Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Não faltam motivos para lembrar e celebrar a obra e vida de Sebastião Bernardes de Sousa Prata, o Grande Otelo, que faleceu há 22 anos, no dia 26 de novembro de 1993, quando teve um enfarte às vésperas de completar 78 anos, quando desembarcava em Paris para receber um prêmio em um dos mais importantes festivais de cinema da França. O ano de 2015, particularmente, deveria ter sido marcado pelo resgate de sua enorme contribuição para o cinema, a TV e a música de nosso país. Afinal, estamos no ano do centenário do seu nascimento, em Uberlândia (MG), no dia 18 de outubro de 1915.

Contudo, tanto o fato de seus cem anos terem passado praticamente “em branco”, quanto os pouquíssimos eventos realizados para lembrar o aniversário de sua morte são exemplares do quanto a vida deste artista genial foi marcada pela marginalização e a invisibilização que cercam a vida de negros e negras, inclusive aqueles que conquistam fama e sucesso em suas áreas.

Ator completo, que esteve em nada menos que 118 filmes, mas quase sempre preso aos papéis estereotipados destinados aos homens negros (o “bêbado”, o “crioulo doido”, o “malandro” etc.), Grande Otelo teve sua vida, desde sempre e até o fim, marcada pelo racismo. Algo que deixou profundas marcas em sua conturbada vida; mas que, felizmente, não foi capaz de apagar o enorme brilho de suas inesquecíveis atuações e contribuições para a arte brasileira que fizeram dele um dos primeiros negros a ter projeção nos cenários nacional e internacional.

Vida de negro é difícil….

Grande Otelo carregava a história da opressão racial em seu próprio nome de batismo, Prata, o mesmo do “sinhô” da fazenda onde seu pai vivia como “agregado” (sinônimo de semi-escravo no século 19) e sua mãe como cozinheira. E os descaminhos e sofrimentos que marcaram sua infância são bem conhecidos por gente que nasceu pobre e preta: ele sequer conheceu seu pai, que morreu esfaqueado, e sua mãe mergulhou no alcoolismo.

Assim como a maioria dos meninos negros, o trabalho começou a fazer parte de sua vida muito cedo. A diferença é que a arte era seu ganha-pão. Aos seis anos, cantava pelas ruas de Uberlândia, coletando trocados para ajudar sua paupérrima família; aos sete, juntou-se a um circo mambembe (“adotado” pela diretora do grupo, Abigail Parecis) e partiu para São Paulo.

Foi nessa mesma época que, influenciado pelo filme “O garoto” (Charles Chaplin, 1921), Otelo decidiu ser ator. Uma decisão que, mais uma vez, esbarrou nos muitos obstáculos que marcaram sua vida. Depois que Parecis partiu para uma turnê na França, Otelo voltou para as ruas, acumulando passagens pelo Juizado de Menores (a “Fundação Casa” da época), até ser novamente “adotado” por uma rica família de políticos paulistas que, em visita ao abrigo de menores, ficou fascinada pelo “espetáculo interessantíssimo” apresentado pelo menino: “cantou trechos de óperas, músicas regionais, declamou em português e espanhol, dançou e sapateou”, como lembrou Moíses de Queiroz, um dos filhos da família.

O que levou a família a adotar o então pequeno Otelo, sinceramente, dispensa comentários. De qualquer forma, a estadia na família permitiu que o ator estudasse por alguns anos na elitista escola Sagrado Coração de Jesus, freqüentada por gente como Jânio Quadros e Monteiro Lobato, onde “sobreviveu” até a terceira série ginasial, quando fugiu de casa e, antes de cair numa terceira “adoção”, decidiu tomar as rédeas da própria vida.

Mesmo depois de famoso, não faltaram outros obstáculos e percalços, ao ponto de ter declarado que sua vida sempre teve “mais baixos que alto” e “era só solidão”. Como muitos outros negros cuja genialidade artística sempre esbarrou nos limites impostos pelo racismo (como Lima Barreto e Cruz e Sousa, só para citar dois exemplos), Otelo lutou a vida inteira (com inúmeras internações) contra o alcoolismo e a depressão. Contudo, seu o maior baque, com certeza, aconteceu em 1949 quando sua segunda mulher, Maria Lúcia, matou o filho de seis anos e se suicidou.

