miséria, a falta de direitos das mulheres e de condições materiais de vida para os trabalhadores, cujas famílias há muito vêm sofrendo a desagregação e o abandono, sem que o Estado dê qualquer alternativa a essa situação cada vez mais desesperadora. Neste país, os únicos que têm direito a uma família digna são os ricos. Isso tem de mudar, e a legalização do aborto é um passo importante para reparar essa injustiça e salvar milhares de vidas humanas, como já vinha ocorrendo no Uruguai desde 2004.

Dilma tem de fazer o mesmo aqui, de forma urgente. É inadmissível que num país governado por uma mulher, milhões de mulheres pobres ainda sofram com uma legislação retrógrada, que as condena como criminosas por interromper a gravidez, um procedimento simples que já é praticado legalmente em vários hospitais do mundo, e que garante a livre escolha sem que por isso as mulheres tenham de colocar sua vida em risco.