Brilho negro nos palcos e nas telas

De certa forma, também foi o racismo que determinou os rumos de sua carreira. Aos 11 anos, em 1926, Otelo ingressou na “Companhia Negra de Revista”, uma das primeiras experiências, no Brasil, de reação, no campo das artes, à segregação racial que também imperava nos palcos e locais de entretenimento da época.  Apesar de ter sobrevivido apenas por um ano, a Companhia, que tinha o genial Pixinguinha como maestro, influenciou de forma determinante a trajetória de Grande Otelo.

Em 1932, o ator entrou para a Companhia Jardel Jércolis, um dos pioneiros do teatro de revista (um gênero de espetáculo que mesclava dança, teatro, comédia e, muitas vezes, crítica social). Foi lá que ele ganhou o apelido de “Pequeno Otelo”, que ele próprio preferiu trocar para “The Great Otelo” (em referência ao protagonista negro da peça de Shakespeare, escrita em 1603), depois traduzido para o português: Grande Otelo.

Nos anos seguintes, o ator atuou em cassinos (principalmente o da Urca, ao lado de Carmem Miranda e todos os grandes nomes da época), shows e peças de teatro, até chegar ao cinema em “clássicos” da comédia e dos musicais, “Noites Cariocas” (seu primeiro filme, em 1935), “Futebol e Família” (1939) e “Laranja da China” (1940). Sua carreira deslanchou em 1943, quando fez o primeiro filme produzido pela Companhia Atlântida Cinematográfica que, entre as décadas de 1940 e 1960, se especializou em comédias, musicais e chanchadas (filmes de humor popular que, geralmente, parodiavam o cinema norte-americano, dando destaque aos “personagens” e cotidiano cariocas).

O filme, “Moleque Tião”, foi um dos únicos em que Grande Otelo foi escalado como protagonista, algo inevitável já que é praticamente uma biografia do ator, baseada em sua infância e sua busca por um lugar no cenário artístico. Nos anos seguintes, Otelo fez parceira com Oscarito, formando uma das mais famosas duplas da comédia nacional, com quem filmou mais de dez chanchadas, como “Carnaval no Fogo”, “Aviso aos Navegantes” e “Matar ou Correr”.

Apesar do enorme sucesso da dupla, Otelo servia como “escada” para Oscarito (cujo salário era o duplo do ator negro), ficando sempre em segundo plano, o mesmo que ocorreu em relação a outras parcerias famosas como, por exemplo, com o comediante Ankito.

Consciente do racismo que o perseguia, inclusive nos papéis que lhe eram oferecidos, o ator, sempre que pode, se manifestou contra a marginalização. Inclusive nas telas. Em 1949, por exemplo, participou (ao lado da também genial atriz negra Ruth de Souza) de um dos primeiros filmes que abordou de forma contundente o racismo no Brasil, “Também somos irmãos”, dirigido por José Carlos Burle. Nele, o ator vivia o Moleque Miro, membro de uma família que tinha dois filhos brancos e dois negros, cujas vidas são tragicamente marcadas pelo racismo.

No início da década de 1930, o governo norte-americano lançou a chamada “Política da Boa Vizinhança”, com o objetivo de impedir a influência européia na América Latina e assegurar sua liderança no continente, algo considerado fundamental para amenizar os efeitos da crise de 1929 e, ainda, deter a influência do nazismo que, no Brasil, tinha a declarada simpatia de Getúlio Vargas.

A política do presidente Franklin Roosevelt era uma tentativa de reverter a crescente oposição ao governo norte-americano em função de outra política adotada desde o início dos anos 1900, a do “Big Stick” (“grande porrete”, em referência a um ditado que diz “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”), e se desdobrou em ações políticas, econômicas e culturais.

Como parte da política, dentre várias outras iniciativas, Carmem Miranda foi levada para os EUA; o papagaio “malandro” Zé Carioca foi criado como amigo do Pato Donald e o diretor Orson Welles veio para o Brasil para produzir um documentário, em 1942, chamado “It´s all true” (“É tudo verdade”).

A história do filme que, apesar de genial, nunca foi finalizado é marcada por todo tipo de problemas, principalmente a morte de um dos quatro jangadeiros que faziam a viagem entre Fortaleza e o Rio de Janeiro. Contudo, Grande Otelo mais uma vez brilhou, fazendo o papel de uma espécie de “mestre de cerimônia”, o que lhe valeu rasgados elogios do diretor norte-americano que chegou a declarar que tinha conhecido o “melhor ator brasileiro”.

Décadas depois, em 1982, Grande Otelo participou de outra produção internacional, o sensacional (e igualmente problemático) “Fitzcarraldo”, dirigido pelo alemão Werner Herzog, em torno de uma frustrada tentativa de construir uma casa de ópera no Alto Amazonas. Desta vez, Grande Otelo fez uma atuação espetacular como um tresloucado chefe de uma estação de trem.

Nosso eterno Macunaíma

A participação de Grande Otelo em “Fitzcarraldo” tem muito a ver com o filme que pode ser considerado o maior legado do ator para a história de nosso cinema: “Macunaíma”, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, em 1969, e baseado na obra de Mário de Andrade.

Em uma passagem pelo Brasil, em 2011, Herzog comentou como o ator e o filme o impactaram: “Fiquei louco pelo Grande Otelo e mais louco ainda por uma frase que ouvi num certo ponto do filme, ‘Cada um por si e deus contra todos’. Congelei na cadeira. Isto que acabei de ouvir é tão lindo que não consigo acreditar (…). Mas, tão importante quanto o subtítulo foi a descoberta de Grande Otelo. Que ator maravilhoso”.

E, de fato, não há como não ficar maravilhado com a atuação de Grande Otelo (e de Paulo José, Dina Sfat e Milton Gonçalves, dentre outros). Como também, não há como não relacionar o personagem de Mário Andrade com o próprio ator, a começar pela frase que abre a obra: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”

O livro de Mário de Andrade é um dos símbolos de uma das principais contribuições dos Modernistas da década de 1920 para a cultura brasileira, a Antropofagia; ou seja, a ideia de que, vivendo em um país marcado pela colonização e formado por distintas raças etc., a única possibilidade de construirmos uma “cultura nacional” é bancando o canibal, nos alimentando das manifestações artísticas e culturais (nacionais e estrangeiras) que nos cercam, rearticulando-as e renovando-as.

No livro, o personagem nasce em uma comunidade indígena na Amazônia, é negro, mas também vira branco em determinado momento. Contrariando sua frase símbolo – “aí, que preguiça” – o anti-herói, ou “herói sem nenhum caráter”, não para um segundo e envereda por aventuras mirabolantes ao redor do Brasil, nas quais se mesclam histórias e personagens da cultura popular e umas tantas outras referências.

Assim como Macunaíma, a história e a obra de Grande Otelo jamais poderão ser limitadas à comédia. Nos palcos e nas telas, apesar de eternamente associado às chanchadas (e, nos anos 1990, ao “humor” pra lá de questionável dos programas da Rede Globo), o ator fez papéis trágicos e dramáticos com a mesma genialidade e intensidade com que nos faz rir até hoje.

Particularmente no cinema, sua presença foi marcante em alguns dos filmes mais significativos de nossa história, como “Rio, Zona Norte” (dirigido por Nelson Pereira dos Santos, em 1957), onde o racismo era um tema central, “O assalto do trem pagador” (Roberto Farias, 1962), “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (Hector Babenco, 1976), “Ladrões de cinema” (Fernando Campos, 1977) e “Quilombo” (Cacá Diegues, 1985), onde faz um “griot” (contador de histórias e guardião da ancestralidade) que dá sua vida tentando impedir que as crianças, inclusive Zumbi, sejam seqüestradas por bandeirantes.

Se isto fosse pouco, o “macunaímico” Grande Otelo ainda foi cantor e compositor, tendo deixado uma das maiores pérolas de nosso samba, “Praça Onze” (1941), cujos versos são um protesto contra a demolição da praça que abrigava os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro: “Vão acabar com a Praça Onze / Não vai haver mais Escola de Samba, não vai / Chora o tamborim / Chora o morro inteiro”.

Parte fundamental da história da arte e da cultura do Brasil, Grande Otelo, apesar das muitas contradições que cercaram sua vida e obra (exatamente em função do racismo) foi um “gigante” no que se refere em relação ao povo negro, como lembra Mário Prata, um dos seus quatro filhos, “o maior legado que ele deixou foi para os atores afro-brasileiros. Ele furou esse bloqueio. E, com o exemplo dele, muitos outros vieram e passaram a acreditar nisso. Ele veio para dizer que o negro também pode ser um ator e que não precisava ser só um mero coadjuvante“.